Director: Marcelo Mosse

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Textos de Marcelo Mosse

quarta-feira, 27 março 2019 06:16

O vendedor de zips

Encrustado no regaço de um cadeirão, ele embrenhara-se numa sesta quase de barriga vazia, mas esses são aqueles momentos em que o sono eclipsa a dor e a angústia das perdas arrastadas pelas águas na madrugada de uma noite em que, quem sabe, mais um zip se encravaria nas frabiquetas de orgasmos de cada um. E, depois, em cada despertar de cada sesta renasce sempre a esperança. 

 

O homem, encontrado na viela central de Buzi, não ronca. Seu sono parece profundo, a clientela ausente e a mercadoria amontoada numa mesinha bem junto de si. O homem é um dos vários heróis do Buzi. Aliás, no Buzi todos são heróis. Nenhuma hierarquia captaria uma diferenciação do heroísmo, a não ser por decreto oficial. 

Se houvesse um ranking global para medir a credibilidade de um Estado, Moçambique seria avaliado negativamente. Imagine um ranking de 0 a 10, onde 0 é menos credível e 10 o mais fiável em termos de moralidade e integridade. Nosso país estaria abaixo do zero. Fazendo um paralelo com o critério de notação da dívida pública, estaríamos abaixo do lixo, que é o lugar onde nos colocaram todas as agências de notação financeira.

 

Por causa do calote da dívida pública, nosso Estado é olhado com desconfiança nos mercados financeiros internacionais. Os credores são aconselhados a não emprestar porque nosso Estado não tem estrutura financeira para honrar compromissos, como se revelou com o “default” relativamente à dívida da Ematum e, subsequente, das restantes MAM e ProIndicus.

A romaria solidária que inundou a zona de cabotagem do Porto de Maputo é uma demonstração inequívoca de que os moçambicanos podem facilmente abraçar o outro, independentemente da origem regional ou étnica, credo ou partido político. Mas, para isso acontecer, é preciso que tudo o que seja figura do Estado ou elemento de partido político esteja a milhas de distância da mobilização dos apoios.

 

É o que se vê com esta onda de afectos das gentes de Maputo para com as gentes da Beira, do Buzi, de Nhamatanda ou do Matundo, enfim, os moçambicanos violentados no seu quotidiano desprotegido por uma classe política enredada na ganância e que fez do saque do bem público e da pura ladroagem um meio de vida, adiando vários programas de protecção social.

 

Meia dúzia de moçambicanos puseram mãos à obra num projecto que está a tornar-se na maior onda de solidariedade jamais vista em Moçambique. Uma torrente de afectos embarcando em contentores ofertados por empresas com gestores sensibilizados pela causa. Essas empresas e esses gestores e todo o voluntarismo consequente não representam nenhumas cores políticas ou partidárias. Ali não há Partido nem Estado. É o chamado terceiro sector fazendo renascer redes de solidariedade há muito tempo destruídas pela política.

 

Ainda bem que é assim. Ainda bem que o INGC é um elemento passivo neste processo particular. Houve tempos em que os moçambicanos eram mais solidários. Mas essas redes foram capturadas. A CVM e o INGC tornaram-se antros da privatização da ajuda. E abriu-se um fosso de desconfiança entre a parte da sociedade que pode doar e as instituições do Estado ligadas à emergência, privando a parte da sociedade carente de ajuda. Nos últimos anos, a coisa se agravou. A política capturou todos os espaços da sociedade, imiscuindo-se até no terceiro sector. Pior, as calamidades naturais foram também instrumentalizadas, tornando-se fontes de enriquecimento ilícito. E, hoje, a percepção de que muita ajuda local e externa não chega a quem realmente precisa é geral.

 

Por isso, se o mobilizador central desta onda de apoios tivesse sido o Estado é provável que muita gente com capacidade de doar ficaria retraída. Mas como é a própria sociedade civil fora da politiquice barata, então a adesão é enorme. Os moçambicanos de todas as matizes mostrando uma marca do seu ADN: abraçar os outros, não olhando a meios. Afinal, há muitas coisas que poderíamos fazer melhor sem os políticos.

terça-feira, 19 março 2019 05:56

Afinal onde raio se meteu o Daviz Simango?

Com a Beira profundamente ferida, surge o Governo central a encher o palco num expediente simbolicamente cheio de significado mas que vai fazer parar por um dia os trabalhos da reparação do tecido social, comercial e industrial da cidade. Do ponto de vista psicológico, a cúpula do Governo reunir-se na Beira reconforta e mobiliza as almas violentadas pelo IDAI mas há sempre o efeito da distração e da perda instantânea do foco. Em ano de eleições, qualquer Governo do mundo faria o mesmo. 


Mas vamos lá ver se esse Conselho de Ministros reúne-se num oásis de luxo no meio de tamanha destruição ou se as sumidade se sentarão nos escombros do Hospital ou de uma escola arrasada. 


E espero que o Governo central abandone a politiquice bacoca e faça dessa reunião um encontro alargado ao Conselho Autárquico da Beira, que é quem aliás melhor sabe o que a cidade (no caso específico da cidade) precisa para se reerguer. Também espero que por artes de berliques e berloques o Governo central não tenha vaporizado o Daviz Simango. Seu sumiço é gritante. E não me venham dizer que ele está a ser censurado pelos canais de televisão (TVM, STV, Miramar) controlados pelo regime. 


Ele tem alternativa. Através da Motivel, Simango podia estar a fazer circular vídeos nas redes sociais com testemunhos da destruição, partilhando para o mundo o espírito do lugar, desse lugar que já quase não existe, para roubar do Mia sua expressão de desolação pelo desastre que deixou seu lugar de infância sob escombros. 
Onde raio se meteu do Daviz Simango?

O ciclone IDAI foi tão devastador que o Governo devia recomendar, amanhã, na sua reunião do Conselho de Ministros, o Conselho de Estado a decretar uma situação de Emergência Nacional. A destruição, no centro de Moçambique, vai certamente obrigar a uma revisão em baixa do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) estimado, para este ano, em 3,4%.

 

Toda a infraestrutura produtiva de Sofala foi arrasada. A Estrada Nacional Nº 6, essencial para o fornecimento do “hinterland”, está interrompida em vários pontos. A reconstrução das pontes destruídas levará tempo, assim como a reposição de electricidade e de parte do sector de telecomunicações. Estes dois sectores são essenciais para a vitalidade da economia. Na cidade da Beira, hospitais e escolas foram arrasados. No interior, há relatos de vastas áreas de produção dizimadas e milhares de pessoas desalojadas. E depois, há o risco da eclosão de epidemias de malária e cólera.

 

O IDAI destruiu, enfim, boa parte do tecido produtivo e social do centro de Moçambique. O parque empresarial foi violentado: edifícios e transportes. O Porto da Beira depende, grandemente, de uma rede viária já precária, mas agora inoperacional para as suas operações de importação e exportação. Uma massa de água inundou cerca de 20 km da EN6 e da linha férrea de Sena. A produção agrícola, no centro, está comprometida. As culturas nas margens dos rios Buzi e Púnguè estão praticamente perdidas.

 

E esta é apenas ainda uma fotografia preliminar, um retrato de relance do efeito conjugado das cheias e do ciclone IDAI. O tamanho da destruição não se esgota em qualquer descrição exaustiva. E, mais importante, a resposta para esta tragédia extravasa qualquer plano de contingência. Estamos perante um desastre de proporções gigantescas cuja resposta exige que o Conselho de Estado decrete uma situação Emergência Nacional.

 

Isto permitirá ao Governo rever em baixa as perspectivas económicas para este ano, elaborando um Orçamento Retificativo para definir realocações orçamentais, de modo a robustecer a resposta ao desastre. Permitirá também a redefinição do défice orçamental, de modo a mobilizar recursos da comunidade internacional, no quadro de uma resposta estruturada ao desastre que esteja em consonância com o Plano Económico e Social, também ele redefinido em função das novas necessidades de investimento.

 

Não vejo outra saída. Repito, a resposta ao desastre ultrapassa qualquer paliativo contingencial. E as zonas afectadas precisam de um forte sinal do Governo central com uma intervenção substancial. Este é um desastre nacional de proporções gigantescas e exige uma resposta enquadrada numa emergência nacional.

Com a aproximação do ciclone que paira sobre a região da Beira e que se vai estender território acima até à fronteira com o Zimbabwe, o Governo decretou um “alerta vermelho”. Isto significa que, devido à força devastadora que este temporal traz, aguardam-se vítimas humanas e destruição de infra-estruturas (habitações, escolas, armazéns, culturas etc ). De acordo com a Ministra da Administração Estatal, Carmelita Namashulua, o “alerta vermelho” serve para desencadear medidas de emergência para retirar as pessoas que vivem em áreas de risco e a mobilização de 18 milhões de Dólares para operações de ajuda humanitária.  

 

A declaração deste alerta aconteceu na terça-feira mas de lá até aqui pouco se viu de acções de prevenção. As televisões (sobretudo a TVM) não estão a ser usadas para mobilizar a sociedade para a gravidade do problema. Não há evidências de acções de prevenção e parece que o dinheiro mobilizado vai apenas ser usado, sempre com desvios à mistura, a posteriori. Infelizmente, este é um quadro recorrente em Moçambique. Ao invés de se evitar a ferida, as autoridades preferem que ele aconteça para usá-la depois como um instrumento de mobilização de fundos, boa parte dos quais acaba nos bolsos sem fundos de meia duzia de chefes. Ou seja, o alerta vermelho não é accionado para se fazer a prevenção mas sim como um mecanismo de financiamento das redes de acumulação instaladas nos circuitos mais obscuros do sector de emergência em Moçambique.

 

No caso concreto da aproximação do ciclone IDAI não há evidências de que entidades municipais da Beira e Dondo, mas sobretudo o INGC e os governos distritais, estejam já a executar um plano preventivo para evitar a catástrofe que se avizinha a grande velocidade e que vai "bater" na Beira no início desta noite. Os hospitais e centros de saúde estão preparados para não terem falta de água e energia e pessoal em prontidão? Já foram identificados edifícios robustos (igrejas, escolas, o Pavilhão do Ferroviário, mesmo o aeroporto, etc ) para recolher pessoas das zonas mais vulneráveis e colocá-las onde haja condições minímas de sanidade  (água, colchões, brinquedos para crianças, pesssoal para-médico)?

 

Quais serão os momentos de maior fustigação do ciclone - por exemplo: chuva intensa combinada com maré-cheia; zonas que as pessoas devem evitar circular; estradas que vão ser utilizadas para apoio de emergência (bombeiros, INGC) e que devem ser deixadas livres por outros condutores? Que precauções para evitar inundações caseiras? Há aconselhamentos para se cortem ramos de árvores que estejam sobre habitações e fios de energia eléctrica, etc?

 

Era fundamental que este tipo de alerta e dicas sobre o que as pessoas devem fazer antes do ciclone estivessem a passar em anúncios de rádio e televisão (a TVM está mais empenhada em passar anúncios de propaganda das realizações do Governo ao invés de dedicar uns minutos a preparar a sociedade para enfrentar um ciclone de tamanho impacto). Mas é sempre assim em Moçambique. Um ciclone, uma depressão tropical, ou mesmos as cheias, são sempre bem-vindas porque ajudam a mobilizar dinheiro dos doadores para encher o bolso das máfias corruptas dentro do Governo.  Todo o resto é cantiga!

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