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Carta de Opinião

sexta-feira, 10 dezembro 2021 07:32

O regresso de Carlos Cardoso…

Carlos Cardoso acordou da morte. Abriu com os dedos os botões de balas que lhe fechavam o ar húmido da vida. As cápsulas das balas caíram vazias de morte sobre os pés de Cardoso. Mirou o trânsito que entornava quilos de buzinas na estrada. A sua coluna grasnou como dobradiças de uma porta com verniz de ferrugem. E porque continuava vaidoso, penteou com os dedos os cabelos; da nuca à testa e da testa às laterais. Acordou da morte.

 

Deu dois passos e atravessou, com os passos diagonais, a estrada da Praça dos Continuadores. Dois vendedores ambulantes mostraram-lhe relógios de prata; faziam coros de preços decrescentes, simulavam colocar o relógio no seu pulso, mas Cardoso não tinha tempo de olhar aos números curvados debaixo de ponteiros apressados e sem tempo. Avançou o jornalista. Cheirava a sono húmido da cova da morte e tinha pegadas de gritos no rosto. Os mesmos gritos que explodiu pela boca quando morreu. A barba branca baloiçava nas mechas do bigode bem arrumado pelo tempo.

 

Entrou num café onde na porta o corpo de Cistac, derramado ao chão, plantava coágulos de sangue no solo. Recuou o passo. Observou o corpo de Cistac vibrando os últimos movimentos da vida. Chorou pela morte de Cistac porque também já tinha morrido e sabia que a morte era um alfabeto duro de ler. Nada podia fazer Cardoso naquele momento. Do seu lado passou uma manada de carros avermelhados de sirenes, com as ancas escoltadas por motorizadas e logo traçou uma linha de ligação entre o corpo de Cistac e os carros que se dissolviam na luz da velocidade.

 

Fez uma ventoinha com o jornal, “Metical”, dobrado que trazia no cabide da axila e abafou o calor que lhe escorria o rosto de suor. Tomou um café. Viu as horas no relógio que não tinha no pulso. Um ecrã com corcunda, com dois ramos metálicos de antena, preso numa caixa de grades, no canto da cafetaria, trazia a Cardoso imagens do seu país. Era um ecrã preso, falando de um país livre. A legenda obesa de letras das imagens afinava-se e saía pelas grades até aos olhos de Cardoso.

 

De súbito Cardoso recordou-se que era dia 22 de Novembro. Tinha a segunda volta da morte. Tinha de voltar a morrer. Arrumou-se, no café, deixou o valor da conta numa toalhinha de papel, bebeu as últimas imagens do ecrã preso, leu na necrologia do jornal a sua morte, algemou as palavras com os botões de balas e voltou a morte.

Em 1975, Moçambique alcançou a independência política e passou a ter uma representação política legítima e proveniente de uma revolução no verdadeiro sentido Marxista. Os novos representantes políticos construíram um Campo Político descrito por Pierre Bourdieu (1930 – 2002), pensador francês e detentor de uma vasta obra sobre ciências sociais e políticas, entre elas: O Poder Simbólico (1989), mas cujo Campo Político tem similaridades ao neo-maquiavelismo[1].

 

Na obra O Poder Simbólico, Pierre Bourdieu explica: "o Campo Político é entendido como um campo de forças e das lutas que têm em vista transformar a relação de forças que confere a este campo a sua estrutura em dado momento (…)" ou seja, “o Campo político é o lugar em que se geram a concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos (…)" (2007: p.164). Em outras palavras, Bourdieu pretende nos dizer que o Campo Político é um microcosmo que nos permite construir de maneira rigorosa e demonstrar como funciona a arena política, o jogo político e as lutas políticas.

 

Nesta perspectiva, segundo Bourdieu, entende-se por representação política um mundo social onde existem os profanos (o povo/as massas) que reconhecem que não têm competência de governar, dirigir ou gerir a coisa pública e entregam aos profissionais políticos para pegarem o leme do barco e colocarem o barco a navegar.

 

Acredita-se que, devidos às suas limitações epistemológicas sobre como funciona a coisa pública, os profanos prefiram permanecer como "agentes politicamente passivos", enquanto isso, os profissionais políticos, que a princípio devem ser figuras amplamente preparadas e munidas de ferramentas necessárias sobre como funciona o Campo Político e a representação política, possam ser "os agentes politicamente activos".

 

Segundo Pierre Bourdieu, devido a este reconhecimento e entrega do poder dos profanos em relação aos profissionais políticos, estes acabam ganhando a legitimidade e, por consequência, o monopólio da profissão política, uma vez que este tem "condições sociais da constituição da competência social e técnica que a participação activa na política exige" (BOURDIEU, 2007: p.164).

 

Pierre Bourdieu percebe que os profissionais políticos são individualidades altamente preparadas e dotadas de capacidades intelectuais acima da média. São pessoas capazes de fazerem intervenções públicas exaustivas e convincentes. Possuem conhecimentos em diversas áreas que lhes permitem fazer o jogo político e duplo de uma forma sagaz. São profissionais com uma retórica cientificada e com capital político elevado e que marcham dentro de uma estrutura institucional altamente burocratizada ou organizada.

 

Os profissionais políticos são homens polidos para o Campo da Política. Entretanto, na Pérola do Índico, já tivemos e existem alguns profissionais políticos com qualidades aproximadas a que Pierre Bourdieu elenca, mas também existem muitos amadores políticos que, mesmo tendo o aval dos profanos (o povo, o eleitor, os desfavorecidos), demonstram não estarem à altura daquilo que a representação política e o Campo Político exigem.

 

Na Pérola do Índico assistimos individualidades que, mesmo sendo porta-vozes de uma instituição política ou partidária, não possuem um discurso organizacional que o Campo Político emana. Não demonstram que os habitus culturais, sociais e políticos que organizações permanentes orientadas para a conquista do poder exigem. Demonstram que o poder que os profanos ou desfavorecidos lhes concederam para que tivessem um caminho livre de gerir a coisa pública ou mesmo representar-lhe não o merecem.

 

É importante que, na Pérola do Índico, os profanos saibam quem de facto os representa no Campo Político. Quem de facto possui legitimidade consciente para que, de cinco em cinco anos, possa renovar a nossa chama de esperança e contribuir para o nosso desenvolvimento humano, social, económico, cultural colectivo. Os profanos da Pérola do Índico não devem ser apolíticos, mesmo que os homens políticos e jornalistas políticos continuem a emitir opiniões programadas e com um determinado fim.

 

Os profanos da Pérola do Índico precisam de entender que, conforme defendia Bourdieu, "a vida política só pode ser comparada com um teatro se se pensar verdadeiramente a relação entre o partido e a classe, entre a luta das organizações políticas e a luta das classes, como uma relação propriamente simbólica" (2007: p.175).

 

No entanto, o que devemos entender no parágrafo acima é que tudo na política não passa de uma encenação, mesmo quando assistimos aos nossos representantes da "casa da demagogia", aparentemente a contra-atacar-se, devemos entender que, na realidade social, no mundo social que eles representam, aquilo é uma encenação. Tudo está a ser sistematicamente manipulado em função dos interesses dos grupos que os mesmos representam no Campo Político e dos pequenos grupos burgueses que eles incorporam no âmbito da representação política.

 

Os profanos da Pérola do Índico precisam de descobrir donde vem a luz do sol que ilumina a janela desta caverna platónica, para que saibam escolher quem de facto merece ter o monopólio profissional da política e como funciona a representação política e do Campo Político, para que passemos a ser representados por profissionais políticos à altura e com idoneidade, intelectualidade, responsabilidade, integridade e profissionalismo exigido.              

 

[1] Entende-se como o processo que caracterizou os novos políticos que surgiram a partir do ano de 1974 e que passaram a fazer suas carreiras dentro dos parâmetros de um maquiavelismo adaptado as circunstâncias democráticas. Um maquiavelismo com condimentos do realismo moderno, libertário e sem o uso de pressupostos extremos do maquiavelismo originário. Alias como defende Robert Michels (1971: p.299) que acompanha a natureza humana, que usa da apatia das massas e das multidões, permitindo com isso que haja o desenvolvimento das oligarquias. 

O falecimento de Felismão Filimão, em todo bairro, só se soube uma semana depois. Foram as bolhas de cheiro que injectavam o bairro que despertaram a atenção de todos. As moscas drogadas pelo cheiro forte, que saía de um lugar que ainda não se sabia, desmaiavam de pernas ao ar em todo bairro como milicianos abatidos num combate.

 

O cheiro crescia, enrolado, nos becos do bairro tal qual sai enrolado o fumo de uma chaminé. Uma semana depois, um monte de moscas disputando a fechadura da porta de Felismão Filimão, moscas enormes, com antenas das bocas em riste, denunciaram a nascente do cheiro: saía do quarto minúsculo de Felismão Filimão. Fazia uma semana que não era visto secando a sua pele arranhada de tatuagens e seu corpo preso numa moldura de silêncio no seu quintal.

 

Felismão Filimão o mesmo que viveu em Portugal durante 16 anos. E quando regressou ao bairro tinha apenas duas bagagens escondidas em recordações: um sotaque português na fala e os olhos cheios de paisagens que nos mostrava por meio de relatos, gestos e estórias. De quando enchia-nos no seu quintal e ensinava-nos a cantar o fado; apertava-nos as bochechas contra os dentes para que as palavras vestissem o seu sotaque e metia-nos num jejum de respirar, por segundos, para podermos ganhar a força nos pulmões e acima recital o fado com beleza.

 

Arrombou-se a porta, as moscas entulharam-se no interior de casa; o corpo boquiaberto de Felismão Filimão encontra-se escoltado por um silêncio profundo e moscas raspavam-lhe o silêncio que se equilibrava nas teias da saliva consumida pela morte. Meu Deus, Felismão não era o mesmo; não fazia o bico com a boca para filtrar as vogais, não nos explicava as montanhas de Portugal pelas curvas das suas mãos e a bagagem do seu sotaque português tinha sido dissolvido em pó de silêncio.

 

Ninguém conhecia nenhum familiar de Felismão Filimão no bairro. A única família que tinha e conhecíamos pelas fotografias das suas palavras eram duas raparigas, mulatas, altas, que cursavam direito em Lisboa. Era a família que conhecíamos. Ninguém no bairro não conhecia a paisagem tipográfica de Lisboa; através de Felismão já conhecíamos a Rua Augusta, a Avenida da Liberdade, o Café A Brasileira colada na Rua Garret e já tínhamos passeado de calções curtindo o sol na beira do Rio Tejo na Ribeira das Naus.

 

Felismão Filimão falou-nos de racismo de Lisboa, dos africanos que corriam, dia e noite, pela cidade tentando tirar o “i” da sua condição de ilegais. Felismão foi enterrado e esquecido num cemitério como um cão sem dono e as suas filhas continuam estudando, em Lisboa, para tornar o mundo menos injusto com o seu Direito. Ao bairro, quando regressou, tinha apenas duas bagagens escondidas em recordações: um sotaque português na fala e os olhos cheios de paisagens; não avanço mais com o texto, tenho medo de perder-me na Rua cor-de-rosa e não ver Felismão explicando, pelos seus gestos enormes, o caminho de voltar.

Por conta da subida do preço dos combustíveis foi avançada uma proposta de ajuste em alta da tarifa de transporte urbano, ora em “banho-maria” por orientação superior do Ministério de tutela. No entanto, mais do que o ajuste ou não da tarifa, é preciso que se ajuste a implementação das soluções em curso com vista a melhoria do transporte urbano na área metropolitana de Maputo.

 

Das soluções em curso, a observação recai apenas sobre as soluções que foram a aposta recente governamental, nomeadamente o aumento da disponibilização de mais autocarros e a introdução da bilhética eletrónica.

 

Decorrente do debate público e da simples constatação ressalta que os efeitos desejados destas soluções estão aquém do desejado. A meu ver, elas pecam por terem sido implementadas dentro da actual estrutura operacional de provisão de serviços de transporte urbano, mormente os operadores públicos/municipais e os privados, estes por via das suas cooperativas/associações.

 

Uma alternativa para a sua implementação seria a de introduzir um novo conceito ou serviço no sistema de transporte urbano que viesse a constituir uma mais-valia na qualidade do serviço prestado. Este raciocínio parte da experiência positiva de um projecto privado de transporte ferro-rodoviário, denominado “MetroBus”, em implementação na área metropolitana de Maputo desde o ano de 2018. 

 

A entrada em funcionamento deste projecto – o tal novo conceito - consistiu nas mesmas soluções dos esforços governamentais: a introdução de novos meios (comboios e autocarros) e da bilhética eletrónica. De outro modo, caso os meios alocados e o serviço da bilhética fossem para serem implementados dentro da estrutura operacional existente, quer ferroviária quer rodoviária, tenho pouca fé que elas teriam logrado sucesso. Aliás, os factos falam por si. 

 

Em suma, a estratégia para a implementação dessas e de outras soluções passa por “não mexer o cancro” ao mesmo tempo que se criam condições alternativas para uma transição ou substituição paulatina do que é actualmente oferecido aos utentes de transporte público de passageiros em Maputo.

 

Quiçá, e para terminar, por que o Ministério de tutela não aproveita o defeso do ajuste da tarifa de transporte urbano e convoque uma reflexão da sociedade tendo em pauta, entre outras matérias, a necessidade de ajustar a forma de implementação das soluções (governamentais), quer as citadas quer de outras, em defesa da melhoria do transporte urbano na área metropolitana de Maputo e não só.

sexta-feira, 03 dezembro 2021 08:19

Da vez que "encarei" um temível General!

A escola estava agitada. Todos estavam ansiosos com a chegada do orador da palestra. Um General "nacionalista" e bastante referenciado em vários manuais da história oficial do país. Estávamos no ano de 2008, na altura, era estudante da Escola Secundária e Pré-universitária 25 de Setembro, na cidade de Quelimane, província da Zambézia. Uma acrópole grega, sediada a meia distância do núcleo das margens do rio dos Bons Sinais.

 

Todos queriam conhecer o General sobre o qual só líamos nos livros, revistas e jornais. Ouvíamos suas intervenções nas rádios e assistimos certas vezes suas aparições pela televisão. O cartaz estava fixado e tinha como tema da palestra: Serviço Militar Obrigatório e patriotismo. Naquele dia, o pavilhão desportivo da escola estava lotado e a juventude queria ouvir e ver por perto sobre os valores do patriotismo vindos de quem um dia abandonou os vícios da mocidade para se dedicar à longa luta pela independência de Moçambique.

 

A palestra começou. Embora o espaço estivesse lotado, todos ficaram calmos e atentos. Afinal, estávamos diante do General Alberto Chipande. Uma lenda viva nos amuletos oficiais sobre a nossa história. A intervenção do General decorria e calmamente explicava as vantagens de fazer parte do Serviço Militar Obrigatório (SMO) e o que o acto representava. Na palestra, o General deixou patente que todos nós tínhamos a obrigatoriedade de fazer parte do processo e que não existiam diferenças por lá (…) foi neste momento que uma pulga pousou na minha orelha e começou a incomodar-me.

 

Terminada a explanação do General Chipande, abriu-se o pavilhão para a sessão de perguntas e respostas. Eis que, depois de alguns colegas proferirem os seus "discursos sofistas" e de muitos conceitos elogiando o General, o que não era o centro do encontro, levantei o braço e pedi a palavra.

 

Num tom inocente e contextualizando os factos, sobre o que acompanhava noutros circuitos de informação e de opinião, sobre a matéria da palestra, questiono o General: Porque é que os filhos de pessoas com um status social e influência política como do General não cumpriam o SMO? E o que diferenciava estes moçambicanos acima mencionados de nós, os filhos dos pobres e sem qualquer influência política, económica e social?

 

Terminada a minha intervenção, seguiu-se um momento de palmas e gritos (é isso – diziam os jovens presentes no pavilhão e eufóricos!). Devolvida a palavra ao palestrante, eis que começou um discurso de que casos de género não existiam e que na República de Moçambique todos éramos iguais e não existiam protegidos perante a Lei, fôssemos filhos de qualquer individualidade, tínhamos de nos inscrever para fazer parte daquele dever patriótico. Com as questões e as respostas, esperava-se que viessem exemplos concretos dos filhos de grandes individualidades que haviam passado por lá, mas nada disso aconteceu!

 

No final da palestra, fui solicitado por alguns coronéis e directores que acompanhavam o General e procuraram saber quem eu era e quais eram as minhas origens. No dia pediram para que não colocasse questões de género em eventos como aqueles e que estava a agitar a juventude com as minhas perguntas – fiquei calmo e reparando nos olhos de quem falava – em seguida, calei-me e segui os meus colegas!

 

Sucede que, minutos depois da comitiva sair, fui solicitado no Gabinete do Director da Escola. Pensando que era para ser elogiado, eis que começa um processo inquisitório por parte da então pedagógica da escola, procurando saber, porque eu havia feito aquilo e quem teria encomendado aquelas perguntas. Fiquei perplexo e intrinsecamente ia indagando – eu sou estudante da 11ª classe de letras e, para além disso, leio e acompanho os debates públicos e opiniões diversas, e mesmo estando em Quelimane, isto não deveria constituir motivo de limitação para pensar Moçambique.

 

A Directora-pedagógica e o colectivo de docentes delegados para o inquisitório ficaram falando cerca de 30 minutos, ameaçando e aconselhando para que não voltasse a fazer o que havia feito. Após aquele exercício, passaram-me a palavra e eis que questionei: qual era a finalidade da educação ou do processo de ensino-aprendizagem que os professores levam a cabo na escola? Ninguém respondeu e, diante deles, eu disse: pensei que a escola fosse um espaço de desenvolvimento humano, de transformação intelectual e da nossa forma de pensar – entre eles, o pensamento crítico da nossa realidade social e política.

 

Sem respostas do colectivo inquisitório, deixaram-me sair do gabinete e do lado exterior, alguns colegas aguardavam e abraçaram-me, elogiaram-me e revelaram que toda a escola estava comigo, porque era assim como muitos estudantes deveriam ser. 

 

Entretanto, a pedagógica e alguns docentes haviam me marcado e sempre que pudessem faziam questão de lembrar-me que estavam de olho e, caso não estudasse, as coisas seriam muito difíceis. Aquele facto fez-me estudar a dobrar e, mesmo com o roubo de notas, acabei dispensando várias disciplinas e aprovado nos exames de algumas que havia feito. No entanto, não foi fácil enfrentar os efeitos colaterais por "encarar" o temível General!!!

sexta-feira, 03 dezembro 2021 08:09

Peço mola, Doutor

O gajo levanta-se as 4 e tal e vê se está tudo em ordem. Txuno-me, encosto a porta para não acordar a baby e ligo para o motorista para saber onde lhe pegar. Encontro-me com o motorista e a primeira coisa que faço é varrer as cascas de amendoim no bus. Eu não entendo esses passageiros todos dias gritamos “não queremos amendoim”.

 

E começamos com a primeira volta a mais sensível e maningue nice. Esquivamos a polícia e os buracos da cidade. Os passageiros não devem atrasar, porque isso pode nos prejudicar na receita. O atraso do passageiro é nosso atraso. Na primeira volta as magras é são mais nices, não ocupam muito espaço e afinam-se com facilidade. Há aqueles passageiros que não aguentam descer sem ter me chamo de zero. Sempre criando stresses. Se não é o passageiro que tira nota grande na paragem, um 1000, é o motorista que me insulta porque não fechei bem a porta, ora porque fiz um toque no meio da estrada.

 

Todos me insultam. E na terceira volta a baby começa a mandar bipes, porque quer saber qual é a ideia na house. Envio para ela o pouco que afinei e ela fica relaxada. Não temos time de almoçar, time de sentar e comer algo, comemos em movimento; um ovo no Benfica, uma coca no Jardim, uma maça no Fajardo e uma dose no museu. E as cenas correm. O importante é ganhar o dia.

 

Os passageiros insultam-me sempre, esquecem-se que eu também sei insultar; brow, eu tenho insultos pesados. Quando batem um cell no chapa todos olham para mim. Se não é minha mãe que me educou mal, é o meu pai que criou um marginal, mas eu não entendo onde entram os meus pais aqui no chapa. Faço esforço para levar esses tipos ao job e eles fazem de tudo para me tirar o job. São chefes, mas não sobem táxi.

 

Sabe, o cobrador é um cão de rua; sempre deve acertar ser atirado pedras; costumo dizer uma coisa: aos passageiros dou troco e razão; é a melhor maneira de não criar stress. Eu desde que cresci aprendi que pessoa viva não cheira mal, mas eu já fui dito que cheiro mal. É um beat que já me acostumei.

Ao meio-dia a cena acalma-se, jobamos sem pressa e preparamo-nos para ouvir os insultos dos chefes que saem às 17h. Saem stressados e descarregam tudo em mim. A partir das 17h é hora de ponta, pois todos enfiam-me as suas pontas.

 

Edjow, deixa de puxar papo comigo para depois não pagar. Peço mola, Doutor.

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