Quando chegasse a hora de fazer exercícios abdominais, o nosso professor de educação física, farejava o nosso cansaço em todos cantos do ginásio. Farejava-o para em seguida enterrá-lo com as patas de insultos como um gato tapando fezes. Com o seu apito baloiçando-lhe ao pescoço passeava no ginásio como um turista com máquina fotográfica a tiracolo. “A preguiça é a mãe de todos os vícios”, dizia-nos com as mãos afundadas nos bolsos do seu fato de treino...
Professor Boavista! Era assim chamado porque trazia, todos dias, uma velha camisete de Boavista de Portugal. Ainda recordo-me da gola da camisete coxa de tanto carregar o fardo de gordura do pescoço, das linhas das axilas mastigadas pelo sal do suor e seu fato de treino. Seu fato de treino que de tão grande consumia-lhe as sapatilhas que nunca víamos e segurava-se na cintura por meio de um nó, aliás, por meio de um atacador que servia de cinto e tinha nó grosso no lugar da fivela.
Quando tive a minha prima de baixa no hospital, via sempre o professor Boavista. Quase todos dias com frascos de urina embrulhados em pequenos sacos plásticos. Lutava pela saúde. Já não tinha o fato de treino, mas a camisa de Boavista por pena continuava com ele. No fundo a camisa escondia os ossos que se desenhavam na pele. Os ossos levantam-se na pele cheia de pêlos como montanhas espreitando das matas.
Tinha falta de urina, o que tinha era um líquido amarelíssimo que nem enchia os frascos e por isso voltava todos dias ao hospital. O enfermeiro riscava com um marcador azul onde a urina devia atingir e o Boavista não conseguia. Usava os muros dos hospitais como muletas e não tinha o apito a tiracolo para soprá-lo uma, duas, dez vezes e acabar com os exercícios abdominais da doença. Ele que sabia que a preguiça é a mãe de todos os vícios, não tinha saúde e talvez fosse por isso que não conseguia encher dois frasquinhos com urina.
Adormecia nos bancos do hospital e apetecia-me chamá-lo pelo número que vinha nos frascos de urina e caso não me respondesse, marcá-lo faltas com aquelas duas gotas amarelas de urina.
Boavista, meu professor. Não sei se continuas vivo. Ou desceste ao campeonato da morte com a sua camisa de Boavista, ou continuas tentando colectar a urina que te engorda os rins. Por que não fazes exercícios abdominais para expulsar a gordura da morte da sua barriga, cheia de urina ou porque não usas os fios de saliva que te caiem da boca para estender a tua esperança molhada de tanto correr de hospital em hospital? Talvez tenhas morrido ou levantas a pata e mijas ainda dois líquidos amarelos e farejas com os ouvidos as reclamações do seu cansaço como uma cadela.
A Assembleia da República é o mais alto órgão legislativo na República de Moçambique ao qual cabe determinar as normas que regem o funcionamento do Estado e a vida económica, social e política através das leis e deliberações de carácter genérico conforme resulta do disposto no artigo 168 e do artigo 178, ambos da Constituição da República de Moçambique (CRM).
Ora, para efeitos de reforma ou revisão legislativa, têm iniciativa de lei: os deputados, as bancadas parlamentares, as comissões da Assembleia da República, o Presidente da República e o Governo, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 182 da CRM.
Para além dos actos legislativos da Assembleia da República, o processo de reforma legal pode operar-se através dos actos normativos do Conselho de Ministros que revestem a forma de decreto-lei e de decreto. Aqui importa lembrar que os decretos-leis do Conselho de Ministro carecem de autorização legislativa da Assembleia da República, conforme se depreende do artigo 179 da CRM.
Em Moçambique, o processo de reforma legal tem sido contínuo, seja por falta de lei e demais actos normativos específicos que regem determinadas matérias ou aspectos da vida social, económica, política e cultural do País, seja porque alguma legislação em vigor está desajustada da realidade ou porque apresenta várias lacunas.
Existia no País um organismo que se designava Unidade Técnica da Reforma Legal (UTREL) que tinha várias funções específicas em reforma legal e, fundamentalmente, com os objectivos de assegurar a planificação integrada, a coordenação, a articulação, a execução e o acompanhamento dos programas e projectos de reforma legal. No entanto, a UTREL foi extinta sem que tivesse sido substituída por uma entidade com competências similares ou especializada em matéria de reforma legislativa com atribuições e/ou competências próprias para o efeito.
Desde então, o processo de reforma legal em Moçambique é feito de maneira um tanto quanto atabalhoada, baseado em critérios de duvidosa transparência, em que são contratados diferentes consultores para o efeito de reforma ou elaboração de determinada legislação a ser aprovada pela Assembleia da República ou pelo Conselho de Ministros, dependendo na natureza ou tipo de actos normativos (Leis, Decreto-leis, Decreto, etc).
Casos há em que os consultores contratados não têm domínio bastante para levar a cabo o trabalho de reforma da legislação em causa, de tal gravidade que chegam a elaborar e submeter documentos que não respeitam a estrutura de uma lei e que revelam se tratar de um trabalho maioritariamente de “copy & past” de outros ordenamentos jurídicos, com destaque para Portugal e Brasil, quais autênticos plágios que não respondem aos problemas da realidade moçambicana.
Para além disso, em determinadas situações, sem apresentação de razão plausível, não são lançados concursos públicos para a contratação de consultores para a reforma legal e, nos casos de adjudicação directa, também não estão claros os critérios da mesma. Na verdade, a contratação de consultores para a materialização da reforma ou revisão legal tornou-se um negócio maculado, em que o que fala mais alto é a distribuição dos elevados honorários e comissões entre os envolvidos no processo e não o conhecimento e a capacidade técnica.
Outrossim, o processo de reforma ou revisão legal em Moçambique raramente é acompanhado da devida participação pública, a qual é feita à velocidade da luz, sem tempo razoável para análise e oferecimento de contribuições consistentes e coerentes, para além de que há significativa exclusão de actores chave da área cuja reforma se opera, como é o caso das organizações da sociedade civil, da Ordem dos Advogados de Moçambique e da academia que não se resume apenas na Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane.
Os processos de revisão da CRM, a lei mãe, em particular a de 2004 e sobretudo a de 2018, aprovada pela Lei n.º 1/2018 de 12 de Junho, foram altamente caracterizados por deficiente participação pública. Nesta última revisão constitucional, devido à importância e profundidade das alterações constitucionais introduzidas houve quem defendesse a necessidade de referendo, considerando a adopção da descentralização político-administrativa agora em vigor e a alteração do direito de sufrágio universal e de participação política no que às autarquias locais diz respeito. Porém, a obrigatoriedade de realização do referendo foi completamente ignorada.
Importa aqui referir que em alguma participação pública que é levada a cabo em vários casos de reforma legal, ainda que de forma deficiente, as contribuições quase que são ignoradas no documento final aprovado. Trata-se, pois, de uma participação pública forçada, senão forjada, com o intuito principal de legitimar o processo em questão. Algumas organizações são chamadas para oferecer as suas contribuições em prazos extremamente curtos que não permitem a profunda e boa análise dos documentos normativos a aprovar.
Em bom rigor, o processo de reforma ou revisão legal está a ser penoso para o Estado do ponto de vista de tempo e dinheiro perdido, bem como da perda de credibilidade das instituições envolvidas neste processo aos olhos dos cidadãos, uma vez que é aprovada legislação de difícil compreensão e implementação.
Não faz sentido que a revisão do Código Penal tenha tido sido efectivada no ano de 2014 através da Lei n.º 35/2014, de 31 de Dezembro, para num período de cinco anos, já no ano de 2019, este Código Penal ter sido sujeito à nova revisão com a aprovação e entrada em vigor da Lei n.º 24/2019, de 24 de Dezembro, que aprova o novo Código Penal ora em vigor. Curiosamente, há sinais de que o mesmo é novamente objecto de um processo de revisão devido às várias incongruências estruturais e de conteúdo que apresenta para um bom exercício hermenêutico no interesse do Estado de direito democrático, de justiça social, baseado no respeito pelos direitos humanos.
Situação similar verifica-se relativamente ao processo de revisão do Código do Processo Penal que foi efectivado através da aprovação e entrada em vigor da Lei n.º 25/2019, de 26 de Dezembro, em que partes das suas normas são de duvidosa constitucionalidade de tal sorte que foram objecto de acção de inconstitucionalidade junto ao Conselho Constitucional ainda por decidir.
Um outro exemplo de obscuridade de reforma ou revisão legal que muito custa ao Estado prende-se com a legislação eleitoral que, obrigatoriamente, é reformada a cada ciclo eleitoral e não obedece a nenhuma orientação de política legislativa senão a vontade e interesses partidários dos principais partidos com assento na Assembleia da República.
Alguns regulamentos (decretos) do Conselho de Ministros e Posturas Municipais são elaborados e aprovados de forma problemática, com sérios encargos para o povo, sem que ao mesmo seja dada a oportunidade de participação pública transparente e compreensão das razões e objectivos da reforma ou adopção desses actos normativos, com grande impacto no bolso e condições de vida dos cidadãos.
No contexto da COVID-19, foi aprovada a Lei n.º 10/2020, de 24 de Agosto (Lei que estabelece o Regime Jurídico de Gestão e Redução do Risco de Desastres), cuja participação pública foi deficiente e os critérios de contratação de consultores para o efeito não transparente.
Actualmente, só para dar alguns exemplos correm processos de reforma ou revisão legal que abrangem áreas ou matéria de grande relevância e interesse público cuja transparência, participação efectiva e abrangente se requer, quais sejam:
Portanto, há uma propositada desorganização no processo de produção legislativa que permite com que este processo seja um negócio obscuro altamente lucrativo para determinadas entidades e que fere os princípios mais elementares do processo de produção legislativa, como a democracia e da transparência, tanto é que ultimamente a legislação aprovada é altamente deficiente e dificilmente reflecte a realidade moçambicana. Não há, pois, um verdadeiro debate público, sem discriminação no processo de produção legislativa.
Carlos Cardoso acordou da morte. Abriu com os dedos os botões de balas que lhe fechavam o ar húmido da vida. As cápsulas das balas caíram vazias de morte sobre os pés de Cardoso. Mirou o trânsito que entornava quilos de buzinas na estrada. A sua coluna grasnou como dobradiças de uma porta com verniz de ferrugem. E porque continuava vaidoso, penteou com os dedos os cabelos; da nuca à testa e da testa às laterais. Acordou da morte.
Deu dois passos e atravessou, com os passos diagonais, a estrada da Praça dos Continuadores. Dois vendedores ambulantes mostraram-lhe relógios de prata; faziam coros de preços decrescentes, simulavam colocar o relógio no seu pulso, mas Cardoso não tinha tempo de olhar aos números curvados debaixo de ponteiros apressados e sem tempo. Avançou o jornalista. Cheirava a sono húmido da cova da morte e tinha pegadas de gritos no rosto. Os mesmos gritos que explodiu pela boca quando morreu. A barba branca baloiçava nas mechas do bigode bem arrumado pelo tempo.
Entrou num café onde na porta o corpo de Cistac, derramado ao chão, plantava coágulos de sangue no solo. Recuou o passo. Observou o corpo de Cistac vibrando os últimos movimentos da vida. Chorou pela morte de Cistac porque também já tinha morrido e sabia que a morte era um alfabeto duro de ler. Nada podia fazer Cardoso naquele momento. Do seu lado passou uma manada de carros avermelhados de sirenes, com as ancas escoltadas por motorizadas e logo traçou uma linha de ligação entre o corpo de Cistac e os carros que se dissolviam na luz da velocidade.
Fez uma ventoinha com o jornal, “Metical”, dobrado que trazia no cabide da axila e abafou o calor que lhe escorria o rosto de suor. Tomou um café. Viu as horas no relógio que não tinha no pulso. Um ecrã com corcunda, com dois ramos metálicos de antena, preso numa caixa de grades, no canto da cafetaria, trazia a Cardoso imagens do seu país. Era um ecrã preso, falando de um país livre. A legenda obesa de letras das imagens afinava-se e saía pelas grades até aos olhos de Cardoso.
De súbito Cardoso recordou-se que era dia 22 de Novembro. Tinha a segunda volta da morte. Tinha de voltar a morrer. Arrumou-se, no café, deixou o valor da conta numa toalhinha de papel, bebeu as últimas imagens do ecrã preso, leu na necrologia do jornal a sua morte, algemou as palavras com os botões de balas e voltou a morte.
Em 1975, Moçambique alcançou a independência política e passou a ter uma representação política legítima e proveniente de uma revolução no verdadeiro sentido Marxista. Os novos representantes políticos construíram um Campo Político descrito por Pierre Bourdieu (1930 – 2002), pensador francês e detentor de uma vasta obra sobre ciências sociais e políticas, entre elas: O Poder Simbólico (1989), mas cujo Campo Político tem similaridades ao neo-maquiavelismo[1].
Na obra O Poder Simbólico, Pierre Bourdieu explica: "o Campo Político é entendido como um campo de forças e das lutas que têm em vista transformar a relação de forças que confere a este campo a sua estrutura em dado momento (…)" ou seja, “o Campo político é o lugar em que se geram a concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos (…)" (2007: p.164). Em outras palavras, Bourdieu pretende nos dizer que o Campo Político é um microcosmo que nos permite construir de maneira rigorosa e demonstrar como funciona a arena política, o jogo político e as lutas políticas.
Nesta perspectiva, segundo Bourdieu, entende-se por representação política um mundo social onde existem os profanos (o povo/as massas) que reconhecem que não têm competência de governar, dirigir ou gerir a coisa pública e entregam aos profissionais políticos para pegarem o leme do barco e colocarem o barco a navegar.
Acredita-se que, devidos às suas limitações epistemológicas sobre como funciona a coisa pública, os profanos prefiram permanecer como "agentes politicamente passivos", enquanto isso, os profissionais políticos, que a princípio devem ser figuras amplamente preparadas e munidas de ferramentas necessárias sobre como funciona o Campo Político e a representação política, possam ser "os agentes politicamente activos".
Segundo Pierre Bourdieu, devido a este reconhecimento e entrega do poder dos profanos em relação aos profissionais políticos, estes acabam ganhando a legitimidade e, por consequência, o monopólio da profissão política, uma vez que este tem "condições sociais da constituição da competência social e técnica que a participação activa na política exige" (BOURDIEU, 2007: p.164).
Pierre Bourdieu percebe que os profissionais políticos são individualidades altamente preparadas e dotadas de capacidades intelectuais acima da média. São pessoas capazes de fazerem intervenções públicas exaustivas e convincentes. Possuem conhecimentos em diversas áreas que lhes permitem fazer o jogo político e duplo de uma forma sagaz. São profissionais com uma retórica cientificada e com capital político elevado e que marcham dentro de uma estrutura institucional altamente burocratizada ou organizada.
Os profissionais políticos são homens polidos para o Campo da Política. Entretanto, na Pérola do Índico, já tivemos e existem alguns profissionais políticos com qualidades aproximadas a que Pierre Bourdieu elenca, mas também existem muitos amadores políticos que, mesmo tendo o aval dos profanos (o povo, o eleitor, os desfavorecidos), demonstram não estarem à altura daquilo que a representação política e o Campo Político exigem.
Na Pérola do Índico assistimos individualidades que, mesmo sendo porta-vozes de uma instituição política ou partidária, não possuem um discurso organizacional que o Campo Político emana. Não demonstram que os habitus culturais, sociais e políticos que organizações permanentes orientadas para a conquista do poder exigem. Demonstram que o poder que os profanos ou desfavorecidos lhes concederam para que tivessem um caminho livre de gerir a coisa pública ou mesmo representar-lhe não o merecem.
É importante que, na Pérola do Índico, os profanos saibam quem de facto os representa no Campo Político. Quem de facto possui legitimidade consciente para que, de cinco em cinco anos, possa renovar a nossa chama de esperança e contribuir para o nosso desenvolvimento humano, social, económico, cultural colectivo. Os profanos da Pérola do Índico não devem ser apolíticos, mesmo que os homens políticos e jornalistas políticos continuem a emitir opiniões programadas e com um determinado fim.
Os profanos da Pérola do Índico precisam de entender que, conforme defendia Bourdieu, "a vida política só pode ser comparada com um teatro se se pensar verdadeiramente a relação entre o partido e a classe, entre a luta das organizações políticas e a luta das classes, como uma relação propriamente simbólica" (2007: p.175).
No entanto, o que devemos entender no parágrafo acima é que tudo na política não passa de uma encenação, mesmo quando assistimos aos nossos representantes da "casa da demagogia", aparentemente a contra-atacar-se, devemos entender que, na realidade social, no mundo social que eles representam, aquilo é uma encenação. Tudo está a ser sistematicamente manipulado em função dos interesses dos grupos que os mesmos representam no Campo Político e dos pequenos grupos burgueses que eles incorporam no âmbito da representação política.
Os profanos da Pérola do Índico precisam de descobrir donde vem a luz do sol que ilumina a janela desta caverna platónica, para que saibam escolher quem de facto merece ter o monopólio profissional da política e como funciona a representação política e do Campo Político, para que passemos a ser representados por profissionais políticos à altura e com idoneidade, intelectualidade, responsabilidade, integridade e profissionalismo exigido.
[1] Entende-se como o processo que caracterizou os novos políticos que surgiram a partir do ano de 1974 e que passaram a fazer suas carreiras dentro dos parâmetros de um maquiavelismo adaptado as circunstâncias democráticas. Um maquiavelismo com condimentos do realismo moderno, libertário e sem o uso de pressupostos extremos do maquiavelismo originário. Alias como defende Robert Michels (1971: p.299) que acompanha a natureza humana, que usa da apatia das massas e das multidões, permitindo com isso que haja o desenvolvimento das oligarquias.
O falecimento de Felismão Filimão, em todo bairro, só se soube uma semana depois. Foram as bolhas de cheiro que injectavam o bairro que despertaram a atenção de todos. As moscas drogadas pelo cheiro forte, que saía de um lugar que ainda não se sabia, desmaiavam de pernas ao ar em todo bairro como milicianos abatidos num combate.
O cheiro crescia, enrolado, nos becos do bairro tal qual sai enrolado o fumo de uma chaminé. Uma semana depois, um monte de moscas disputando a fechadura da porta de Felismão Filimão, moscas enormes, com antenas das bocas em riste, denunciaram a nascente do cheiro: saía do quarto minúsculo de Felismão Filimão. Fazia uma semana que não era visto secando a sua pele arranhada de tatuagens e seu corpo preso numa moldura de silêncio no seu quintal.
Felismão Filimão o mesmo que viveu em Portugal durante 16 anos. E quando regressou ao bairro tinha apenas duas bagagens escondidas em recordações: um sotaque português na fala e os olhos cheios de paisagens que nos mostrava por meio de relatos, gestos e estórias. De quando enchia-nos no seu quintal e ensinava-nos a cantar o fado; apertava-nos as bochechas contra os dentes para que as palavras vestissem o seu sotaque e metia-nos num jejum de respirar, por segundos, para podermos ganhar a força nos pulmões e acima recital o fado com beleza.
Arrombou-se a porta, as moscas entulharam-se no interior de casa; o corpo boquiaberto de Felismão Filimão encontra-se escoltado por um silêncio profundo e moscas raspavam-lhe o silêncio que se equilibrava nas teias da saliva consumida pela morte. Meu Deus, Felismão não era o mesmo; não fazia o bico com a boca para filtrar as vogais, não nos explicava as montanhas de Portugal pelas curvas das suas mãos e a bagagem do seu sotaque português tinha sido dissolvido em pó de silêncio.
Ninguém conhecia nenhum familiar de Felismão Filimão no bairro. A única família que tinha e conhecíamos pelas fotografias das suas palavras eram duas raparigas, mulatas, altas, que cursavam direito em Lisboa. Era a família que conhecíamos. Ninguém no bairro não conhecia a paisagem tipográfica de Lisboa; através de Felismão já conhecíamos a Rua Augusta, a Avenida da Liberdade, o Café A Brasileira colada na Rua Garret e já tínhamos passeado de calções curtindo o sol na beira do Rio Tejo na Ribeira das Naus.
Felismão Filimão falou-nos de racismo de Lisboa, dos africanos que corriam, dia e noite, pela cidade tentando tirar o “i” da sua condição de ilegais. Felismão foi enterrado e esquecido num cemitério como um cão sem dono e as suas filhas continuam estudando, em Lisboa, para tornar o mundo menos injusto com o seu Direito. Ao bairro, quando regressou, tinha apenas duas bagagens escondidas em recordações: um sotaque português na fala e os olhos cheios de paisagens; não avanço mais com o texto, tenho medo de perder-me na Rua cor-de-rosa e não ver Felismão explicando, pelos seus gestos enormes, o caminho de voltar.
Por conta da subida do preço dos combustíveis foi avançada uma proposta de ajuste em alta da tarifa de transporte urbano, ora em “banho-maria” por orientação superior do Ministério de tutela. No entanto, mais do que o ajuste ou não da tarifa, é preciso que se ajuste a implementação das soluções em curso com vista a melhoria do transporte urbano na área metropolitana de Maputo.
Das soluções em curso, a observação recai apenas sobre as soluções que foram a aposta recente governamental, nomeadamente o aumento da disponibilização de mais autocarros e a introdução da bilhética eletrónica.
Decorrente do debate público e da simples constatação ressalta que os efeitos desejados destas soluções estão aquém do desejado. A meu ver, elas pecam por terem sido implementadas dentro da actual estrutura operacional de provisão de serviços de transporte urbano, mormente os operadores públicos/municipais e os privados, estes por via das suas cooperativas/associações.
Uma alternativa para a sua implementação seria a de introduzir um novo conceito ou serviço no sistema de transporte urbano que viesse a constituir uma mais-valia na qualidade do serviço prestado. Este raciocínio parte da experiência positiva de um projecto privado de transporte ferro-rodoviário, denominado “MetroBus”, em implementação na área metropolitana de Maputo desde o ano de 2018.
A entrada em funcionamento deste projecto – o tal novo conceito - consistiu nas mesmas soluções dos esforços governamentais: a introdução de novos meios (comboios e autocarros) e da bilhética eletrónica. De outro modo, caso os meios alocados e o serviço da bilhética fossem para serem implementados dentro da estrutura operacional existente, quer ferroviária quer rodoviária, tenho pouca fé que elas teriam logrado sucesso. Aliás, os factos falam por si.
Em suma, a estratégia para a implementação dessas e de outras soluções passa por “não mexer o cancro” ao mesmo tempo que se criam condições alternativas para uma transição ou substituição paulatina do que é actualmente oferecido aos utentes de transporte público de passageiros em Maputo.
Quiçá, e para terminar, por que o Ministério de tutela não aproveita o defeso do ajuste da tarifa de transporte urbano e convoque uma reflexão da sociedade tendo em pauta, entre outras matérias, a necessidade de ajustar a forma de implementação das soluções (governamentais), quer as citadas quer de outras, em defesa da melhoria do transporte urbano na área metropolitana de Maputo e não só.