Director: Marcelo Mosse

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Textos de Marcelo Mosse

terça-feira, 08 outubro 2019 05:40

Anastácio Matavele e um certo banditismo de Estado

O assassinato Anastácio Matavele, em Gaza, é se calhar o indicador mais tenebroso de que a Frelimo ainda se retroalimenta numa narrativa de intolerância política, e, como controla o aparato securitário, num certo banditismo de Estado. As pedradas e pauladas com que militantes impunes da Frelimo se fazem a opositores desarmados em Gaza e por aí além podem não ser o corolário de uma cartilha centralmente redigida, mas o silêncio da cúpula ao mais alto nível, incluindo o silêncio do seu Director de Campanha, o Ministro Celso Correia, mostra que há um certo grau de anuência tácita que protege assassinos a soldo em nome da sua perpetuação no poder.

 

Uma cumplicidade atroz! E assim a Frelimo se mostra alinhada na barbárie.

 

Anastácio Matavele era um senhor activo na sociedade civil em Gaza, um veterano do Fórum Local de ONGs. Apesar de controverso às vezes, nomeadamente nas guerrinhas de “posicionamentos” das ONGs em temas diversos como nos debates recorrentes sobre o “combate à pobreza a la PARPA II”, Matavele era no fim do dia um homem coerente e focado na sua luta. Seu lugar era o da sociedade civil, a partir donde fazia uma “oposição” não partidária ao Governo, com centro na capital do Frelimistão, Xai-Xai. Era um homem incómodo para quem governasse uma província considerada lugar de passeata.

 

A presença de Matavele como coordenador da Sala da Paz, representando o conglomerado de ONGs que fazem a monitoria eleitoral, assustou os mais indefectíveis cultores de uma Gaza onde a oposição não tem espaço. Com Matavele (a Sala da Paz, o CIP e outros actores) a observação eleitoral estava a ser incisiva, com toda a sujeira das pedradas e pauladas e o tom sanguinário da campanha da Frelimo contra a oposição vindo ao de cima.

 

Ele foi assassinado por 4 homens armados até aos dentes. Os relatos apontam que dois morreram logo a seguir; o carro do assalto se despistou. Os outros dois deviam ser os derradeiros confessos autores de um crime político que mais uma vez vai ficar impune. Sua confissão, como sempre, não vai acontecer. Como em Cistak, os esquadrões da morte são instrumentos de um Estado penetrado pelo crime organizado. E por isso, todos os operacionais que actuam nesse expediente macabro gozam da vil protecção desse banditismo de Estado que nos Governa. Na ressaca de 27 anos de uma paz indizível, a política em Moçambique ainda derrama sangue para vingar!

quarta-feira, 21 agosto 2019 05:51

Pagar os Nhongos e desarmá-los sem sangue

Filipe Nyusi deve mesmo perder algum tempo com os Nhongos da Renamo, resquícios do lado mais sinistro do “pai da democracia”, Afonso Dhlakama. O Presidente Nyusi entrou nesta empreitada de pacificação com um profundo registo anti-bélico e é assim que deve continuar até ao fim: negociar com os homens.

 

Ao contrário do que muitos consideram, os Nhongos da Renamo não são apenas produto das desavenças internas no movimento rebelde. E de nada vale agora, nos grudarmos numa plateia horripilante de cinismo, incapazes de gesticular a linguagem da paz sem balázios nas kalashes, só porque nos enche o ego constatar que, afinal, a Renamo era uma turma heterogênea de ambição e ganância.

 

Aliás, o Nhongos da Renamo são também produto dos sucessivos Governos da Frelimo. Desde as eleições de 1999, quase perdidas pelo partidão, que o Governo e Dhlakama engendraram uma fórmula de paz podre. Dhlakama vociferava e a Frelimo, consciente das maracutaias eleitorais, lá abria os cordões à bolsa. Joaqum Chissano foi exímio na monetização dessa paz podre, pensando que era o caminho do fim da Renamo bélica. Mas não!

 

Dhlakama usou esse estratagema para perpetuar sua guarda canina. E esgrimir a linguagem do regresso à guerra para arrecadar mais uns tostões do Governo virou um “modus vivend” da sua tropa. Por isso é que ele nunca quis fazer política sem armas em Maputo. Os Nhongos da Renamo beberam profundamente de suas táticas. E estão a usá-las novamente. Lançar a ameaça de pânico para buscar uma recompensa.

 

Mas é claro, hoje, que os Nhongos tem a consciência de que chegaram ao fim da linha. Com o acordo precário assinado por Ossufo Momade, eles pretendem uma saída airosa das matas: dinheiro. Filipe Nyusi não tem outra opção senão dar largas à sua diplomacia de paz. Falar com os Nhongos, pagá-los e desarmá-los de uma vez por todas. Para o PR, não há outra saída airosa. A não ser que ele queira pintar de sangue esta etapa derradeira de um consulado onde uma pacificação sem violência foi sua jóia de coroa.

Cada vez mais avultam seminários sobre “fake news”, onde se discute toda a teoria à volta da matéria. Nos eventos são feitas generalizações e, raramente, são apresentados casos concretos de “fake news” produzidos pela imprensa profissional. Aliás, o principal culpado para a profusão do fenómeno são as “redes sociais” e o cidadão comum que, hoje, por via das redes, pode emitir o seu “noticiário”.

 

Esta semana, a comunicação social moçambicana e alguma estrangeira replicou uma “fake news” a todo o vapor, num golpe inocente contra a sua credibilidade. E muitos leitores não se aperceberam da mentira, dada a voracidade com que hoje se consomem notícias. Os mais atentos riram-se. Eis os factos.

 

 

Na passada terça-feira, o “Notícias” publicou um artigo dando conta do acórdão do Tribunal Superior de Recurso (TSR) respondendo a um recurso de três arguidos das “dívidas ocultas”, Ndambi Guebuza, Sérgio Namburete e António Carlos do Rosário, interposto em Fevereiro, solicitando liberdade provisória sob a alegação de que sua prisão tinha sido ilegal.  O artigo do “Notícias” era claro, mas não especificava que o acórdão se referia a uma acção imediata da defesa após a legalização da prisão preventiva dos arguidos pelo juiz Délio Portugal.

 

 

Na mesma terça-feira, a notícia correu viral. Uma vastidão de jornais, tendo como base o texto do “Notícias”, escrevia que o TSR tinha recusado um alegado pedido de “habeas corpus” dos visados. “Negado mais um pedido de “habeas corpus” de Ndambi Guebuza”, foi um dos títulos num jornal estrangeiro, citando a Lusa. A notícia sobre a recusa de “habeas corpus” percorreu meio mundo, com ecos na imprensa estrangeira. Mas essa replicação do artigo do “Notícias” estava deturpada. Construiu-se uma mentira. Uma verdadeira ”fake news”. A Lusa foi um dos órgãos que embarcou nesse noticiário, eventualmente induzindo os jornais portugueses que replicaram o seu texto, o qual referia taxativamente ao pedido de “habeas corpus”.

 

 

Mas o facto é que o TSR não decide sobre “habeas corpus”. Quem decide é o Tribunal Supremo (TS). O TSR estava apenas a reagir a um recurso à prisão preventiva, de Fevereiro, quase cinco meses depois. Ou seja, a menção ao “habeas corpus” foi inventada. Na verdade, o TS tem em mãos, desde 25 de Julho, um recurso extraordinário de “habeas corpus”, interposto por alguns reclusos depois da expiração dos prazos da sua prisão preventiva a 24 de Julho. Mas, apesar de estar sujeito a um prazo constitucional de oito dias para decidir sobre esses pedidos, até ontem o TS não o tinha feito.

 

 

O que terá induzido os jornais a concluírem que a decisão do TSR era sobre este pedido de “habeas corpus”? Não sabemos! O facto é que a “fake news” sobre uma alegada recusa de “habeas corpus” pelo TSR a Ndambi e companhia tornou-se viral. E foi uma “fake news” criada e replicada por órgãos de grande respeitabilidade nacional e estrangeira. (Marcelo Mosse)

quarta-feira, 07 agosto 2019 06:03

60 milhões para quem gerir?

Ontem, já quase no final da “passerelle” dos discursos alusivos ao “acordo oculto” da Paz Definitiva, quando Federica Mogherini anunciou os 60 milhões de USD para as etapas subsequentes, vislumbrei alguns olhares reluzindo de contente. Vai haver boa fruta! Tecnocratas e lobistas que lidam com a mola que cai nas contas do Governo já estão esfregando as mãos, planeando seus recorrentes esquemas.

 

Mas este dinheiro, os 60 milhões, está directamente ligado à Paz Definitiva. Mogherini não foi detalhada sobre quem vai ser o beneficiário directo dos fundos. Também não era momento para determinar os Termos de Referência para o uso do montante, embora ela tenha dado a entender que o dinheiro era destinado a financiar projectos com efeito na população em todo o país!

 

Não! O dinheiro da Paz Definitiva não é para combater nossa pobreza geral. Não é para entrar no orçamento do Estado e desaparecer nos duvidosos critérios de distribuição de renda do Governo ou ser capturado nos sinistros processos de procurementcorruptos que caracterizam as intervenções do executivo no terreno.

 

Nem é para trazer para Moçambique uma catadupa de ONGs europeias (que também já esfregam as mãos), para virem cá meter esse dinheiro nos seus bolsos, com projectos com altas taxas de assistência técnica, que consomem mais de 60% de orçamento só para salários.

 

O dinheiro, deve ficar claro, é para a Paz Definitiva. Por outras palavras, é para financiar a reinserção social dos combatentes da Renamo e ponto final! Isto deve ficar claro e definitivo nos Termos de Referência. Haverá custos com a integração dos oficiais da Renamo nas Forças de Defesa e Segurança, mas estes devem ser custos marginais. O Estado deve arcar com o essencial desses custos.

 

Os 60 milhões não devem ser entregues ao Governo. Em Moçambique já há organizações não estatais com experiência na gestão deste tipo de projectos de reinserção social e devem ser convidadas a dar o seu contributo. Com sua comprovada experiência e inserção cultural e geográfica no território nacional, esses dinheiros serão aplicados de forma mais efectiva para uma paz sustentável. Importa recordar que o calar das armas não significa necessariamente a Paz. É preciso que a pobreza e exclusão social e económica sejam atacadas por quem já provou, aqui na nossa terra, que sabe como isso se faz. Os 60 milhões nas mãos do Governo comportam um risco tremendo: o risco de todo o edifício pensado para a Paz Definitiva ruir mesmo antes de se escavar as suas fundações. 

domingo, 04 agosto 2019 15:31

Os novos “bandidos armados” da Renamo

Com o acordo de cessação das hostilidades, rubricado pelo PR Filipe Nyusi e pelo líder da Renamo Ossufo Momade, surgiu um grupo se colocando como o único empecilho para que Nyusi celebre eternamente o estatuto do derradeiro pacificador de um conflito que mergulhou Moçambique no sangue durante décadas a fio: os dissidentes da Renamo. Há quem acredita que estes dissidentes têm potencial para perigar a paz. Até é possível.

 

O grupo é composto por generais do “innner circle” da guerrilha de Afonso Dhlakama, que deram seu corpo e alma às “causas” da luta. Queriam o poder de veto no processo decisório interno, mas Ossufo Momade deu-lhes costas. Têm armas e controlam bases do interior. Mas as possibilidades da sua persistência na hostilização violenta contra o poder do Estado (reivindicando um poder dentro da Renamo) parece-me limitada.

 

O acordo Nyusi-Momade carimbou também uma aliança FRENAMO (Frelimo/Renamo), que agora se junta, em coligação, contra os dissidentes. Ou seja, o grupo que insiste na rebeldia tem agora o Estado e boa parte da Renamo do outro lado da barricada. O acordo Nyusi-Momade foi celebrado por parte da facção guerrilheira da Renamo e pela totalidade da facção política da Renamo, desde os “tachistas” parlamentares a toda uma panóplia de políticos, dhlakamistas ou não, espalhados pelas capitais provinciais.

 

Por outras palavras, os dissidentes actuais da Renamo não têm suporte político (a não ser que depois das eleições apareçam políticos se juntando aos guerrilheiros nas matas numa reivindicação contra a fraude – coisa que só Afonso Dhlakama sabia fazer). Mas ainda ontem vimos a Ivone Soares marchando em celebração do acordo. Os dissidentes têm, pois, uma capacidade de barganha limitada. A opinião pública é contra mais matança nas estradas e a comunidade internacional também está cansada das nossas desavenças de sangue.

 

Os anteriores acordos entre o Governo e a Renamo, como o de 2014, falharam por causa da capacidade de Afonso Dhlakama de enxergar a maracutaias da Frelimo e mobilizar, ao mesmo tempo, suas energias políticas e militares. Dhlakama foi-se e não deixou um sucessor com sua dimensão e carisma para dar continuidade ao seu estilo de luta.

 

Os dissidentes reivindicam um espaço dentro da Renamo, acusando Momade de falta de legitimidade. Mas o acordo FRENAMO mostrou que isso já não interessa. Quem da Renamo não entrou na onda do acordo não passa agora de um bandido atirando contra a segurança do Estado. São os novos “bandidos armados”, sem qualquer tipo de legitimidade. Depois da assinatura em Chitengo, quando se soube de novos ataques nas estradas, Nyusi frisou que esse banditismo vai ser combatido ferreamente. Aliás, tudo vale agora para que a paz aconteça dentro dos anos de vigência do nyussismo.

 

A dissidência na Renamo vai ser mesmo capitalizada pela Frelimo, para eliminar todos os vestígios bélicos da guerrilha. Simbolicamente, para os novos “bandidos armados”, seria como que uma segunda morte de Dhlakama, com o beneplácito de toda a facção política traidora da Renamo, que ambiciona o conforto de Maputo.

 

Nos próximos meses, vamos ter algum sangue nas matas, com eleições de permeio. Depois o teste crucial será ver com que armas é que a Renamo fará a reclamação da fraude eleitoral, de que é useira e vezeira. A Renamo da FRENAMO está mesmo preparada para fazer a luta política nos espaços tradicionais, tal como em Angola a Unita aceitou as benesses do poder e se restringiu ao parlamento, ou vai tentar fazer renascer, depois de Outubro, o novo “banditismo armado”? Alô Novembro!

O Estado Geral da Nação foi hoje um balanço dos Planos Económicos e Sociais dos cincos anos da presidência de Filipe Nyusi. Um autêntico arrazoado numérico de realizações em todas as áreas de intervenção do Governo. E Nyusi seguiu embevecido na sua contagem. Eram só milhares. Milhares de salas de aulas, milhares de carteiras (de uma “operação tronco” que acabou cedendo ao forte “lobby” chinês e de “nomenklaturas” locais, esfumando-se no seu propósito regenerador), milhares de kms de estradas, milhares de camas hospitalares...e uma apenas máquina de quimioterapia para um país que se estende em milhares de km. Houve também os milhões da Ministra Vitória Diogo, com suas sonantes e brilhantes estatísticas sobre o emprego. Era como se o desemprego já não fosse problema.

 

No afã da profusão numérica, Nyusi esqueceu-se de captar os tentáculos da crise que varre a sociedade. Os números, empolados alguns (como sempre foi com as mentirosas estatísticas de turistas que entram no país) ou não, os números de Nyusi esvaíram a alma humana, as pessoas que eles pretendem representar.

 

Perdido na aritmética, o Presidente não conseguiu mostrar um feito governativo estruturante dos seus primeiros cinco anos (o primeiro ciclo, na retórica oficial, de quem está predestinado a gozar um segundo ciclo!!!), para além da sua coragem e entrega abnegada na busca de uma solução política no diferendo com a Renamo. Não fosse esse seu empenho e o país teria cedido aos que na Frelimo sempre apostaram na “savimbinização” da Renamo, no descalabro férreo da guerra.

 

Fora isso, os cincos anos são um cortejo de remendos. Como se o país tivesse sido pendurado no estendal da incerteza, para se enxugar dele os resquícios mais tenebrosos do Guebuzismo: a maldição das “dívidas ocultas”. (Os académicos guebuzistas, como o Elísio Macamo, tentam agora vender a narrativa de que o calote foi tudo culpa dos Pearses, Boustanis e Safas, do exímio corruptor estrangeiro e ocidental, que empurrou o país para o lixo, tentando-se branquear o papel de uma elite local ávida de encaixar no gás antes mesmo dele começar a ser explorado).

 

A dimensão do calote prendeu Moçambique numa incógnita. Nyusi (ele sabia ou não sabia?) começou com os cofres vazios e não fosse o pacifismo dos moçambicanos, isto já tinha rebentado pelas costuras, tal a dimensão das famílias famintas deste país. E o Governo preferiu então pelo enredo numérico. Não importa a qualidade, se os números mudam de facto a nossa condição humana, se a educação melhora, e se a saúde é eficiente; importa agora um teatro com algarismos aos milhares, dando a impressão de uma governação cheia de realizações.

 

Os cinco anos foram uma mistura de boas intenções e alguns desastres anunciados. A gestão do calote foi caótica e não fosse a prisão de Manuel Chang, Filipe Nyusi estaria ainda também a tentar protelar a responsabilização criminal de gente “intocável”, caindo na velha táctica frelimista da proteccão recíproca entre as elites predadoras do poder.

 

Mas a tentação para se entrar por esse diapasão está sempre presente (como se viu ontem quando foi revelado que o Governo contratou uma firma legal de pé-descalço, sem página web, de reputação duvidosa, para fazer o seu expediente a favor de Chang).

 

A melhor boa intenção foi a da paz, que há dias estava para descambar, mas que pode concretizar-se já a partir de amanhã. Essa foi a cereja no topo de um bolo de sabor amargo. E Nyusi encerrou mesmo seu discurso amplificando essa iminência da paz definitiva. O resto é uma planície cinzenta de um balanço sem uma ideia sólida construída para o futuro, um pensamento estruturante sobre o que fazer nesse tão obsessivo segundo ciclo (já bastava o Manifesto do partidão ser um mero alinhavar vago de palavras, sem um pensamento concreto de política pública).

 

E o discurso de hoje acaba como começou: a breve tentativa de uma ideia concreta (o redimensionamento da rede viária do interior, ideia que parece ter caído de para-quedas no enredo) e a esperança alimentada nos milhões do... gás do Rovuma!

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