Mas eu não sou o personagem principal nesta trama, também não sou um figurante. Sou o tabuleiro indicado para que todas as cenas passem por mim como nas pontes de betão, onde os camiões de grande tonelagem atravessam, fazendo com que os fundamentos de toda a estrutura estremeçam. Por vezes dá-me prazer vestir a pele que me atribuiram, de um inconsequente, porém noutras vezes sinto que o meu lombo não aguenta, sou frágil demais para suportar este papel, é como se o meu castigo viesse para ficar.
A informação que tenho é de vamos partir às quatro da manhã, então às três estarei de pé para aquecer água no fogareiro à carvão, e foi isso que eu fiz. A minha casa de banho é externa, e em cima da hora fui descobrir que a lâmpada fundiu, está escuro lá dentro. Recorri à lanterna do telefone que me dava a sensação de eu próprio ser um fantasma. Ou seja, não parece real alguém estar a tomar banho às três da manhã, num silêncio em que o único som que se ouve, é da água deslizando pela minha cutis.
Cheguei a pensar que a única pessoa que estaria acordada àquela hora, sou eu. Mas esses pensamentos não me perturbavam, o que me empolgava era a viagem que iria iniciar daqui a pouco. Uma longa viagem que terminaria numa cidade cercada de montanhas pedra, Tete, e eu conheço o percurso que passa pela espectacular cordilheira de Catandica. Do outro lado fica o Zimbabwe, onde se pode entrar também pela fronteira de Cuchamano. Pensava em tudo isto durante um banho que não durou mais do que dez minutos, um banho quente e agradável.
Ao sair da toilett vejo um homem parado em frente à porta da minha casa, na verdade uma silhueta virada de costas para mim, parecia Yupidu, e eu cubro as partes sensíveis com a toalha, entregando o meu tronco à cacimba fria que cai imperceptível, sem deixar, mesmo assim, de ser letal. Perguntei, quem é você!
Quem me responde é o silêncio, mas eu estou animado pela viagem que vai começar daqui a pocuo e já são quatro horas! Há uma rola que arrulha à esta hora e isso não é normal, pode ser sinal de mau agoiro. Ao mesmo tempo o meu telefone retine com um número desconhecido. Um cão que ladra lá fora de forma persistente, mas aqui na zona nenhum dos meu vizinhos tem cão. Sinto cheiro de tabaco aceso, alguém está a fumar.
Mas isto é um turbilhão, e o centro do remoínho sou eu, condenado com pena de tormenta, sem julgamento sem nada, o juiz da causa são os meus actos, os meus caminhos tortos. É por isso que estou aqui apenas com a toalha na cintura, e o tronco do meu corpo sendo molhando pela cacimba que cai em gotas microscópicas. Não consigo mexer-me.
Então já não tenho dúvidas de que estou perante as mandímbulas do lagarto mais frio do planeta, que se ri como as hienas, porém eu vou viajar. Em liberdade. Cantando as músicas copiadas do Salmos.
Em um texto do sociólogo Elísio Macamo uma idosa, que em jeito de nota conclusiva da sua preocupante apreciação sobre a real situação e o rumo do país, pergunta: “Afinal quando é que a independência vai acabar?”
“O rumo do país é tal que exige o concurso de outras forças e estratégias para enfrentá-lo”. Quem o diz é um amigo que nos meses de Agosto faz sempre questão de passar as suas férias na terra natal, no interior profundo da província de Gaza.
“É para renovar lealdades (com os antepassados) e recarregar baterias”. A justificação quando preguntado sobre a razão dos seus “tours d'agosto” à terra. Uma tradição que contrasta com a matriz e cognição ocidental do honorável amigo.
E por ser Agosto, o mês das suas religiosas férias anuais, não me surpreendem os registos audiovisuais da época que desfilam diariamente no seu “status”.
Entretanto, desta vez salta à vista o local das férias por não ser o habitual, mas algures pelo continente europeu. Questionado o detalhe, a pronta resposta: “Os espíritos emigraram e tive que vir ao encontro deles”.
A ser verdade - que os espíritos estão também a emigrar - é caso para secundar a pergunta da idosa ou, no mínimo, que a questão levantada seja o ponto de partida para uma profunda reflexão nacional sobre o real “Estado Geral da Nação”.
PS: Por conta da intensa onda de calor que abala a Europa neste verão, leva-me a colocar a possibilidade de os espíritos/ancestrais africanos estarem mesmo a emigrarem para a Europa. Agora resta saber se emigram em busca de melhores condições de “vida” ou apenas atrás dos seus mais novos descendentes que para lá têm rumado em debandada nos últimos anos.
Confesso que fiquei de rosto rente à barriga quando vi a guita que os diversos partidos tiveram para a campanha eleitoral. Há muita guita neste país. Diga-se uma coisa: nós somos um país pobre, mas cheio de dinheiro. Um país sem grandes saídas, mas que sempre se vira quando o assunto é arranjar dinheiro para distribuir...
Nós somos um país pobre, mas cheio de dinheiro; a frase pode ser complicada, pode ser poética demais; se calhar podia dizer com todos os grumos de saliva: nós somos aquele bêbado que não deixa nada em sua casa, mas, aos fins-de-semana, varre contas e contas em todos os bares. Nós somos a riqueza mais pobre da nossa estupidez.
Só temos dinheiro para a campanha eleitoral. Não temos dinheiro para o professor que faz horas extras e ao fim do mês recebe notas de reclamações, não temos dinheiro para injectar e curar a magreza das contas bancárias dos médicos, não temos dinheiro para meter na algibeira do juiz que martela, todos os dias, a nossa justiça torta e com poucos pregos, não temos dinheiro para o polícia que arrasta a AKM carregada de ferrugem, na baixa da cidade, e assiste aos raptos de boca aberta.
Afinal, anda, nos corredores da campanha eleitoral, tanto dinheiro assim! Afinal, há tantos partidos assim? Eu conheço um tipo que sempre concorre às eleições, de cinco em cinco anos, abre um estaleiro novo no Chamanculo e tem um quintal cheio de carros. Esse fulano é presidente do partido, é também secretário-geral, é também tesoureiro, é também chefe de limpeza da sua sede (sua sede é uma mochila de costas cheia de papéis), é também presidente da liga juvenil composta só por ele próprio, é também membro único da liga da mulher, é também assessor jurídico e ocupa todas as pastas da assembleia geral composta só por ele próprio.
Esse tipo, este ano, teve uma boa guita, uma boa mola. Quando começar a campanha vai fazer o que já nos habituou ali no bairro: comprar pacotes de massa, canetas de feijão, umas caixas de cerveja e pôr os miúdos desempregados do bairro a marcharem com a única bandeira que ele usa há séculos desde que descobriu esse negócio de viver de campanhas. E depois vai pingar uns cartazes em algumas avenidas, estampar umas duas camisetas para ele e a esposa e aparecer na TV sem um mínimo de vergonha para dizer “as nossas delegações estão a trabalhar, vamos ganhar”. Eu acho que ele ainda está estonteado, pois nunca recebeu tanto dinheiro assim.
Infelizmente, em Moçambique, tudo que tem o nome campanha envolve muito dinheiro, muita guita mesmo. Quem nunca viu o mar de dinheiro que anda nas campanhas de vacinação que só terminam vacinando os salários gordos dos coordenadores provinciais sentados nos escritórios? A campanha nacional de combate ao HIV/SIDA, muitas vezes, combate a fome dos chefes, a campanha de combate à malária muitas vezes só serve para construir mansões de chefes no lugar de comprar redes mosquiteiras.
A campanha contra a corrupção só enche escritórios de relatórios e no fim de tudo a corrupção é que vence, pois, fica bem ao canto a rir-se por ter criado mais corruptos quando tentavam combatê-la. Tem sido sempre assim. E agora temos a campanha eleitoral, meu Deus. Tudo que é campanha tem muita guita, em Moçambique. Já agora, quem não se recorda da campanha nacional de vacinação contra a COVID-19 que só fez os chefes sorrir de felicidade e riqueza por detrás das máscaras? Tudo que é campanha tem muita guita…
O último informe sobre o “Estado Geral da Nação” teve o condão de avivar na minha mente o pai de uma colega de escola - tempos da 11ª classe do antigo sistema - que se aproveitando da presença, em sua casa, de colegas da sua filha caçula, convocou-os à parte para um informe sobre os seus feitos ao longo do seu então longo mandato em terra.
No quintal, à volta da fogueira e apenas com a ala masculina, o informe foi feito. Dos dois informes ressalta o número 10: o 10 do décimo informe sobre o “Estado Geral da Nação” do ora timoneiro, e o 10 da décima lavra de descendentes do pai da colega.
Uma outra e segunda coincidência: o pai da colega terminava a fala sobre os seus feitos de ganharão no nascimento de cada um dos seus dez rebentos com uma frase da classe que se tem selado, desde o anterior presidente, os informes anuais sobre o “Estado Geral da Nação”.
No entanto, no fecho sobre o seu décimo rebento, o pai da colega foi um pouco mais além do que uma frase ao dar um forte safanão no instrumento co-responsável pelos seus rebentos, ao mesmo tempo que dizia: a vossa colega foi o último grito deste gajo!
Hoje, três décadas de separação entre os dois informes, ocorre-me o senão do safanão: o fim lamentável de uma gloriosa narrativa. Quiçá a terceira e conclusiva coincidência entre o histórico informe do pai da colega e o ora recente, décimo e último sucessivo informe anual par(a)lamentar sobre o “Estado Geral da Nação”.
Quem somos nós?
Somos o povo. O povo deste país baptizado de Pérola do Índico.
Um povo forte, resiliente, porém cansado e talvez agastado com algumas (na verdade, muitas coisas) que não caberão neste manifesto. Somos o povo deste Moçambique que nos foi dado como pátria, e posteriormente nos ensinaram a amá-la.
A nossa formação política é a moçambicanidade que sente todos os dias, de sol a sol, a falta de comida, transporte, medicamentos, livros, escolas, segurança, até começa a faltar algum respeito e dignidade.
É nosso desejo enquanto povo, que o nosso manifesto chegue às mãos daqueles que detém poder e que irão governar o nosso país. No início, chegamos a pensar e a acreditar que o poder reside em nós, mas o tempo tem se encarregado de mostrar que houve uma mudança de direcção, e que, a demissão do povo outrora anunciada, é uma realidade factual. Se não houve total mudança, parece estar em curso e, a passos galopantes.
Pode parecer, à primeira vista, um manifesto romântico, e talvez o seja. Queremos neste curto documento influenciar os políticos do nosso belo e vasto país e aos homens de boa vontade. Fazemos por amor a causa nacional e puro patriotismo; porque temos ainda aquela réstia de esperança; porque vivem e ecoam em nós os ensinamentos do nosso Marechal Samora Moisés Machel.
Na carta apelidada de Carta ao Pai Natal que religiosamente publico no mês de Dezembro, tento lançar um olhar sobre a nossa sociedade, nossa vida política, nossa governação, nossos pecados e nossos legados. E quanto mais cartas escrevo, mais vontade de continuar a minha radiografia social e política. Socorri-me de algumas cartas já publicadas, para emprestar alguns pontos ao nosso manifesto.
Uso aqui, o termo “nosso” ainda que, sem permissão dos cerca de 33 milhões de Moçambicanos que vivem um dia-a-dia caracterizado por lutas frenéticas para vencer a pobreza extrema e carência dos bens mais básicos para uma vida condigna; bens inerentes ao que chamamos de dignidade humana e bem-estar social. Entendo que cada um deles (dos moçambicanos) irá se rever no que aqui apresentamos.
A pobreza ainda grassa o nosso país e são aos milhões os moçambicanos privados do básico e do mínimo nível calórico e proteico necessário para que haja um funcionamento normal e vital – (actualmente consta que cerca de 3,3 M de moçambicanos estão em crise de escassez alimentar e deficiência nutricional). Milhões de moçambicanos que não tem acesso a água potável e ao saneamento seguro; enfim, são mesmo aos milhões que não tem educação formal, serviços básicos de saúde, transporte e muito mais.
O nosso manifesto não é e nem deve ser confundido com um peditório. Não achamos que devemos pedir, o que deveria ser nosso por direito.
É um grito dos menos favorecidos; um grito por mais segurança, mais justiça social, mais redistribuição equitativa da riqueza, e um grito por mais respeito pela pessoa humana.
O período que o país vive, é marcado por uma efervescência política e social típica de época eleitoral – talvez o período mais áureo depois das primeiras eleições que experimentamos enquanto país ensaísta do modelo democrático – falo das eleições de 1994.
A efervescência política é, também, caracterizada pelas movimentações partidárias e dos seus candidatos, seja em ações, seja em intervenções e aparições públicas – e o denominador comum é a conquista do eleitorado e do seu valioso voto. A persuasão e a caça ao voto alias dominam os holofotes e a agenda actual.
Nesta época somos todos povo, entendemos os problemas do povo, vivemos como o povo, compadecemo-nos com o sofrimento do povo, e fingimos entender o que o povo pede.
Mas e depois?
Terminada a azafama, contados os votos e publicados os resultados finais, vivemos mais do mesmo: tomada de posse, formação do governo, distribuição de posições e a corrida desenfreada ao tacho, que parece não ser pouco. Em muito pouco tempo, esquecem-se que pretenderam e quiseram ser povo de ocasião; as andanças e passeatas com povo, são feitas de forma diferente, com cordões militares e escoltas intermináveis. Porque o povo que conferiu poder aos dirigentes, é, já nocivo e pode ser uma ameaça à integridade dos políticos, é imperioso proteger-se dele em nome da segurança, do protocolo e de toda culpa que carregam enquanto gestores da coisa pública. Poderia acrescentar que há medo de aproximação do povo, um medo causado pelo peso na consciência devido a má gestão da coisa pública, corrupção, nepotismo, clientelismo e putrefação da máquina estatal.
Neste vaivém todo, nós “o povo”, com ou sem filiação político-partidária, experimentamos ciclicamente, promessas cuja materialização quase sempre se esbarra numa realidade cada vez mais asfixiante – como algumas vitórias de certos pleitos.
Por um lado, o desejo de ver mudanças na vida da sociedade, aliado a esperança e a fé quase inabalável de fazer desenvolver Moçambique, e por outro, a ideia e desejo de ver alguma alternância governativa, fazem com que se deposite o maior recurso enquanto eleitores (o voto) neste ou naquele candidato. E porque não há almoços grátis, os shows, marchas de campanha, almoços e jantares beneficentes, camisetes, bonés, capulanas, etc., têm um preço: cinco ou mais anos de (des) governo, de neocolonialismo nacional, de exploração do homem pelo homem, de empobrecimento programado e progressivo da sociedade, com a degradação do sistema de educação e destruição do sistema de saúde.
Assim caminharemos rumo a celebração dos cinquenta anos da nossa mítica noite na Machava – o 25 de Junho de 1975.
O nosso manifesto é político, social, económico e acima de tudo humanístico. É de simples compreensão, alcance e materialização. Não obedece a uma estrutura metodológica convencional e não apresenta pontos formais e estilísticos que os partidos políticos concebem depois de longas reuniões de discussão e deliberação. O nosso manifesto não apresenta páginas bonitas, mas espera que se possa traduzir em páginas bonitas para o presente e futuro do nosso país.
Começamos por pedir mais empatia com povo – somos 33 milhões hoje, e amanhã seremos muito mais. Se os modelos governativos, as políticas públicas, leis e instrumentos de governação não levarem em consideração as demandas e as reais necessidades do povo, seremos uma eterna promessa enquanto país. Seremos uma página nos anais da história; um país lembrado como um exemplo perfeito da maldição de recursos, da má governação e da fraca ou inexistente vontade política. Talvez até a literatura futura irá catalogar-nos como um exemplo de despesismo e de produção de novos ricos num contexto extremamente pobre.
O nosso manifesto não pede promessas nem compromissos vazios; pede verdade e responsabilidade; pede que se pense no povo antes de tudo e que se leve o povo para o centro da reflexão. O nosso manifesto diz e acredita que, todos juntos podemos construir um Moçambique forte, próspero e seguro – Um Moçambique em que os seus filhos não sejam forçados a migrar por desgosto e por descontentamento causado pela ausência de oportunidades e pelas más condições criadas ao longo de décadas, por uma governação que tarda em acertar o relógio; Um Moçambique em que àqueles que optem por ficar, não fiquem por falta de alternativas, mas por um desejo de ser mais um braço entre os milhões e uma só força que nos vai ajudar a vencer todas as adversidades.
Não deixemos Moçambique transformado em um meme, numa caricatura e numa sátira.
Por: Hélio Guiliche (Filósofo)