Director: Marcelo Mosse

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segunda-feira, 28 outubro 2019 06:41

Empecilhos de uma jornada

Toscanejou para esquerda levado pelo embalo do machimbombo de passageiros interprovincial, depois para direita, continuou por algum tempo ao ritmo do embalo até encontrar algo macio e deixou-se estar.

 

O seu hospedeiro movimentou-se ligeiramente, mas o seu inquilino continuava encostado no seu ombro, sacudiu-o abruptamente e este despertou ensonado e babado.

 

O autocarro já havia percorrido 110 km depois da partida às 04h00 da manhã da sua estação na cidade da Beira.

 

Usurpado pelo cansaço imposto pela humidade, a maioria dos passageiros dormiam para minimizar o calvário da viajem. Outros nem por isso cavaqueavam sobre este ou aquele assunto relativo à situação político-económica do país.

 

“Os estrangeiros estão a tomar conta dos negócios em Moçambique” relatou um dos conversadores. “Mas também moçambicano é preguiçoso, não quer fazer nada” - dizia outro.

 

“Vejam como está esburacada a estrada nacional número um, devia ser a melhor estrada de moçambique, sinceramente nossos governantes são incompetentes” – discursava outro.

 

De repente as vozes calaram-se como que uma ordem suprema os comandasse para tal, ouvia-se somente o roncar do motor e o ressonar conjugado deste e aquele passageiro.

 

O destino da viajem era a cidade de Maputo, no sul de Moçambique, num percurso de mais de 1200 Km. O autocarro albergava perto de 47 passageiros que era a sua lotação. Havia passageiros de diversas origens, Manica, Tete e Beira, estavam todos absortos nos seus pensamentos.

 

Moitas verdejantes margeavam a estreita estrada, e quando de longe o motorista descobria um camião que vinha no sentido oposto encostava mais a esquerda para permitir que se cruzassem sem dificuldade e sempre que tal sucedia, um abanão sacudia o autocarro.

 

Depois, o machimbombo alcançou o topo de um pequeno decline, onde podia-se deslumbrar a ponte sobre o rio Save com as suas águas cristalinas movendo-se mansamente por um lado, enquanto grande parte do rio estava completamente enxuto. A travessia procedeu-se com o machimbombo circulando a velocidade permitida.

 

Notava-se no semblante da maioria dos que transitava para o sul do país pela primeira vez um temor, creio que convocaram os espíritos dos seus antepassados para que redobrassem a vigilância.

 

“Vamos para terra de dono” – pareciam cogitar em uníssono.

 

O machimbombo alcançou o posto de controlo e imobilizou-se, uma série de agentes das autoridades com muito rigor exigiam a documentação, deixaram-nos com a sensação que estávamos num posto fronteiriço de um país estrangeiro.

 

Autorizados partimos, perdemos mais de vinte minutos na conferência, o motorista foi acelerando gradualmente o veículo para recuperar o tempo perdido.

 

A competência do piloto foi testada quando no povoado de Maluvane teve que efectuar contornos acrobáticos para escapar os muitos buracos no asfalto com apetência de engolir o machimbombo. Esse movimento acrobático reduziu a velocidade, perdemos muito, mas muito tempo; instantes depois uma bátega sacudiu o tejadilho do autocarro, a temperatura desceu, os passageiros agasalharam-se. O duplo empecilho atrasa-nos sobremaneira, perdemos quase duas horas e meia nessas gincanas acrobáticas que só terminaram no povoado de Pambara.

 

Depois uma mescla de murmúrios e um cheiro nauseabundo despertou a atenção dos passageiros, a vozearia ia-se incrementando à medida que o cheiro se exacerbava. As lamúrias que moravam no autocarro chamaram a atenção do motorista que também fora fulminado pelo disparo do peido, este viu-se na incumbência de imobilizar o veículo com um abrupto frear.

 

“Quem fez isso?” – questionou o motorista fora de si.

 

A zona de desconforto que albergava o titular da flatulência foi investigada, acusações infundadas iam surgindo até que um passageiro de faro apurado detectou o responsável, uma anciã, ela admitiu a infração cabisbaixa.

 

“A senhora podia pedir” – resmungou mais uma vez o motorista.

 

Desodorizantes multi-marcas disparam suas fragrâncias para derrubar o cheiro do peido, esses aditivos químicos em formulas desconhecidas pelos seus donos catalisavam ainda mais o desagradável cheiro. 

 

Desembarcamos em debandada com as narinas tapadas, uma pausa involuntária que permitiu esticar as pernas, urinar até fumar um cigarro, este apeadeiro desgostou o motorista que tinha que chegar a ponte sobre o rio Limpopo em Xai-Xai antes das 21 horas porque senão ser-nos-á interdito a passagem.

 

Reembarcamos com o ar purificado, notava-se nos vizinhos da anciã expedidora de gases uma indisposição.

 

A vigilância nasal foi redobrada por todos os passageiros, a velocidade do machimbombo progredia, no asfalto agora atapetado.

 

“arro, arro” – responde uma passageira ao telefone, falando em cinyungwe¹

 

Logo depois um passageiro solicita que o motorista pare, chegou ao seu destino, são perto das 15h00, a chuva cai de mansinho.

 

“Chegamos à Maputo?” -  questiona-me um velhote.

 

“Não” - digo com um sorriso, descobrindo que ele ignora a distância real que ainda falta.

 

“Só chegaremos ao anoitecer” -  remato para eliminar a ansiedade do senhor.

 

Um regozijo colectivo sucede em Massinga aquando do desembarque da anciã libertadora de gases, suspiramos todos aliviados, e como bónus o motorista permite que recorremos a um quiosque para adquirirmos manjares. 

 

“Só têm dez minutos” – dita o motorista.

 

Partimos com os comensais abocanhando seus nacos de frango, outros bebericando seus refrigerantes.

 

Nota-se agora um certo entusiasmo entre os passageiros, para tal concorre muitos factores, um dos quais é saber da proximidade dos nossos destinos, outro com certeza é ter deixado para trás a senhora com problemas intestinais.

 

O machimbombo alcança a cidade da Maxixe com o crepúsculo roubando a luz do dia, descreve uma curva num pequeno arriamento com ligeira inclinação para direita, a altura do autocarro permiti-nos deslumbrar a baia e a cidade de Inhambane.

 

Com os farolins espreitando o asfalto auxiliando o experimentado motorista, o machimbombo ia ganhando terreno.

 

“Xai-Xai” – diz um passageiro.

 

Olho para o relógio, são 19h30, congratulo secretamente o motorista.

 

A proximidade do destino conferia uma certa animação aos passageiros, uma mudez voltou a habitar o autocarro, depois roncos assaltam a audição dos viajantes que ainda não dormiam.

 

As 22h22 chegamos finalmente a cidade de Maputo, a azáfama que caracteriza a urbe já havia sido engolida pela noite.

 

¹cinyungwe é um idioma bantu falado por mais que 400 mil pessoas em Moçambique, principalmente na margem sul do rio Zambeze, na província de Tete, desde a fronteira com a Zâmbia até Doa no distrito de Mutarara. (extraído https://pt.wikipedia.org/wiki/Nhúngue)

segunda-feira, 28 outubro 2019 06:20

A culpa é do sistema eleitoral

Eu acho que, em condições normais, cada actor do processo eleitoral tem as suas tarefas e, por isso, as suas responsabilidades. As tarefas são tão distintas que não se misturam e nem se confundem.

 

Aos órgãos de gestão eleitoral - no nosso caso, a Cê-Ene-É e o STAE - por exemplo, cabe-lhes a tarefa de gerir todo o processo. São eles que organizam e monitoram as eleições. São eles que devem garantir a qualidade e a ética no processo. Dito mais barato, é dever deles evitarem fraudes.

 

Os candidatos e os partidos políticos são simples concorrentes. A sua responsabilidade no processo é de legalizar a sua candidatura, como manda a lei, promover o seu manifesto eleitoral e mobilizar simpatizantes. Ou seja, vender o seu peixe para conquistar votos.

 

A tarefa dos eleitores é legalizarem o seu direito de votar junto dos órgãos de gestão eleitoral, ouvirem os manifestos eleitorais dos partidos políticos, ajudarem - de livre e espontânea vontade - os seus partidos a promoverem os seus manifestos eleitorais e, no dia da votação, escolherem o candidato e/ou o partido que quiserem.

 

A Polícia tem o dever de garantir a ordem e tranquilidade ao processo. Quando a segurança está em causa, a Polícia é accionada pelos órgãos de gestão eleitoral locais no sentido de normalizar a situação.

 

Quando os candidatos ou partidos políticos notarem uma violação ou ilícito eleitoral grave, levam o caso aos tribunais locais existentes. Os tribunais julgam o caso - sem pressão interna ou externa - segundo a lei.

 

O Conselho Constitucional tem a última palavra sobre o processo. Dependendo da informação factual que tem, o Cê-Cê pode validar ou não os resultados apurados pelos órgãos de gestão eleitoral.

 

E os observadores eleitorais, qual é o seu papel? Resposta: observar, e ponto final. Observação eleitoral é observação mesmo, no verdadeiro sentido da palavra. O trabalho de um observador eleitoral (a sociedade civil) é como o de uma câmera de vigilância que se coloca no portão de uma residência. Cabe a câmera observar e gravar tudo o que acontece dentro do ângulo e direcção em que ela foi montada. Querendo, o proprietário pode ver o vídeo do que aconteceu no seu portão nas últimas 24 horas. E a câmera vai mostrar quem entrou e quem saiu, com "quem" ou "o quê" entrou e saiu e a que horas. O vídeo vai mostrar um ladrão a envadir o portão e a tirar televisores de dentro, mas não vai pegar o ladrão porque não é sua responsabilidade. Se o proprietário quiser pegar ladrões, compra um bulldog ou contrata malta Dgi-Fô-Esse.

 

Então, não é responsabilidade do observador eleitoral pegar e algemar pessoas que cometem crimes ou ilícitos eleitorais. Cabe-lhe relatar o que viu ou ouviu com factos. Querendo ou dependendo da gravidade e veracidade dos factos, os órgãos de gestão eleitoral ou o Conselho Constitucional pode usar essa informação para sustentar as suas decisões.

 

O jornalista reporta os acontecimentos que estão a acontecer durante o processo mediante as evidências que tem. O jornalista fala dos factos ao público. Se vir alguém a cometer um ilícito eleitoral, ele pode filmar ou fotografar ou sei-lá para em seguida reportar ao seu público como tudo aconteceu. Também não cabe ao jornalista algemar ladrões de voto. Quem faz isso é a Polícia.

 

Se for a reparar com alguma atenção, vai notar que em Moçambique tudo e todos se misturam. Em nome da DESCONFIANÇA - sublinhe-se "desconfiança" - está tudo um caos. Todos querem gerir o processo, todos querem fazer campanha, todos querem julgar, todos querem algemar, todos querem observar e todos querem reportar. Ou seja, todos estão em todo o lado. Todos querem fazer tudo.

 

A FRELIMO, a RENAMO, o Eme-Dê-Eme, a Pê-Ere-Eme, a sociedade civil, os jornalistas, os juízes, os padres, os pastores, os sheiks, os bispos, etecetera, etecetera, estão todos na Cê-Ene-É a gerirem os processos eleitorais. Em nome da DESCONFIANÇA, todas as equipas enviaram alguém à FIFA para ver as coisas de perto e evitar batotas. Em nome da DESCONFIANÇA, as duas equipas em campo têm seus homens na equipa de arbitragem em campo e na equipa do vídeo árbitro.

 

Hoje em dia já não se entende quando se diz Comissão Nacional de Eleições. Já não se sabe a quem se refere. É que a Cê-Ene-É são todos. Dizer que a Cê-Ene-É orquestrou a fraude é dar um tiro no próprio pé. Culpar a Cê-Ene-É é culpar-se a si mesmo.

 

A culpa é do sistema eleitoral que é obsoleto. Este sistema eleitoral não serve para nada. Um sistema eleitoral onde todos os concorrentes gerem não é sustentável. Um sistema eleitoral assim torna-se cada dia mais suspeito. Um sistema eleitoral assim é uma autêntica farsa. Ela própria é uma fraude. Ninguém pode alegar falta de transparência nas decisões da Cê-Ene-É ou do Cê-Cê porque todos estão lá.

 

A cada pleito temos uma nova lei eleitoral que só serve para enfiar mais membros ou na Cê-Ene-É ou no Cê-Cê e etecetera. Ninguém tem a coragem de debater o sistema eleitoral em si. O nosso sistema eleitoral é uma vaca leiteira. É uma estrutura montada para acalentar estômagos partidários. Uma geringonça criada pela FRELIMO e alimentada pela RENAMO para acomodar as suas panças e fazerem das eleições um teatro mal ensaiado. 

 

Não me espantarei, se na próxima lei eleitoral a RENAMO proponha a colocação dos seus membros na Rádio Moçambique, na Televisão de Moçambique e no jornal Notícias.

 

Mesmo que os resultados sejam invalidados pelo Cê-Cê e a eleição seja repetida, não vai mudar nada. O problema não é o Abdul Carimo, não é Nyusi, não é Ossufo, não é a Polícia, não são os Eme-Eme-Vês, não são os observadores nem jornalistas. O problema é o sistema eleitoral no seu todo. Não é funcional. É um sistema de tacho.

 

Para a credibilização do processo eleitoral é imperioso que o sistema seja profissionalizado. É claro que a FRELIMO não está "bizi" com isso, mas também a RENAMO não quer discutir o assunto. Neste quinquénio a RENAMO se preocupou em discutir apenas a descentralização, ou seja, a eleição de governadores, e nos próximos 5 anos estará entretida com a eleição de administradores distritais. Com este sistema eleitoral obsoleto isso não vai mudar nada. A FRELIMO continuará com as suas retumbâncias eleitorais. É ela que tem mais padrinhos na cozinha.

 

Espero ter sido entendido.

 

- Co'licença!

sexta-feira, 25 outubro 2019 07:13

Eleições enquanto (in)certeza

Desde cedo, as eleições constituíram a premissa base de debate e estudos em ciência política. O “acto do voto” foi tido como fundamental para o exercício do poder através da submissão e da dominação. Entre outras variáveis, a incerteza constitui elemento fundamental para o estabelecimento de um “jogo eleitoral” em que os concorrentes possam competir em iguais circunstâncias, mesmo que tal não seja de todo desejável ou alcançável quando se pretende buscar o poder. Como aponta Przeworski (1984: 84), as posições assumidas pelos distintos actores políticos não podem determinar “os resultados do processo político”, de tal sorte que “numa democracia ninguém pode ter a certeza de que seus interesses serão vencedores em última instância”. Em uma democracia, portanto, “todos devem submeter seus interesses à competição e à incerteza”.

 

Conscientes da nossa própria limitação, somos susceptíveis de omitir outras dimensões de análise. Assim, a partir deste comentário pretendemos sugerir alguma explicação em torno do recente processo eleitoral, exercício a ser feito em dois ângulos que devem ser lidos como complementares:

 

  1. Sobre os actores do processo

Numa eleição podem existir vários actores, sendo que os primeiros e fundamentais são os que directamente participam na qualidade de eleitos e eleitores. Nestes podemos adicionar os órgãos de administração e gestão eleitoral (OAGE: STAE & CNE), os quais são fundamentais para a organização de todo o processo, que em termos de ciclo não se circunscreve ao momento e dia da eleição em si. Do que sobre as eleições de 15 de Outubro se pode extrair, verificou-se o que chamamos de “confiança nua” entre os três actores acima mencionados: OAGE, eleitores e eleitos, estes últimos identificados como candidatos e partidos políticos. Notou-se e continua a registar-se tamanha insegurança sobre o que cada actor deve fazer para garantir a incerteza eleitoral (o debate em torno dos 300 metros foi disso um exemplo). Enquanto os eleitores depositam pouca esperança em quem votam, os eleitos pouca ou nenhuma confiança encontram em quem deve organizar o processo. Os partidos não conseguem cumprir a função de limitar as escolhas do eleitorado, deixando-os assim numa situação de total e completa discotecagem no mercado eleitoral.

 

Embora não se conheçam os dados da participação eleitoral na sua globalidade, podemos avançar com a hipótese segundo a qual o crescente descrédito que existe entre os eleitores e eleitos deve-se ao vazio de propostas que se verifica nos políticos na sua globalidade, sendo que os moçambicanos não são excepção. De forma cada vez crescente, emergem “novas” formas de participação política que já não encontram acomodação na “política usual” que é exercida dentro dos partidos políticos tal e qual conhecemos e por meio do voto.

 

No que toca aos OAGE excluímos desta análise as propostas que se colocam sobre a reforma que se deve exercer, pois pensamos que não será possível encontrar modelo adequado se antes não soubermos o que realmente se busca numa eleição: a incerteza sobre o(s) vencedor(es). Pensamos que nenhum modelo será eficaz se não conseguir garantir que os vencedores não sejam conhecidos antes da realização do próprio escrutínio. Entendemos ainda que os OAGE não são um corpo estranho ao processo em si, eles emergem e se constituem a partir do próprio sistema, sendo que a sua análise deve ser vista como um todo holístico. In fine, não nos parece que o debate central se coloque ao nível do actual modelo dos OAGE.

 

  1. Sobre a resistência à mudança

Para explicar a nossa segunda hipótese nos vamos apoiar aos estudos feitos no campo da administração pública quando abordamos as possíveis razões da resistência à mudança dentro de uma organização. Assim, podemos sublinhar que o processo de mudança envolve a combinação de vários factores, sejam internos ou externos, decorrendo de forma individual ou colectiva nas organizações, o que vai desde alterações na tecnologia, implantação de programas de qualidade, mudanças na gestão, fusão, alterações nas leis por meio do governo, alterações de máquinas, o que exige adaptações, mudanças de atitude e de comportamentos por parte dos funcionários tanto da base como do topo. As fontes de resistência individuais à mudança residem nas características humanas básicas, como percepção, personalidades e necessidades.

 

A resistência à mudança começa sob certas condições: falta de clareza (os indivíduos reagem quando recebem uma informação incompleta sobre modificações que as afectarão); percepções diferentes sobre o motivo da mudança (a tendência é ver apenas aquilo que se espera ver); pressão de forças contraditórias (surge na comunicação entre os líderes e os gerentes quando o funcionário é pressionado a incorporar novos padrões em pouco tempo e estes novos padrões não estão suficientemente claros); hábito, segurança, factores económicos (medo de redução dos rendimentos); medo do desconhecido e processamento selectivo de informação (os indivíduos passam a processar selectivamente as informações para manter suas percepções intactas, elas ouvem só o que querem ouvir).

 

Colocadas as premissas acima, podemos tomar os partidos e candidatos concorrentes como organizações onde os eleitores são seus funcionários. Nessa mesma organização, antes das eleições gerais de 2019 o gestor chamava-se Frelimo (e seu candidato presidencial), sendo que a cada cinco anos se deve renovar o mandato, e dessa vez chegou-nos como proposta os partidos Renamo, MDM e AMSUI (e seus candidatos). Sobre as propostas pensamos ser necessário colocar as seguintes questões, as quais não temos respostas: estariam os funcionários (eleitores) dispostos a exercer a mudança? que garantias eram colocadas para que os funcionários (eleitores) pudessem exercer tal mudança? com que intensidade e clareza os funcionários (eleitores) receberam informação capaz de os levar a exercer alguma mudança? seria, portanto, a mudança desejável ou oportuna?

 

Concluímos que a presente eleição foi uma oportunidade que permitiu levantar mais questões do que respostas que em momento oportuno merecerão estudos aprofundados. Por hora levanta-se a necessidade de repensarmos a estratégia de como exercemos a actividade política em Moçambique, a mesma que não deve se circunscrever apenas ao momento eleitoral per si. Com o advento da multiplicação de espaços e práticas de participação política (para além do voto), exige-se maior dinamismo aos actores da cena política, sendo que a propaganda eleitoral é chamada como fundamental para além dos quarenta e três dias de campanha eleitoral oficialmente estabelecidos no país, sob pena de esperar colher um determinado feedback a partir de uma demanda incorrecta.

NandoMeneteNum texto anterior falei da reconfiguração do vocabulário popular por conta de narrativas de acontecimentos políticos, internacionais e nacionais. Hoje e no contexto das recentes eleições volto a partilhar uma parte (e adaptada) do referido texto e com alguns acréscimos cujo título também foi sujeito a ajustes para o do presente texto.

 

Na segunda guerra do golfo/Iraque (2003) foi despoletado um debate cujo foco era saber se os americanos atacariam Bagdade, a capital iraquiana, por ar ou por terra. E creio que um general americano – se a memória não me atraiçoa - tratou de encerrar o pretenso debate valendo-se da frase: “O objectivo é Bagdade!”. E de que era indiferente se a invasão fosse terrestre ou aérea. Depois, com a tomada de Bagdade e do resto do Iraque, era frequente que se registassem - num e outro local - ataques dos iraquianos que o mesmo general apelidou de “Bolsas de Resistência”.

 

Certo dia e no decurso de preparativos de um evento de “copos & papo” de um grupo de amigos subsistia a dúvida em relação a compra de um barril de cerveja 2M ou de Laurentina Clara, atendendo a austeridade imposta pela falta de verba. O impasse foi sanado quando um dos amigos – que adequando os novos termos da guerra do golfo ao vocabulário - sentenciou à americana: “Não interessa se o barril é de Laurentina Clara ou de 2M: o objectivo é Bagdade!”.

 

O dia “D” para os “copos & papo” amanheceu com chuviscos. Um elemento de avanço - já no local de batalha e preocupado com a chuva - ligou para um outro a manifestar alguma apreensão quanto a comparência do resto da legião. E ele só ficou descansado quando do outro lado da linha ouviu que a chuva era apenas uma “Bolsa de Resistência” e insignificante para impedir o assalto à “Bagdade”. Nesse dia “Bagdade” foi tomada de forma retumbante e inequívoca.

                                                                                                                            

Um outro episódio e à reboque de acontecimentos políticos resulta da sequência e contexto da assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP), nomeadamente, no que se refere ao acantonamento das forças militares das partes signatárias - Governo e RENAMO - em quartéis/bases até que fossem desmobilizadas ou reorientadas.

 

O mesmo conceito – acantonamento – foi acomodado no vocabulário de uma determinada residência universitária onde os quartos eram partilhados por dois a três estudantes. Nos finais de semana era comum um visitante chegar à dita residência e encontrar um ou dois quartos apinhados com a maioria dos estudantes. Segundo eles, estavam acantonados por força de outras assinaturas – as da paz biológica – que decorriam em paralelo e de forma sonorosa nos restantes quartos.

 

Recordei-me destes dois episódios a propósito das recentes eleições (15 de Outubro de 2019) e por duas situações. A primeira prende-se com as recomendações “votou, ficou” (no local) e “votou, partiu” (para casa) que se assemelham ao acantonamento forçado que acontecia na residência universitária em dias de flexões locais. E a segunda situação tem a ver com o enchimento das urnas. Isto e considerando os relatos de que as urnas foram enchidas, é suposto que a palavra de ordem tenha sido - nada mais e nada menos - a célebre frase: “O objectivo é Bagdad!”. 

 

Por fim e por alguma razão - na residência universitária e nos dias aludidos - a opção de ficar no local do voto não era necessariamente proibida. Contudo, há quem preferisse ai acantonar e observar todo o processo in loco, tal “bolsa de resistência” (ou de assistência na esperança do avesso “ficou, votou”), mas - no final do dia - insignificante para travar a grande e ofegante marcha pela tomada completa de “Bagdade”.

 

PS. Este final de semana (25, 26 e 27 de Outubro) e face a agressividade propagandística do “Eixo Jardim-Bobole” (CDM-Heineken) paira mais um impasse em relação a escolha do que sorver para deleitar a abertura da estação de verão. Mas seja como for: “O objectivo é Bagdade!” e tenha um final de semana feliz!

terça-feira, 22 outubro 2019 07:44

Chifunde... outra vez... agora mais do que nunca

Eu morava no bairro Canongola, nos arredores da cidade de Tete, e tenho o orgulho de ter assistido ao lançamento da primeira pedra para a construção da Ponte “Base Kassuende”, em 2010, na fase crucial da governação de um presidente audaz, que entretanto poderá ter sido traído pela rede de emelhar da ganância. Guebuza era a águia que percebeu na sua inteligência, que o coração da cidade de Tete não podia continuar a ser flagelado por camiões pesados, na sua passagem incessante para Zâmbia e Malawi. Por isso decidiu erguer a “Base Kassuende”, com  o fim de  desviar  os mastodontes que também contribuiam para a destruição  da ponte Samora Machel, que  une as duas margens  do grande Zambeze, abraçando a urbe e o bairro Matundo, para gáudio dos tetentes.

 

Eu estava lá, naquele torrão, praticamente nas mãos do Daniel da Costa, o escritor  exaltado  por Fernando Leite Couto, como sendo um dos maiores cronistas do nosso país, ao lado do Fernando Manuel. Couto disse de forma descomplexada, clara,  obedecendo a honestidade intelectual, que  Da Costa detém o domínio da língua portuguesa, e ferramentas literárias que fazem dele um cronista invejável. Na verdade eu tenho inveja dele. Inveja do tipo “quem me dera ser como este manyúngwe de um raio”! Ou como Fernando Manuel. Aliás, estes dois, são as minhas principais velas na dissipação da escuridão.

 

Foi uma estadia efémera, que me permitiu, mesmo assim, conhecer boas pessoas. Melhores do que eu. De entre elas a Chifunde, mulher  delicada, de cuja amizade sou indigno. Chifunde é uma almofada de sumaúma, capaz de proporcionar repouso aos errantes mais exaustos e inúteis, como eu. Sem exigir nada em troca, senão fazer votos de que depois de recobrar as energias, a etapa a seguir seja livre de escolhos.

 

E porque a vida é inesperada, Chifunde também é inesperada.  Ligou para o meu celular na manhã de ontem, nove anos depois de nos termos despedido com um “vai com Deus, meu amigo”. E ainda me lembro do profundo abraço que me fez acreditar, mais uma vez, de que a vida é bela.

 

- Sabes quem fala?

 

- Desculpa, não estou a ver quem é!

 

- Esta voz não te lembra nada?

 

Na verdade a voz lembra-me alguma coisa. Pelo sotaque pressuponho que a mulher que fala do outro  lado seja de Tete. Mas quem será? O Daniel da Costa já me tinha dito que o mais importante não é tu teres muitos contactos na tua agenda, mas estares registado em agendas de muitas pessoas. E eu consto na agenda desta criatura cuja voz me empolga. Ainda por cima nas primeiras horas horas da manhã, quando estou a preparar-me para  a caminhada de manutenção das longarinas.

 

- Podes falar mais um pouco?

 

- Estou triste, amigo, por não te lembrares desta voz que gostavas de ouvir. Dizias que, quando eu falava,  parecia o kwatchena (amanhecer)!

 

- Chifunde, meu amor!

 

- Quando é que vens me visitar, meu bem?

 

- Tu guardaste o meu número durante este tempo todo?

 

Era uma pergunta estúpida que eu fazia. Impensada. Que até podia ferir o coração da Chifunde. Mas ela, sóbria,  mostrou-me, uma vez mais, que na verdade não percebo determinadas dimensões.

 

- Eu gosto muito de ti, meu saudoso amigo. Cada palavra de tudo o que me dizias, era um grão de ouro, que  juntei e guardo para sempre no meu coração.

 

- Chifunde!

segunda-feira, 21 outubro 2019 14:24

O cota é lixado!

O resultado que à conta-gotas é publicado pelo braço operacional (STAE) da Príncipe Godido, a rua da sede da Comissão Nacional de Eleições (CNE) – por sinal o nome do príncipe herdeiro do Império de Gaza (outra vez Gaza) - e referentes às eleições de 15 de Outubro lembra-me um outro resultado e de matéria similar na arte da conquista.

 

E bem a propósito quem não se recorda de situações corriqueiras das noites de Maputo (e não só) em que uma prendada garota é cobiçada até a exaustão por todos que se fazem à discoteca. Por toda a noite e por ela passam todos – na sua maioria jovens e adultos - exibindo atributos que se resumem aos de ordem física, financeira (com algum esforço) e papista. Entre os concorrentes algumas apostas são feitas cujo vencedor será o afortunado que lograr sair com a prendada garota.

 

Uma certa noite - enquanto os jovens concorrentes afinavam as estratégias e ajustavam as apostas - um cota aproveita a brecha e se aproxima da prendada garota do dia. Ele sussurra algo no ouvido dela, arrancando-a um sorriso de matar. Em segundos os dois estavam na pista de dança. Aqui o cota capricha e incha a inveja dos mais novos. E estes – sem ideias para o contra-ataque – reconhecem que o adversário é de peso, mas concluem que não os punha em causa. “O cota não é uma ameaça, “O cota não passa de uma bolsa de resistência” e que “ O cota é um cansado”. Eram os prognósticos dos mais novos. E os novos mais velhos – feitos em grandes analistas – ficavam pelo refrão de que a dama aceitou o passo de dança apenas para se exibir e os provocar. “Uns fanfarrões”, diria o cota.

 

E o cota - acostumado aos comentários desabonatórios e sobre os quais nem liga - depois de exibir os seus dotes de dançarino e em grande estilo, acompanha a prendada garota ao seu lugar de proveniência: uma mesa que se transformara em cardápio dos olhares e apetites dos que se achavam elegíveis para o assalto às fartas riquezas da prendada garota.

 

Uma hora depois o cota abandona a discoteca. Logo em seguida foi a vez da prendada garota fazer o mesmo, deixando curiosos os ditos elegíveis. E estes se apresam à porta e desta observam a presa a entrar no velho Toyota do cota e não restavam dúvidas quanto ao vencedor da noite. No dia seguinte a confirmação do VAR (Vídeo Árbitro) - no exacto momento em que alguns dos ditos elegíveis viram o cota e a prendada garota de mãos dadas e aos beijos na praia - de que o golo aconteceu e foi legalizado.

 

Em conversa – baixa e alta - os ditos elegíveis e correligionários questionam o que terá aquele cota de excepcional? Todos tinham respostas. Uns e outros alegavam que era o taco acumulado. Outros e uns juravam que eram os anos de experiência do cota na arte da conquista e por isso sabia do que elas realmente gostam. E de outros tantos que citavam truques mágicos, pois o cota só conseguia conquistar à noite e que de dia não via “game”. Enfim, um leque de justificações para contrariarem o sucesso ruidoso do cota na praça.

 

No final da conversa – e por sinal inconclusiva no seu todo - todos os elegíveis e correligionários foram unânimes num único ponto: o cota é lixado! E o “lixado” foi a alternativa a uma outra palavra que por questões de pudor não será aqui chamada. E cá entre nós – mesmo a fechar – e adicionando o outro sucesso ruidoso da praça nada melhor que se recorrer ao latim dos juristas: Quid Juris?