Mais uma vez, estamos diante de um escândalo cabeludo, que abala o Sector da Educação do nosso País. O Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH) chamou a imprensa, no Domingo (29.05), para pedir desculpas aos encarregados de educação e alunos, face à onda de revolta social movida por erros graves verificados em alguns livros do Ensino Primário.
Na ocasião, a Porta-voz do MINEDH, Gina Guibunda, anunciou a criação de uma Comissão de Inquérito e, por fim, uma grande nova – produção de Erratas para colocar em 941.700 livros da disciplina de Ciências Sociais da 6ª Classe; ao que tudo indica, mais livros possuem erros graves e injustificáveis. E o mais engraçado, diante de tudo isso, é a forma banal e descarada como essa informação foi apresentada – “Vamos colocar Erratas nos manuais (livros) em causa!”
Aquela afirmação, vindo de uma mãe, tia, avó, esposa de alguém e, sobretudo, de uma gestora da coisa pública, demonstra que estamos, de facto, a brincar de governar. É por isso que a mensagem deixou todo cidadão atento e preocupado com o desenvolvimento deste País escandalizado.
Na sua comunicação, ela reconfirmou, mais uma vez, que os nossos gestores de educação não são amigos da leitura, daí terem deixado passar erros graves como aqueles, que estão a ser tratados como simples gralhas. Com um livro repleto de erros atrás de erros, a Porta-voz do MINEDH teve a coragem de vir ao público, espalhar sua lata, e dizer que colocariam Erratas nos manuais, ou seja, milhões de Erratas!
A ser assim, e se a moda pegar – acho que deveríamos produzir milhões de Erratas e colocar em muitas coisas neste País. Imaginem a forma como quase todas as coisas vão sendo e são feitas por aqui, na terra do deixa andar… Portanto, decidamos colocar Erratas:
- Na Constituição da República de Moçambique (CRM);
- Nos diversos Acordos de Paz entre o Governo e a Renamo;
- Nas Leis específicas e nos regulamentos normativos que norteiam a sociedade moçambicana;
- Em todos os manuais de história e língua portuguesa; nas monografias, dissertações e teses científicas; nos manuais de geografia, entre outros;
- Nos certificados e diplomas que as escolas, os institutos e as universidades passam aos alunos e estudantes finalistas que foram (de)formados;
- Nos discursos lidos pelo Presidente da República, pela Presidente da Assembleia da República, pelo Primeiro-Ministro, pela Procuradora-Geral, e por tantos outros;
- Nos documentos de identificação e de trânsito mal escritos;
- Nos curricula de formação de professores, médicos, polícias, militares, enfermeiros, jornalistas, juristas, magistrados, ambientalistas, engenheiros, teólogos, agrónomos, informáticos, educadores de infância, assistentes sociais, sociólogos, antropólogos, gestores administrativos, alfandegários, aduaneiros, serventes, motoristas e políticos – deve-se produzir milhões de Erratas para corrigir tudo que temos assistido nesta martirizada terra!
- Sabem porquê? – Somos um País em que se vive de faz de contas. Do espírito de deixa-andar. Da mão leve. Do cabritismo. Uma terra onde se normalizou a irresponsabilidade. A incompetência, a falta de respeito pelo povo, a indignidade do cidadão, o espírito de deixa-andar e tantas outras coisas que enojam um cidadão decente e preocupado com o desenvolvimento e o bem-estar dos cidadãos moçambicanos de hoje e do amanhã.
- Que coloquemos Erratas na Bandeira Nacional. Nas notas do nosso Metical. Erratas nas tabelas e taxas de impostos que aceleram a nossa pobreza. Erratas nos preços dos produtos de primeira necessidade. Erratas na conduta dos políticos e governantes. Erratas nos preços de portagens que nos sufocam. Erratas nos relatórios triunfalistas de sectores que nada fazem e passam a exibir fotos de feitos inexistentes – passemos Erratas em tudo! Talvez assim continuemos a fingir que estamos a trabalhar.
E se a saga pegar, nos próximos dias, poderemos vir a ser uma “República das Erratas”. Mas caso queiram mudar o cenário e aliviar a nossa consciência, o primeiro passo que se deve tomar é queimar todos os livros. Banir do Sistema Nacional de Educação (SNE). Processar todos envolvidos, inclusive a autora e sua equipa. Convocar um leque de especialistas isentos e professores da velha guarda para começarem a produzir novos manuais, que serão organizados, monitorados, impressos e distribuídos por gente nova e comprometida.
É necessário, também, exonerar a Ministra Carmelita Namashulua e toda a sua equipa folgada e que está nas direcções. Desmantelar a quadrilha e os esquemas montados naquele sector. Desvendar os actores envolvidos nestas negociatas e reformular todo Sistema Nacional de Educação (SNE).
Tratando-se de um sector tão importante, a revolução para o nosso Desenvolvimento Humano – que passa pela formação do Homem Novo e um moçambicano reconfigurado – há décadas almejado na Pérola do Índico, deve começar lá e já; caso contrário, a desgraça continua e as pragas do Egipto continuarão a assolar-nos!
A educação é um direito fundamental e, ao mesmo tempo, um direito humano, do qual depende o livre exercício e gozo de outros direitos humanos conexos, incluindo o direito ao desenvolvimento, o direito à informação, à participação pública, o direito ao trabalho, à liberdade de pensamento e de escolha do que se pretende ser e fazer, sobretudo, profissionalmente. A educação constitui um instrumento de poder para os cidadãos que lhes permite controlar o curso das suas vidas e contribuir eficazmente para o desenvolvimento da nação. A falta de educação básica ou a má qualidade de formação afecta os conhecimentos dos cidadãos sobre o ambiente, saúde e higiene, o que impacta negativamente sobre a qualidade das suas vidas. A negação do direito à educação nas suas diversas formas, que abrange a má qualidade de ensino, é também denegação do desenvolvimento do pleno potencial dos cidadãos e da participação significativa na sociedade.
O direito à educação enquadra-se essencialmente na categoria dos direitos económicos, sociais e culturais e está plasmado no artigo 88 da Constituição da República de Moçambique (CRM) nos seguintes termos:
Por sua vez, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP), de que o Estado moçambicano é parte, determina no n.º 1 do seu artigo 17 que: “Todas as pessoas tem direito à educação.” O artigo 22º da mesma Carta consagra o direito ao desenvolvimento nos seguintes termos:
Este direito ao desenvolvimento está em grande medida relacionado com o exercício e gozo do direito à educação que deve ser acessível, aceitável e de qualidade para a edificação de uma sociedade de justiça social, de bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos, conforme preconiza a alínea c) do artigo 11 da CRM.
A garantia e a salvaguarda dos direitos humanos, dos direitos e liberdades fundamentais cabe, em primeira linha, ao Estado, seja à luz da CRM ou dos instrumentos internacionais de direitos humanos de que Moçambique é parte.
Aliás, determina o n.º 1 do artigo 56 da CRM que: os direitos e liberdades individuais são directamente aplicáveis, vinculam as entidades públicas e privadas, são garantidos pelo Estado e devem ser exercidos no quadro da Constituição e das leis.
Da leitura e exercício hermenêutico da norma contida no n.º 1 do artigo 56 da CRM é fácil perceber a responsabilidade do Estado para com os direitos e liberdades fundamentais como é o caso do direito à educação. No mesmo sentido, a alínea e) do artigo 11 da CRM estabelece como um dos objectivos fundamentais do Estado: “a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei.” Importa também referir que o artigo 1 da CADHP impõe que os Estados partes da presente Carta reconheçam os direitos, deveres e liberdades enunciados na mesma e se comprometam a adoptar medidas legislativas e outras para aplicá-los.
Ora, há mais de dez anos que o investimento no sistema de educação tem sido insignificante para aquilo que são os objectivos do sistema nacional de educação definidos na legislação e políticas de educação. O orçamento para o sector da educação, para além de não ser de gestão transparente, revela-se problemático no concernente à alocação de fundos para a construção de escolas, que, infelizmente, tem sido reduzido à “construção de salas de aulas precárias.” A esta situação, acresce o deficiente mecanismo de aquisição do material escolar essencial e de contratação e formação de professores para um processo de ensino e aprendizagem de qualidade, particularmente no ensino primário e secundário.
Outrossim, o governo permite espaço para o consumo de bebidas alcoólicas nas escolas, cujos sistemas de segurança são altamente frágeis. A instalação de barracas e/ou bares nas proximidades das escolas cresceu bastante, constituindo um convite aos alunos e professores para o consumo de bebidas alcoólicas, enquanto frequentam as aulas. Ademais, os currículos do sistema nacional de educação não estão consolidados e não são objecto de um debate público aberto entre os profissionais da educação, encarregados de educação e sociedade civil que trabalham na área de educação e outras conexas, não obstante esses currículos sofrerem constantes alterações ou reformas em períodos muitos curtos à medida que se mudam dos dirigentes do sector da educação.
Recentemente, foi determinada a leccionação de aulas de várias disciplinas por um único professor em determinadas classes em que durante muito tempo cada disciplina tinha o respectivo professor qualificado e não se percebe as razões para tamanha transformação institucional, atendendo ao elevado padrão de qualidade de ensino que se pretende.
No mesmo sentido, os salários e incentivos para os professores, sobretudo os do ensino básico, são extremamente baixos, os livros que deviam ser de distribuição gratuita são na verdade entregues para esquemas de negociação ou venda tanto no mercado negro, como nas escolas privadas ou particulares em detrimento das escolas públicas. Curiosamente, as condições e qualidade ensino nas escolas públicas tendem a ser muito débeis, ao que parece ser para alimentar o ensino privado que é altamente lucrativo para os respectivos donos.
O processo de elaboração e aquisição dos livros escolares tem sido obscuro e não chegam ao País em tempo útil, nem apresentam a devida qualidade de conteúdo para um eficaz e eficiente processo de ensino e aprendizagem, com vista à realização do direito à educação no quadro da Constituição da República em vigor.
Distribuir livros com erros ortográficos e de conteúdo graves é um atentado ao direito à educação, que dá a entender que se trata de um plano obscuro de destruição do sistema nacional de educação e a consequente denegação do direito ao desenvolvimento dos cidadãos e do Estado moçambicano, considerando que estão em prática vários mecanismos e/ou acções que demonstram se estar perante um processo sistemático de debilitação e violação do direito à educação em Moçambique.
Portanto, é notório que o Estado, através do seu governo, não está a cumprir com os seus deveres legais de respeitar, promover, proteger e realizar o direito à educação e, nessa vertente, está, igualmente, a denegar o direito ao desenvolvimento aos cidadãos, pelo que urge uma advocacia e atitude para mudança e eliminação de todas as barreiras ao acesso à educação de qualidade, num contexto de adopção de processos de tomada de decisão transparente e com a participação pública abrangente dos interessados no sector em questão.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
A própria baía em si perdeu a beleza, dando lugar a um matagal sem sentido, que tomou o lugar de veraneio da urbe, tirando assim o direito aos banhistas e a todos aqueles que já não podem contemplar uma maravilha que nos punha em contacto visual com toda esta paisagem exuberante que inclui a península de Linga-Linga e o arquipélago de Mucucune – por um lado - e a soberba do coqueiral que se ergue do outro lado, onde a Maxixe perdeu também, ao longo da orla marítima, a sua liberdade, por conta das construções que nunca obedeceram a nenhuma regra.
Os bancos de areia têm nome, todos eles, cada um com o seu potencial pesqueiro e seus tabus, porém – apesar desse diferencial - o que havia neles de comum era a fartura. Por isso mesmo, homens e mulheres, em maré vaza, atravessavam em pequenos barcos à vela, na demanda do abundante pescado que incluia a apanha de carangueijo e moluscos e camarão, e não havia dúvidas de que os cestos voltariam mais do que abarrotados, para gáudio de famílias inteiras que nunca souberam o que é fome.
“Boni” será - provavelmente - o banco mais conhecido e se calhar o mais produtivo e o de maior extensão territorial. Em dias de pesca e de apanha e de arrasto, as pessoas eram desembarcadas aos magotes e espalhavam-se como baratas assustadas, mas era mentira, levavam dentro delas a certeza e a alegria de que voltariam para casa abastecidas. E todo aquele trabalho que faziam – muitas vezes debaixo de frio intenso e chuva – dáva-lhes prazer por saberem que os resultados seriam por demais compensadores.
Os bancos de areia da baía de Inhambane eram uma música, repetida na cidade e nos subúrbios, num ritmo que ressurgia com fulgor em cada refeição ou em cada petiscada nas bebedeiras de sura. Também eram uma jazida interminável que proporcionava renda a muitos e, por tudo o que representaram na economia e na sociedade, nunca vão deixar de ser património valioso.
Mas hoje ninguém fala dessas fontes de energia, pouca gente as procura, porque já não têm nada para dar, ou têm muito pouco. Há uns que dizem que aqueles bancos de areia e as suas circundantes águas misteriosas outrora promissoras, foram profundamente exploradas até a exaustão. Foram esvaziadas. Todavia, há aqueles que defendem outro pensamento. Segundo eles, foi o próprio Deus que diminuiu as bençãos, por ira. E, como todos nós sabemos, depois da Palavra de Deus, não há outra palavra. Assim, o mito morreu, e com ele a nossa esperança.
Comemorando os 100 Anos de José Craveirinha, Poeta-mor!
Desde que partiste
Não parámos de gritar
Pois diferente de outrora
Quando vivo entre nós estavas
Hoje mais negros nos tornamos
E nosso patrão é nosso conhecido-irmão
E como antigamente, ainda somos carvão!
Desde que partiste, ó nobre Mestre
Ainda somos arrancados do chão
Como minas de Moatize e outras geografias
Somos explorados sem auditoria honesta
Não apenas por Vales que das nossas terras nos baldeiam
Mas também por aqueles que dizem sacrificialmente lutar
Para nos proporcionar o sonho que nos fez batalhar
Contra a escravidão de brancos e pretos embranquecidos!
Desde que partiste
Quem explora a nossa mina
É o nosso irmão, mas hoje um ferino patrão
E nós, ó nobre Mestre, continuamos mais pretos, carvão!
Desde que partiste
O irmão que nos deixaste
Com o tempo, como um génio camaleão
Camufladamente, ao olho nu, foi-se revelando
Um autêntico capitalista, um supremo-patrão!
Desde que partiste, ó nobre Mestre
Nossas estradas ganharam novos donos
E mesmo abarrotas de valas comuns
Que escondem sangue de gente inocente
Até dentro da cidade, não muito longe de Mafalala
Pagamos quotas para à vontade circular!
Desde que partiste
Ao longo das nossas estradas malfeitas
Brotaram empreendedores de combustíveis
Especialistas em economia de mercado lobista
Similares a Mestres de Kung fu e Karaté
A cada página de estrada vazia de alcatrão
Apertam o cinto da miséria dos teus pobres irmãos!
Desde que partiste, ó nobre Mestre
Os mesmos velhos que deixaste a governar
Pululam pelas pontas vermelhas, governamentais e municipais
Desta pobre terra de cabo do norte queimado
Como especialistas em inovações químico-laboratoriais
Intoxicam o povo com políticas que dizem a todos beneficiar
Mas sabemos que seus planos e suas estratégias, é tutu mafia!
Desde que partiste
O custo de vida não parou de subir
E a subida de que profeticamente escreveste
Não é só do pão, óleo, carvão, transporte
Não é só da educação, saúde, formação
Nosso batimento cardíaco também subiu
Pois o salário mínimo apenas sobe alguns degraus
Quando já há um plano vampírico para sem dó o tirar!
Desde que partiste, ó nobre Mestre
A educação que nos podia educar
É feita por lobistas designados professores
E os livros que nos podiam iluminar
São malandramente produzidos para nossos filhos deformar
E banhados de ignorância, perdermos o norte que nos podia salvar!
Desde que partiste
Nossa Constituição, aquele livro legal sagrado
Tem sido folheado por cientistas-pecadores
Como um manual de empreendimentos laboratoriais
Para garantir mandatos e a todos controlar!
Desde que partiste, ó nobre Mestre
Até governadores pelo povo eleitos
Como estudantes e funcionários estagiários
Têm supervisores faz-tudos directamente da base central
Afinal, o que deve prevalecer não é a vontade do teu povo irmão
Porém decisões superiores dos famosos Grandes e Eternos Chefes!
Desde que partiste
O que mata os nossos irmãos
Não são guerras, fomes, secas, doenças ou ciclones
É a ganância pintada de coragem de um irmão insatisfeito
Que em revolta, sem coração, prefere inocentes trucidar
Para sua voz ecoar mais alto e sua superioridade declarar!
Desde que partiste, ó nobre Mestre
Pouco se escreve para o povo iluminar
Mas páginas em branco, de livros e manuais, se enchem
E murais de redes sociais espalhados na internet se inundam
Com deformações históricas, geográficas, económicas
Sociais, políticas, religiosas, repletas filosofias sanguessugas
Para deturpar o caminho da educação, saúde e salvação!
Desde que partiste
Ainda somos carvão
Ainda se consome nossa combustão
Mas como abertamente disseste
Arder eternamente, não patrão!
Não poderemos continuar a arder
Ser a mina explorada de um patrão- irmão
Que ontem garantiu até seu sangue derramar
Para nossas vidas economicamente melhorar
E devolver o sangue que por séculos nos foi sugado!
Portanto, ó nobre Mestre
Temos que continuar a arder
E com a chama da nossa combustão
Queimar tudo que malandramente nos sufoca
E com temperos de políticas e má governação
Nosso presente e futuro dos nossos filhos na terra inferniza!
Desde que partiste
Mesmo nascidos em terra consagrada independente
E governados por gente que diz democracia defender
Hoje ainda somos um futuro cidadão
Mas como abertamente disseste
Arder eternamente, não patrão!
Conforme fez ontem saber a sempre solícita porta-problemas, aliás, porta-voz do Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, os graves erros contidos no livro de Ciências Sociais da sexta classe serão mitigados por via de erratas, o que, pela abundância de gralhas, será, certamente, ineficaz.
Entretanto, acho que uma “errata” de fundo e muito urgente se impõe: desenvolver institucionalmente o Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação (INDE), criando, de entre outros, condições para que possa atrair e reter dos melhores quadros que o país possui. Até onde sei, esse não é o caso neste momento.
Grande parte dos quadros do INDE, maioritariamente formados domesticamente e com cursos de pós-graduação nas melhores universidades do mundo, largaram a instituição à procura de melhores condições (o que é normalíssimo!), estando grande parte deles a trabalhar, actualmente, em projectos de educação sob a égide de Organizações Não-Governamentais (ONGs), como gestores e oficiais seniores.
Naturalmente que se os decisores políticos de topo olhassem, em termos de pacotes salariais, para o INDE como olham para instituições como Gabinete de Informação Financeira de Moçambique (GIFIM) e Banco de Moçambique (BM), o INDE não estaria, hoje, muito enfraquecido em termos de qualidade de recursos humanos.
Ou aqueles que acham que 25 de Junho é “Dia dos Heróis” não encontram, actualmente, “refúgio” no INDE? Permitam-me o exagero, mas é necessário ir para além do aparente.
Ou esta é uma “errata” que não procede por o INDE não ter receita própria?
Enquanto não se empreende uma “errata” tal, talvez seja tempo de se “aplicar racionalmente” a cláusula de “adjudicação directa” que integra o regulamento de contratação pública, ou de “concurso dirigido” (Universidade Pedagógica, UEM, etc.), para a dimensão produção de conteúdos do livro escolar…
Foi-me pedido que partilhasse a experiência moçambicana num Congresso sobre jornalismo, cidadanias e democracias sustentáveis. O meu primeiro dilema tem que ver, mesmo, com o tema do Congresso. Os conceitos constitutivos desse tema são objecto de múltiplas querelas intelectuais e académicas, discussões que vão desde a filosofia política à ciência política, passando pela sociologia e teoria políticas. Como, pois, falar de jornalismo, cidadania e democracia sustentável num mundo em que a degradação dos princípios democráticos parece ser a regra cada vez geral nos países ditos de “velha democracia” e, mormente, num país onde esses conceitos têm mais um carácter abstrato e instrumental do que necessariamente existência material?
Não é, sequer, uma revelação assertar que Moçambique não é uma “democracia sustentável”, se aceitarmos que “democracia sustentável” quer dizer um regime político onde as liberdades fundamentais (Locke, Montesquieu, Mill, Aron) e as leis são livres e transparentes, onde o respeito pelos direitos fundamentais é garantido e onde a violência não é a base fundacional para o exercício do poder, como é o caso de Moçambique.
Todos os relatórios, nacionais e internacionais, que estudam o estado das democracias e o exercício das liberdades, no mundo, mostram que a situação da democracia e das liberdades, em Moçambique, está cada vez mais degradada.
Ao fazer esta comunicação, em Março de 2022, passa menos de um mês depois que saiu o último Índice (2021) de Democracia do The Economist Intelligence Unit que, com toda a discussão metodológica que suscita, classifica Moçambique, pelo quarto ano consecutivo, como um regime autoritário.
Estes resultados, mesmo que metodologicamente problemáticos, permitem, com todas as reservas, constatar que o processo de liberalização política, em Moçambique, tem conhecido profundos problemas para o seu aprofundamento. Ou seja, estes resultados mostram, simplesmente, que o regime político, em Moçambique, longe de ser democrático, é mais uma democradura, na medida em as práticas e os mecanismos autoritários são o que o caracteriza, concretamente, mas, ao mesmo tempo, nos aspectos formais, são as regras democráticas que parecem vigorar, começando com a lei constitucional.
No Índice da Liberdade de Imprensa 2021, dos Repórteres sem Fronteiras, Moçambique também está entre os países lusófonos com piores níveis de liberdade de imprensa. Num índice que avalia 180 países, Moçambique ocupa a posição 108, superando países como Angola (103) e Guiné-Bissau (95).
Ler estes relatórios, a partir da Europa ou outro local fora de Moçambique, produz uma ideia senão for distante do real, ao mínimo menos concreta sobre o estado das coisas, em Moçambique, pois, para quem experimenta, no dia-à-dia, o sentido desse fechamento ou cerceamento dos espaços e liberdades democráticas, a violência e o desespero é mais aguçado, mais traumático.
É sobre isso que pretendo articular, a partir do jornalismo como discurso sobre os fenómenos actuais, pois, a partir deste, posso melhor articular entre as vivências e uma reflexão mais elaborada à volta dessas experiências múltiplas de violência e cerceamento das liberdades fundamentais.
Mas qualquer esforço cognoscitivo para compreender o estado da democracia e do jornalismo, enquanto contra-poder, requere, primeiro, uma explicação sobre a cultura política do país. O que o The Economist Intelligence Unit denomina como regime autoritário não pode ser compreendido sem uma análise da cultura política reinante que, desde o período de partido-único (1975-1990), sustenta, até hoje, o substracto do processo de construção do Estado e alimenta as percepções sobre o poder das elites que governam o país.
Qualquer análise que se pretenda consistente e coerente deve, imperativamente, partir do percurso histórico do país para melhor compreender os fundamentos que explicam que, 47 anos depois da proclamação da independência e 30 anos de liberalização políticas, o regime político, em Moçambique, sob controlo da Frelimo, o partido que governa o país desde 1975, nunca se abriu, genuinamente, para a democracia, fazendo desta última um mero instrumento ao serviço dos seus interesses diante dos parceiros internacionais.
Os libertadores tornaram-se tão venais quanto os colonizadores
O que aconteceu é que, numa fase particular da história recente do país, quando a União Soviética estava a cair e Moçambique a braços com uma prolongada guerra civil, a Frelimo tinha de aceitar a institucionalização da democracia, até por uma questão de sobrevivência do próprio partido-Estado.
Ao aprovar a Constituição de 1990, que instituiu formalmente o multipartidarismo, a Frelimo fez da transição democrática um dispositivo para acabar a guerra-civil com a Renamo e reconsolidar o projecto de dominação autoritária e hegemónica (Conrado, 2021), que marcou os primeiros 15 anos da proclamação da independência.
Não me parece exagerado afirmar que a Frelimo aceitou, formalmente, a liberalização política para caucionar a sua sobrevivência perante adversidades internas e externas que colocavam em causa a sua continuidade como organização política e, em última instância, o próprio Estado que, até hoje, é considerado, pela Frelimo, como sua própria continuidade – ou seja, para a Frelimo, não há diferença factual entre ela e o Estado.
Nessa equação, a Frelimo criou instituições que estruturam as chamadas democracias, que assentam, fundamentalmente, no famoso princípio da separação de poderes, executivo, legislativo e judicial, mas, logo a seguir, o partido capturou essas instituições, passando a usá-las, como o fazia durante o período de partido-único, para enfraquecer o processo de democratização e de liberalização política nacional.
Ao fazer esta comunicação, lembro-me de Ngugi wa Thiong’o, professor e romancista queniano que, num dos seus célebres romances, “Matigari” (Thiong’o, 2018), lembra-nos, da forma mais brutal e realista possível, que a verdadeira libertação de África ainda está por acontecer, pois, tal como Achille Mbembe (1988, 2000 e 2010), para ele, os libertadores tornaram-se tão venais quanto os colonizadores, por vezes piores que estes últimos.
De facto, o que, em muitos dos países africanos, chamamos de independências, a rigor não foram independências no sentido mais realista do termo – foi a transição de poder de um regime colonial que era mau, para um regime nacionalista igualmente mau e, em alguns casos, pior.
Dito de outra forma, os libertadores, tal como já o dizia Franz Fanon (2004 e 2006), que pegaram em armas para combater o colonialismo, no final, eles tomaram o lugar do colono, de modo que, hoje, mudaram os actores, mas as questões centrais dos povos africanos em geral, e dos moçambicanos, em particular, como a miséria, as desigualdades sociais, as faltas da liberdade, a míngua, o analfabetismo, o esfolamento permanente, a corrupção endémica, a violência extrema, entre outras, prevalecem.
O recente escândalo das dívidas ocultas, em que altos funcionários do Governo, incluindo ministros e dirigentes dos Serviços de Informação e Segurança do Estado, formaram uma associação para delinquir, contratando uma dívida pública de mais de USD 2 mil milhões, e dividindo comissões, até pagarem casas para prostitutas, na França, quando a população moçambicana vive abaixo de USD 1/dia, não podia ser mais esclarecedor sobre o tipo de políticos e de Estado que temos. Podemos falar, sem muitas reservas, de um Estado criminalizado (Bayart, 1999, 2006 e 2019) e de um Estado gerido como um potentado ao serviço de interesses privados.
Chegados aqui, a questão que se nos impõe é: como é que a cultura política autoritária moçambicana estrutura e se reflecte no sistema de media, em geral, e no jornalismo, em particular? Se concordarmos que uma das funções centrais do jornalismo, em democracias, é de desempenhar o papel de “contra-poder”, uma espécie de “cão de guarda” que preserva as instituições e defende os cidadãos perante os desvios, as prepotências e os abusos de poder
(Nhanale, 2019), então, é fácil compreender o lugar que seria do verdadeiro jornalismo, em Moçambique.
Quando me refiro ao termo “verdadeiro jornalismo” não pretendo extrapolar os limites que se impõem à qualquer um que tem o cuidado com a aplicação de tais termos. Sem nenhum rigor epistemológico, esses são os termos que me aparecem, no imediato, para distinguir o jornalismo independente das pressões do Governo, do chamado jornalismo do sector público, capturado pelo poder do dia, cujas consequências são acessíveis para quem é atento à linha editorial de todos eles. Ou, como diria Traquina (2007), um jornalismo que é propaganda ao serviço do poder instalado, quão fácil é definir a profissão num regime totalitário.
Guerra contra o jornalismo
Para ilustrar as afirmações feitas mais acima, tomo como exemplo o caso de Cabo Delgado, uma província que, desde 5 de Outubro de 2017, regista ataques armados de inspiração islâmica. Se é verdade que um grupo jihadista lançou uma guerra contra o Estado, em Cabo Delgado, também é verdade que o Governo lançou uma guerra contra o jornalismo que se interessa em escrutinar, de forma crítica, o conflito do norte do país.
Quando, antes da chegada de forças armadas estrangeiras, estava a perder todas as frentes da guerra para os jihadistas, em parte pela má governação e os escândalos de corrupção que foram tais que até escangalharam sectores nevrálgicos como a defesa e segurança, o Governo acreditou que seria possível ocultar a guerra e as derrotas em Cabo Delgado.
Através das Forças de Defesa e Segurança (FDS) lançou uma inglória agenda de perseguição de jornalistas, não fossem as forças armadas moçambicanas mais talhadas na repressão contra opositores, sociedade civil entre outros críticos à governação da Frelimo.
O caso de Amade Abubacar, o repórter da Rádio Comunitária de Macomia, detido por militares, a 5 de Janeiro de 2019, foi uma das mais célebres expressões dessa guerra contra o jornalismo. O único crime que Abubacar cometeu foi entrevistar população deslocada, que acabava de chegar à vila de Macomia, fugindo da guerra na parte costeira do distrito, onde as FDS acabavam de falhar, mais uma vez, a sua missão de garantir a segurança do país e proteger o povo contra incursões de grupos armados.
Como Amade Abubacar, tantos outros repórteres foram vítimas dessa guerra contra o jornalismo, sobretudo, o de investigação. Adriano Germano, também repórter da Rádio Comunitária de Macomia, foi preso por militares a 15 de Fevereiro de 2015. Os dois repórteres, mantidos em reclusão por mais de 100 dias, foram acusados de crimes inusitados, como instigação pública com uso de meios informáticos a favor de terroristas, crime contra organização do Estado, instigação ou provocação à desobediência colectiva e, crime contra a ordem e tranquilidade públicas.
Ao fazer esta comunicação, falta apenas um mês para se completarem dois anos depois do desaparecimento, a 7 de Abril de 2020, do repórter da Rádio Comunitária de Palma, Ibrahimo Mbaruco que, no seu último contacto, informou, através de mensagem SMS, que estava a ser cercado por militares.
Mas se o Governo achava que, com as detenções, podia ocultar a guerra, tal como tinha ocultado a dívida de mais de USD 2 mil milhões, não podia estar mais equivocado. A investigação, em jornalismo, existe, para, também, compensar esse cerco ao acesso oficial à informação. Tem sido, pois, com recurso a técnicas de investigação jornalística que tem sido possível a cobertura da guerra de Cabo Delgado, um dos lugares onde o controlo da infirmação é dos mais cerrados em Moçambique.
Quando perdeu essa guerra de “pôr algemas nas palavras”, como diria o saudoso Carlos Cardoso, o jornalista investigativo vítima do crime organizado, em Maputo, o Governo passou a atacar e a desacreditar o trabalho do jornalismo, recorrendo a diferentes meios de propaganda e intimidação.
No início de 2020, um dirigente público, no caso o presidente do Conselho de Administração da Empresa Nacional de Parques de Ciência e Tecnologia, Julião João Cumbane, chegou a aconselhar, na sua conta pessoal do Facebook, para que o Estado Maior General das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), o Comando Geral da Polícia da República de Moçambique (PRM) e o Serviço de Informação e Segurança do Estado (SISE) conjugassem “inteligência e acções enérgicas – mesmo as extra-legais! – contra as «notícias» miserabilistas que desmoralizam as Forças de Defesa e Segurança (FDS), que combatem os ataques por procuração nas regiões Norte e Centro de Moçambique”.
Eu próprio, que lidero, no Jornal SAVANA, a cobertura sistemática da guerra de Cabo Delgado, tenho sido uma vítima constante nesses ataques, insultos e até apelos para execução sumária, feitos por conhecidos propagandistas do Governo de Moçambique. E por quê nos chamam de terroristas? A única explicação plausível é que nós procuramos dar a conhecer o outro lado da guerra, o que não cabe nas telas e nas páginas da comunicação social do sector público. E qual é esse lado?
Que, antes da chegada das tropas estrangeiras, as FDS estavam a perder o terreno para a insurgência, que militares estavam a ser mortos, que o inimigo até arrancava viaturas, armas e fardamento militar.
Quando grupos armados assaltam e ocupam vilas distritais por cerca de 1 ano, como aconteceu com a estratégica vila da Mocímboa da Praia, uma importante placa giratória dos milionários projectos de gás, no norte de Moçambique, então, não há tanto para dizer sobre a capacidade combativa das FDS. E dizer isso não é ser antipatriota, como habitualmente somos acusados.
Dizemo-lo como um sincero reconhecimento do nosso falhanço, como Estado, o que é fundamental para começarmos a pensar nas reformas que devem ser empreendidas para que haja melhor resposta aos desafios que se nos apresentam como Estado. Se, nesta guerra, há antipatriotas, só podem ser aqueles que desmantelaram (e, até certo ponto, deixaram desmantelar), as Forças Armadas, ao ponto de se transformarem numa instituição completamente incapaz de defender a pátria, bem como os que tentaram convencer a sociedade moçambicana, e não só, que estávamos de vitórias em vitórias, quando, afinal, caminhávamos para a derrota final, como se provou quando os jihadistas fizeram o grande assalto ao distrito de Palma, em Março de 2021.
O país foi longe demais nessa intolerância ao jornalismo livre
Quando o próprio presidente da República ataca, publicamente, a imprensa independente e seus profissionais, com ordens para as FDS não aceitarem ser “denegridas deliberadamente e, passivamente, estarem a assistir sem responsabilizar esse tipo de compatriotas”, fica claro como o país foi longe demais nessa intolerância ao jornalismo livre.
Quando a Repórter Sem Fronteiras e o Misa Moçambique (2019) reportam “Apagão de Informação e Perseguições contra a Imprensa em Cabo Delgado”, em particular, e em Moçambique, no geral, onde “a liberdade de informar está ameaçada”, não podiam ser mais assertivos.
Concentrei-me a falar de Cabo Delgado por ser, hoje, um caso emblemático de como o cerceamento das liberdades e da democracia está no ponto mais baixo da história de Moçambique pós-1990. Porém, se retirasse o nome dessa província martirizada pela guerra e substituísse-o por Moçambique, mantinham-se, na mesma, todas as variáveis que configuram fechamento dos espaços para as liberdades de imprensa, em Moçambique.
Um pouco por todo o país, chegam, todos os dias, relatos tenebrosos de cerco contra um dos pilares fundamentais de uma democracia liberal. Se Thomas Jefferson, o 3º presidente dos EUA, achava que “não há democracia sem liberdade de imprensa” (Jefferson, apud Traquina, 2007), a experiência moçambicana mostra que não, pois nunca foi programa das elites da Frelimo tomar a democracia como o quadro referencial para a construção do Estado nacional. Pelo contrário, o caso moçambicano confirma que, sem liberdade, o jornalismo, ou é farsa ou é tragédia, como escrevia Traquina, em 2007.
Ora são repórteres que são barrados nas suas actividades, ora são ameaçados ou detidos, ora veem seus instrumentos de trabalho arrancados principalmente por agentes da Polícia, sempre a cumprirem “ordens superiores”, que nunca têm rostos.
Para completar as nossas descrições e análises do quão difícil é fazer jornalismo digno desse nome, em Moçambique, o sistema da Justiça, que devia actuar como um freio contra as injustiças, é, também, usado para perseguir o jornalismo, pois o poder judiciário, não sendo independente na sua acção, funciona como um instrumento ao serviço dos interesses do partido que governa Moçambique.
Nunca é demais recordar o inditoso caso do Canal de Moçambique, um dos semanários mais críticos do país, levado a Tribunal sob acusação de violar segredo de Estado, simplesmente porque publicou um contrato “oculto” entre o Ministério da Defesa Nacional e a Anadarko, na altura líder do projecto de exploração de gás no norte do país.
O contrato pressupunha que o Estado moçambicano fornecia serviços especiais de segurança para proteger a cintura de exploração de gás e, em contrapartida, a Anadarko desembolsava valores que deviam servir para a logística dessas unidades militares, incluindo salários bonificados.
Mas, quando o Canal demonstrou que, ao invés de beneficiar os militares no terreno, o dinheiro disponibilizado pela Anadarko ia parar nas contas bancárias do ministro da Defesa, o Ministério Público viu, nisso, uma ameaça contra a segurança do país, o que veio a confirmar que a famosa independência do poder constitucional, decorrente da norma constitucional assim da legislação avulsa que regula este poder, é apenas uma farsa.
Poderia ser possível continuar a enumerar tantos casos de violação de liberdade de imprensa, em Moçambique, e da impunidade de que gozam os seus perpetradores. Mas podia, também, apontar outras situações que, fora do jornalismo, confirmam esse padrão autoritário na governação do país.
Podemos dizer que a violação desses direitos é o modus operandi e faciendi generalizado, em Moçambique.
A título de exemplo, há cerca de 8 anos que, tacitamente, foi levantado o direito à manifestação contra o Governo, em Moçambique. Desde que o presidente Filipe Nyusi chegou ao poder, os únicos moçambicanos que têm direito a marchar são os que estão filiados às organizações sociais do partido Frelimo, a OJM (organização juvenil), OMM (mulheres) e ACLLN (combatentes) que, não raras vezes, vão as ruas para saudar a dita “sábia liderança”, liderança do seu presidente.
Quando os moçambicanos que não são do partido Frelimo pretendem exercer o seu direito de manifestar, por exemplo contra os recorrentes ataques a defensores de direitos humanos, contra a carestia da vida, só para citar casos que me veem facilmente à memória, são recebidos por homens armados, carros de guerra, gás lacrimogéneo e cães prontos para o ataque. Não sei se haveria melhor descrição de um Estado autoritário.
Sempre que se for a estudar o autoritarismo moçambicano que, longe de ser introduzido pelo actual presidente, ganhou ímpeto durante o seu consulado, nunca será inoportuno citar o bárbaro assassinato do Professor Gilles Cistac, um dos poucos académicos que honrava o seu estatuto de académico, crivado por balas, em Março de 2015, 2 meses depois da tomada de posse do presidente Nyusi.
Quando foi assassinado, à luz do dia, em plena capital do país, o Professor Cistac era a voz autorizada que, com argumentos baseados na ciência jurídica, argumentava a possibilidade da criação de autarquias de nível provincial, principal exigência da Renamo de Afonso Dhlakama para pôr fim ao conflito político-militar que seguiu às eleições de 2014, mais uma vez ensombradas pelo espectro da fraude.
O maior opositor à ideia de partilha de poder tinha um nome: partido Frelimo. Antes do seu assassinato a tiros, o constitucionalista franco-moçambicano foi vilipendiado nas redes sociais, até com ataques de cunho racista, que é uma marca fundamental de intolerância por que passam as sociedades com democracias fracas ou aquelas que as chamamos de democracias “consolidadas”.
Como ele, outros académicos e analistas críticos à governação do dia foram raptados, seviciados e depois largados nas matas, com os raptores a lhes dizerem que estavam a “falar demais”. Escusado será mencionar os repugnantes casos do Professor José Jaime Macuane e do jurista Ericino de Salema, ainda mais quando, mais tarde, o próprio presidente da República veio evocar
“problemas sociais”, sem nunca haver esclarecimento.
Escusado será, também, mencionar o antigo bispo da Diocese de Pemba, o brasileiro Dom Luiz Fernando Lisboa, que era a voz das vítimas da guerra de Cabo Delgado, criticando a forma como o Governo lidava com o problema. Lisboa acabaria por baixo de um veemente ataque, ainda que velado, do chefe de Estado, contra “aqueles moçambicanos que, bem protegidos, levam, de ânimo leve, o sofrimento dos que os protegem, incluindo alguns estrangeiros que, livremente, preferiram viver em Moçambique, mas que, em nome camuflado dos direitos humanos, não respeitam o sacrifício dos que mantêm erguida esta jovem pátria e garantir a sua estadia em Cabo Delgado e em Moçambique, em geral”.
Termino com um caso que investigámos, no Jornal SAVANA. No dia 7 de Outubro de 2019, a 8 dias para as eleições de 15 de Outubro, um esquadrão de elite da Polícia da República de Mocambique assassinou, em plena cidade de Xai-Xai, capital provincial de Gaza, no sul de Moçambique, um observador eleitoral, que se preparava para a maior observação eleitoral de sempre, numa província onde os órgãos eleitorais haviam recenseado mais de 300 mil eleitores fantasmas para beneficiar a Frelimo, ante os receios de uma derrota pela sua impopularidade associada aos escândalos de corrupção, como as dívidas ocultas, numa eleição em que, pela primeira vez na história do país, os partidos políticos iriam fazer eleger seus governadores para as províncias.
Ao provarmos, na investigação, que os assassinos de Anastácio Matavele tinham sido agentes da Polícia, acabamos por mostrar, ao país e ao mundo, que os esquadrões de morte, que nasceram na administração Nyusi, sequestrando, seviciando a matando os não alinhados com a sua governação, são planificados, coordenados e executados a partir de dentro do Estado, usando armamento que era suposto proteger o cidadão e cometidos por agentes que são pagos do erário público, ou seja, pelo dinheiro de todos os moçambicanos.
Todo este trágico contexto está longe de estar terminado, em Moçambique. Pelo contrário, a situação tende a piorar. Não sei se poderíamos estar pior.
* Jornalista do SAVANA e mestrando em Jornalismo e Media Digitais. Comunicação feita no Congresso sobre Jornalismo, Cidadanias e Democracias Sustentáveis nos Países de Língua Portuguesa, que teve lugar na Universidade de Coimbra, Portugal, de 2 a 4 de Março de 2022. O texto foi originalmente publicado numa coletânea sobre o evento, recentemente lançada, em Portugal.