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Carta de Opinião

quinta-feira, 04 junho 2020 06:57

Mwali

Está no fim da estrada e mantém a dignidade dos tempos. Não verga. Quanto mais perto da meta, mais pujança na sua personalidade. É como se estivesse num grande estádio a abarrotar, sentido as palmas que a catapultam. Sabe que já não terá mais forças do que estas que estão no limite, por isso usa-as até ao limite. Não recorre aos anabolizantes, os anabolizantes é a música do passado, que repete sem se cansar no seu inacreditável gira-discos, daí a frescura transbordante da Mwali, recolhida numa casa transformada em Meca, onde os amigos vão regularmente para ouvir as histórias de uma era pura, que parece voltar em cada palavra.

 

Vive na orla do mar, de onde continua a usufruir, como sempre desde a nascença, da pompa de uma paisagem fascinante que se estende a seus pés. Dali ela acompanha o movimento dos pescadores, que muitas vezes voltam com os cestos vazios, depois de longas horas puxando as redes de emalhar ou de arrasto, ou ainda das mulheres, que ao cair da noite descem com as pequenas redes de pesca de camarão, e regressam também derrotadas, sem nada. Mas há muitos momentos também, que Mwali testemunha o festejar da faina farta.

 

Ela é a nossa secerdotisa, colocada no lugar de sumo pontífice, posto conquistado pelas “homilias” inacabáveis que inocula para que, segundo ela própria,  pelo menos nos recordemos da existência do Criador do Céu e da Terra. E dos Homens. Mas Mwali por vezes exagera, se calhar levada pelas emoções de um ambiente borbulhante, que nos espicaça a querer voltar sem cessar, num ciclo vicioso, para aquele lugar que nos entusiasma. Citou, numa das recentes ocasiões, sem saber que provocaria um efervescente debate, uma vez que está habituada a ser ouvida sem grandes questionamentos quando evoca a bíblia, uma passagem que nos pareceu ser um contra-senso.

 

Normalmente nunca temos o livro Sagrado por sobre a mesa, para aferir o que vamos ouvindo da Mwali. O que ela diz é por demais caudaloso, tão profuso que nos limitamos a abanar a cabeça em sinal de consentimento, como vassalos, virando goela à baixo, de vez em quando, uma cachaçazita sempre disponível, para aclarar a mente. Mas nesse dia as coisas mudaram de rumo. Segundo Mwali, no Salmos, cap. 21, David diz o seguinte: “o que me magoa, é que o Altíssimo já não é o mesmo”. Perante esta afirmação, um dos companheiros virou-se para Mwali e disse, isso não é verdade! Não sou leitor da bíblia mas Deus sempre foi o mesmo desde que existe, quem não é o mesmo somos nós. Deus não é metamorfo.

 

No lugar de o ambiente gelar, uma vez que a “raínha” era posta em causa pela primeira vez, a “afronta” tornou-se  motivo para voltarmos a encher os copos e desligar o gira-discos que tocava, em disco de vinil, a música de Percy Sledge, When a man loves a woman. Pedimos a bíblia, e Mwali disse que não tinha bíblia, porém - como nos afiançava -  o que ela dizia era a pura verdade, e que se quisessemos nos certificar disso, então podemos ir consultar nas nossas casas. E é o que vamos fazer, enquanto aguardamos o próximo enconto que já está a criar emormes expectativas.

O 1º presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane (1920-1969), sociólogo e antropólogo, completa 100 primaveras a 20 de Junho. Em jeito de antecipada celebração seguem as duas cenas abaixo e retorno mais abaixo. 

 

Cena 1

 

Mondlane é apontado como o arquitecto da unidade nacional. Amiúde tem aparecido em discursos políticos, sobretudo de membros de sucessivos Governos e do partido que o suporta. Em tais discursos oiço apenas terceiros (falando dele), mas não o oiço (a voz de Mondlane). E sobre ele não consta que tivesse sido mudo. É estranho que um arquitecto nunca fale da sua obra, particularmente das que fazem diferença. Idem para as obras problemáticas: o arquitecto vem sempre a terreiro em sua própria defesa. E Mondlane quando virá a terreiro? Espero que seja durante as celebrações oficiais dos redondos 100 anos de Eduardo Mondlane.

 

Que desta vez seja diferente e no lugar do silêncio de sempre, o poder e seus suportes, possam, através da imprensa, exibir vídeos, áudios e escritos de entrevistas, discursos e de outras intervenções de Eduardo Mondlane. Foi e é assim com a figura do 1º presidente do Estado moçambicano Samora Machel (1933-1986), o sucessor de Mondlane na chefia da FRELIMO. Oxalá que desta o partido FRELIMO faça jus a uma das suas marcas: a valorização da tradição e dos bons costumes.

 

Cena 2

 

Um pouco antes do 1º período do estado de emergência um amigo levou-me pelo copo a um roteiro nocturno pelos bares do Bairro do Alto-Maé. Já madrugada dentro sai de uma das casas de pasto para apanhar ar puro. Dei alguns passos e sentei-me nas escadas da estátua de Eduardo Mondlane, no mesmo bairro, para um dedinho de conversa com o arquitecto da Unidade Nacional. E em jeito de prenda antecipada pelo 100º aniversário levei-o a um passeio pela avenida com o seu nome. Era o meu segundo roteiro do dia e desta em companhia de alguém que mostrara o roteiro para a independência e não o de bares (risos).

 

Foi um passeio interessante e de “encontros históricos” com ilustres figuras de gabarito internacional, perfilados em certos cruzamentos da Av. Eduardo Mondlane. Todos lamentaram que o Mondlane tivesse partido tão cedo. O primeiro encontro foi com o ex-presidente da Somália Mohamed Siad Barre (1919-1995) que contara que esteve no Estádio da Machava quando Machel proclamara a independência total e completa de Moçambique. Em seguida foi com o ex-presidente do ANC (África do Sul) Albert Lithuli (1898-1967) que a par de Salvador Allende (1908-1973), ex-presidente do Chile, deposto e assassinado num golpe de estado, agradeceram o apoio e a solidariedade de Moçambique à causa do ANC e a da luta do povo chileno contra a ditadura, respectivamente. Os encontros mais demorados foram com o filósofo alemão Karl Marx (1818-1883) e com o ex- primeiro-ministro da então União Soviética, o russo Vladimir Lenine (1870-1924). Ambos questionaram a Mondlane se a via seguida por Moçambique, no período pós-independência, seria a mesma que ele pensara e, ainda, deploraram a falta de solidariedade da liderança do bloco socialista quando Moçambique mais precisou de seu apoio na década de 1980.

 

Entre Marx e Lenine, o encontro foi com o ex-primeiro-ministro sueco Olof Palm (1927-1986). Palm, relatara que fora assassinado à saída de um cinema cujo inquérito ainda se encontra em banho-maria. No final, desejou que o país de Mondlane alcançasse um nível de desenvolvimento semelhante ao do seu país. Em seguida e o mais estimulante - talvez porque fora o único que decorrera em língua portuguesa - foi o encontro com o Amílcar Cabral (1924-1973), o líder da revolução guineense e cabo-verdiana, um contemporâneo de Mondlane na luta pelas independências dos países colonizados por Portugal. Cabral contara que um pouco depois da morte de Mondlane também o assassinaram e de que diferente do assassinato de Mondlane, que não se sabe ainda o desfecho, o seu fora esclarecido. O último encontro foi com o ex-presidente tanzaniano Julius Nyerere (1922-1999), velho amigo e quem dera guarida à Mondlane para a libertação de Moçambique. Nyerere lamentar-se-á das lideranças das independências dos países africanos que não souberam traduzir as suas boas intenções em boas e melhores condições de vida para os seus povos.  

 

Depois do encontro com Nyerere, a passeata pela Av. Eduardo Mondlane e com o Eduardo Mondlane chegara ao fim sem que o meu comparsa de passeio abrisse a boca, limitando-se apenas a ouvir. “As tantas é mesmo surdo” pensava eu. Fiz um gesto de que podíamos regressar e nesse instante, Mondlane, apontando para a zona envolvente da esquina da avenida Eduardo Mondlane com a Julius Nyerere, pergunta: “Pelo rumo seguido depois da independência a estátua não devia estar por aqui?”. Em seguida e para o meu susto, ele ainda recomenda: “Pense nisso, Assis Macaé”. Digo susto porque Mondlane tratou-me pelo meu nome.  

 

Antes que o meu amigo desse por minha falta e por isso não demorasse, propus a Mondlane que voltássemos de Chapa, transporte semi-colectivo de passageiros. Pegamos o único Chapa sobrevivente da rota Jardim-Costa do Sol. Eram seis da manhã. Mondlane não cabia em nenhum dos assentos e pedi ao motorista que o deixasse conduzir. E assim e sem que ninguém o reconhecesse, o que é estranho, chegamos ao destino. Neste, tudo estava intacto, incluindo o livro que ele deixara à vista de todos e com a intenção que fosse lido ou levado. Enquanto ele se posicionava, ia abanando a cabeça como quem diz “Esta gente não muda”. Já posicionado e em jeito de despedida, uma leve vénia de cada um e o meu obrigado e um silencioso “Saravá, Mondlane!”.

 

Regresso ao bar e o meu amigo já lá não estava. De volta à casa fui matutando no que Mondlane quis dizer com a posição da estátua. Lembrei-me que em tempos, em conversa com amigos, foi sugerida a ideia de que a estátua de Mondlane estaria politicamente e melhor no Bairro da Polana, no ponto referido por Mondlane. Nesse local e de costas para a Embaixada de Portugal, o antigo colonizador e da esfera capitalista ocidental, a estátua de Mondlane sinalizaria de que dava costas ao capitalismo ocidental e rumava em direcção ao povo/socialismo. Onde a estátua se encontra, no Bairro do Alto-Maé, Mondlane dá costas ao povo/socialismo e olha/caminha em direcção ao capitalismo ocidental. Porventura tenha sido esta a mensagem quando, em 1989, em plena época de mudanças, a inauguraram. Haja dúvidas? Que Mondlane venha a terreiro. 

 

PS 1: É interessante que o local onde se encontra a estátua de Eduardo Mondlane seja o ponto de referência para a partida de muitas manifestações da sociedade civil, e não só, e em itinerário até a praça da independência. Um fenómeno interessante e algo simbólico, pois se recorre à Mondlane (o ponto de partida) para reivindicar direitos que deviam ser dados por adquiridos com a independência (o ponto de chegada) ou que a partir dela, a independência, os direitos fossem renovados e adequados aos padrões de cada época. 

 

PS 2: No texto passado prometera de que em Junho publicaria apenas dois textos. Um deles é este e o próximo nas vésperas do dia da independência. Este é inspirado em um anterior (Pai, Mondlane não fala?) que publicara, faz um tempo, num outro jornal da praça. No ano passado, recebi de um amigo, que lera o anterior texto, um áudio curto de uma intervenção de Mondlane. A única vez que escutara a fala de Mondlane.

 

quinta-feira, 28 maio 2020 05:57

Patrão, compra garoupa!

Ir ao mercado da Mafurreira  nas manhãs fazer compras, já se tornou um vício, e isso dá-me um enorme prazer. É um exercício quase de instinto, que me restabelece as emoções, e ajuda-me a não sentir o escorrer do tempo, que por vezes demora passar sobretudo quando estou sozinho, sem que esteja a escrever, ou a dedilhar a guitarra emprestada. É também uma dádiva, no sentido de que regresso sempre à casa com a alma cheia, pelas conversas esporádicas que vou ter aqui e ali, com as vendedeiras que, ao verem-me, vão dizer logo, sorrindo, pari yangu! (amigo!). E eu exulto pela saudação tão sincera. Simples. Profunda.

 

Ainda ontem desci àquele lugar que também é meu. Ou seja, eu sou uma das pétalas desta flor cheia de feridas que podem estar a gangrenar. Flor é todo o mercado, que mesmo sendo pequeno na sua geografia, é o maior da cidade de Inhambane. Pétalas são estas mulheres cujo sonho metamorfoseou-se para dar lugar ao conformismo e a incerteza. Elas já não esperam, são aquelas por quem as crianças esperam em casa com a barriga vazia. Uma barriga que pode não ser saciada porque ninguém comprou nada. O marisco apodreceu.

 

Mas todo este cenário parece sombrio, pois se não fosse, então teriamos ali uma tagarelice de não acabar, e isso não está a acontecer. Há um silêncio dorido, cheio de desesperança, porque ninguém compra nada. Elas já perceberam que não há dinheiro. Ninguém o tem. Porém, não saiem das bancas, onde ruminam todos os dias os seus desesperos. Perderam a vontade de apelar aos potenciais clientes – que vão passando - para comprar qualquer coisa. Ninguém as liga.  E não encontram outra saída que não seja a de aceitar a humilhação de estar ali a boair.

 

Ontem eu queria comprar alface para acompanhar o meu  chá. Contei rigorosamente as moedas, e o valor servia “in extremis” para as minhas necessidades limitadas, que se resumem na alface, tomate, cebola e pão. As outras propostas estavam longe de mim, não que eu não goste de um bom camarão, de uma boa lula e das garoupinhas brilhantes que me enchem os olhos nesta banca à minha frente.  Mas não há nada a fazer,  com o bolso descompensado, senão apenas sonhar com as referidas garoupinhas grelhadas, acompanhadas com batata cozida, pimento assado na brasa e etc.. Porém, todo este meu derretimento não passa da imaginação. Aliás, a aquisição daquele tipo de peixe, é uma empreitada para grandes engenheiros, e eu sou apenas um mirone, que vai enchendo o estômago de baba.

 

Ela olha para mim, sem parar de sacudir as moscas que vão sobreavoando o peixe acabadinho de sair do mar e diz, patrão, compra garoupa, é fresca! Na verdade é uma tentação irresistível, todavia distante para as minhas capacidades. Aliás, foi por conhecer as fraquezas da minha tesouraia, que nem sequer perguntei o preço. Limitei-me a imitar o macaco que, de tanto insistir em saltar par arrancar as uvas, sem nada conseguir, acabou dizendo que não as arrancou porque estavam podres, e eu disse a senhora que não como garoupa.

terça-feira, 26 maio 2020 07:27

Pendências (da Defesa) da Independência

Os Estados nunca estão completamente em paz, e nunca devem assumir que o estejam, tanto é que se afirma que a paz não passa de um intervalo entre duas guerras, justificando, por isso, a necessidade constante de Defesa. E porque a Defesa, sobretudo a de rechaçar hostilidades e proporcionar a segurança territorial e do cidadão, é uma prioridade de qualquer Estado que se preze, exige, em princípio, que o cidadão seja envolvido na respeitante estratégia nacional de Defesa quer na sua execução quer na sua reflexão, sendo esta, igualmente, uma sagrada e honrosa forma de cidadania.

 

Ora, em linha com o dito e em jeito de estímulo para outras e profundas reflexões por entendidos e não só, inicio a minha e curta reflexão, debruçando à superfície sobre algumas pendências (da Defesa) da independência (celebração à porta) tais como o domínio efectivo do território nacional; o tamanho (e tipo) das Forças Armadas; o anel de segurança fronteiriço; a capacidade e sustentabilidade das Forças Armadas; e o interesse nacional. Por último, e por força acrescida do actual quadro de hostilidades que assolam o país, encerro com a perene necessidade de mudança e afirmação das políticas públicas nacionais na resolução destas e outras pendências que minam a segurança territorial e a do cidadão.

 

Sobre a pendência do domínio efectivo do território chamado Moçambique, Portugal, o país colonizador, passou o poder, às novas autoridades de Moçambique independente, sem que antes o tivesse efectivamente ocupado. Depois da independência não se consta uma forte determinação do Estado moçambicano nesse sentido e por isso, quanto a conquista total e completa da independência, é válido o questionamento se a independência foi ou não traduzida na posse e controle de cada centímetro de Moçambique. Deste modo, conferir as estratégias de ordem militar e civil que o poder colonial desenvolvia ou previa desenvolver é crucial e um bom começo para uma reflexão. 

 

Quanto ao tamanho das Forças Armadas, uma pendência que decorre do AGP (Acordo Geral de Paz) de 1992, que, em tempos de multipartidarismo, impunha a formação de novas Forças Armadas de 30 mil efectivos, sendo 15 mil de cada uma das duas partes signatárias é um assunto que já foi motivo de acesos debates cujo cerne – o efectivo e o respectivo preenchimento – carecera que se soubesse antes que tipo de Forças Armadas, afinal, se tratava. Uma reflexão adiada, mas do debate ficara a deixa, por exemplo, de que um território tão vasto e com as características geográficas de Moçambique a sua primeira linha de Defesa de não podia e nem devia ser o Exército (forças terrestres).

 

No que concerne ao anel de segurança fronteiriço e para melhor percepção  se avançam  dois exemplos. O primeiro aponta que do lado da fronteira moçambicana, o anel de segurança da estratégia de Defesa da África do Sul e sobre o qual (supostamente) decorrem simulações de segurança, prolonga-se até ao distrito de Vilanculos (Inhambane), mormente o Oceano Índico. O segundo que cita o então e falecido Presidente francês Jacques Chirac, lembrando às autoridades moçambicanas de que a fronteira de Moçambique à leste era a França e não o Oceano Índico. Dois exemplos, uma pergunta: as fronteiras de defesa estratégica de Moçambique são, porventura, coincidentes com as dos limites geográficos?

 

É expectável que as Forças Armadas de qualquer Estado tenham a devida preparação, prontidão e em plantão. Nesta linha, fora as simulações e operações reais de guerra, elas participam, além-fronteiras, em situações de assistência em casos de calamidades naturais, operações de paz e similares cuja intervenção constitui uma oportunidade de demonstração de forças. Decerto um ponto pendente e para reflexão, começando pela capacidade de operação e sustentabilidade doméstica das Forças Armadas moçambicanas cujos desafios e do país, em geral, e uma vez que as Forças Armadas demandam uma série produtos e serviços, em qualidade e quantidade, e com proveito para a economia nacional, deviam impulsionar e depender de uma robusta e crescente indústria nacional.   

 

Decorrente das linhas precedentes, um outro ponto é o interesse nacional cujas Forças Armadas constituem uma das guardiãs, sobretudo no concerto das nações. Em Moçambique, incluindo no seio dos principais órgãos de gestão do Estado, não se sabe até que ponto existe um consenso ou mesmo um conhecimento sobre o interesse nacional, enquanto conceito e enquanto conteúdo do Estado moçambicano. A sua reflexão ainda impõe-se por ser um factor estratégico de mobilização da sociedade quer para a Defesa do Estado quer para o seu próprio desenvolvimento económico e social. 

 

A Defesa, nas últimas décadas, nunca foi uma prioridade de investimento, em parte, entre outros, por culpa de certos condicionalismos de prescrições no quadro da ajuda externa aos países pobres, incluindo Moçambique, abraços com sérios problemas de financiamento das suas despesas. Hoje, diante de uma nova, complexa e difusa conjuntura quer a do sistema internacional quer a interna de muitos dos Estados receptores da ajuda, tal situação – falta de investimento na Defesa - já não faz sentido, se é que algum dia o fez. Ademais, e em tempos de instabilidade nacional e com incidência para os conflitos nas zonas centro e norte de Moçambique, do que valem os esforços e a esperança de desenvolvimento se num piscar de olhos as conquistas podem descambar?

 

Certamente, concluindo e sem esgotar, urge que se priorize e se invista na Defesa. Nesta perspectiva, corrobora o pronunciamento recente do titular da pasta de economia e finanças de Moçambique que, sobre o qual, é passível, e muito bem, de ser encarado como um sinal de uma nova abordagem em matéria de políticas públicas, tendo a Defesa, por exemplo, como um factor que aglutine valências, restando ao Estado, para que isso aconteça, fazer o que lhe compete. E uma das coisas, e imprescindível, sobre a Defesa, é a sua abertura ao debate com a sociedade e disso, em conjunto, as partes possam de forma contínua, larga e profunda, reflectir as listadas e outras pendências e desafios cujo resultado combine discurso (persuasão) e pulso militar (dissuasão). A metade – apenas o discurso - é dispensável para os desígnios da independência de Moçambique.

 

P.S: Faz amanhã, 27 de Maio, 52 semanas desde a publicação do meu primeiro texto neste jornal. Um impulso para um depoimento em jeito de homenagem pelos 90 anos de Marcelino dos Santos (Por onde andas Kalungano?) foi o rastilho para os que se seguiram. Hoje publico o 64º texto. No mês de Junho farei uma pausa, tendo apenas programado duas publicações e por ocasião dos festejos de Eduardo Mondlane (20 de Junho) e da independência de Moçambique (25 de Junho). De forma regular/semanal, voltarei na primeira semana de Julho e no primeiro texto a devida nota sobre o que se espera nas 52 semanas seguintes. Um abraço e até já.

 

quarta-feira, 20 maio 2020 14:52

E se a Frelimo entrasse em quarentena?

Depois da pouca animadora comunicação presidencial de balanço quinzenal da prorrogação do estado de emergência e findos, dentro de poucos dias, os 30 previstos no âmbito da contenção da Covid-19, proponho que a Frelimo entre em quarentena para salvar o país. A proposta é baseada nos termos e condições que fazem da Frelimo a maior e a mais vibrante instituição moçambicana e também em argumentos da oposição. Acolho que só com a Frelimo o futuro será sempre melhor e não vejo, de certeza, a Covid-19, uma gripe até então desconhecida, a alterar o curso da sua epopeica História (e sem fim) na arte de bem cuidar do povo moçambicano.  

 

A Frelimo é um partido cinquentenário e movimenta perto de 4 milhões de membros em todo o território nacional. Segundo a própria Frelimo, os seus membros e para citar algumas qualidades,  são altamente  disciplinados, possuem  consciência de responsabilidade perante si, perante o Partido e o Estado e ainda possuem  um espírito de sacrifício no cumprimento das decisões que são  tomadas. Por sua vez, regra geral, a oposição acusa a Frelimo  de domínio e usurpação  a seu favor de todos os recursos e oportunidades do,  gerados e concedidos ao  Estado. 

 

É na senda das virtudes enunciadas pela Frelimo e pela oposição que deposito as mais profundas esperanças no combate contra a Covid-19, pois quem é de facto (e gravata) isso tudo e que dependa disso tudo não pode, racionalmente, deixar que o país seja abalado por uma gripe. E é no espírito e letra dos mais altos e nobres valores da Frelimo, da sua inquestionável responsabilidade e da sua capacidade de resposta aos anseios do povo moçambicano que decorre a proposta de quarentena da Frelimo e como uma alternativa aos fracos resultados da implementação do estado de emergência no combate à Covid-19.

 

A quarentena teria início no próximo dia 01 de Junho do ano corrente e por 14 dias, em tempo - para o sossego das hostes - das celebrações dos 45 anos de independência. A questão agora é a de se saber como o país sobreviveria nesses 14 dias de quarentena da Frelimo. E a fazer jus de que o Partido movimenta perto de 4 milhões de membros acredito que arraste, incluindo familiares directos, perto ou mais da metade da população moçambicana. E ainda, dando crédito à oposição, de que a Frelimo domina tudo, logo tudo estará fechado.

 

Imagino nas vésperas da entrada em vigor da quarentena. E para o efeito, tomo de empréstimo as palavras de Severino Ngoenha, filósofo e professor moçambicano, que certa vez contara, que no dia em que os escravos afro-americanos receberam a notícia de que a escravatura fora abolida e dentre um grupo de mais velhos, que se juntara a parte, um deles lembrara: “ O que a liberdade comporta como responsabilidade”. A partir desse dia questões básicas como a de que como iriam se alimentar vieram à superfície, atendendo que estavam habituados a comer do que lhes era provido na Senzala. Por analogia: o que a quarentena da Frelimo implicaria como responsabilidade para os que delas (a quarentena e a Frelimo) ficassem livres? Cada um que tire as suas conclusões.

 

E a propósito, para terminar, o Presidente da República (PR), no seu balanço quinzenal, praticamente que ameaçou recorrer ao temível 4º nível (o “lockdown”) em caso de manutenção generalizado do fraco cumprimento das medidas anunciadas. Tenho sérias dúvidas da eficácia desta ameaça. Entretanto, caso seja essa a ideia – o da ameaça – aconselho que da próxima vez, o PR, no lugar do ““lockdown”, e na sua qualidade de presidente da Frelimo, ameace recorrer à quarentena da Frelimo.

quarta-feira, 20 maio 2020 09:07

Abaixo o colonialismo!

Chama-se Lundunu, um maconde aportado em Inhambane nos finais de 1974, logo depois da assinatura dos Acordos de Lusaka, aos quais seguiu-se a independência de Moçambique no dia 25 de Junho de 1975. Já não ostenta a marca da tatuagem incrustada no rosto, desenhada a frio com recurso a incisão por objectos cortantes, e se calhar é a idade que foi apagando esses sinais da crueldade. Mesmo assim, ainda há resquícios numa face violada para sempre, porque a navalha penetrou de tal maneira que o seu rasto será indelével.

 

Nunca saíu daqui, desde que chegou com uma AKM à tiracolo, gritando, abaixo o colonialismo! Nesse tempo, Lundunu era um homem engajado, pronto a dar tudo, incluindo a juventude que ainda lhe sobrava, depois da longa noite nas matas. Tinha imensas dificuldades de articular a língua portuguesa, mas isso não era importante. O que contava era a euforia, o fascínio de estar na cidade sob o brilho do néon, contrariamente às florestas, onde a luz era emanada pelos pirilampos, e pelo encandescender das balas.

 

Mora na periferia da urbe, numa casa que não mereceria a um combatente da libertação de um povo que não é feliz. Mesmo que eu tivesse uma mansão, diz Lundunu, não sentiria prazer, pois, o mote da minha luta é a felicidade de todos. Será um absurdo e inútil todo o sacrifício que fizemos, se no lugar de provermos pão à mesa de todos, buscámo-lo para o nosso egoismo e ganância. Então não valeu nada a nossa epopeia!

 

Lundunu é um homem frustrado, no sentido de que agora percebe que tudo o que fizeram, e tudo o que disseram nos comícios, diluiu-se. Ele próprio considera-se escória, levado num camião basculante e entregue aos catadores de lixo, depois de ter feito parte da tripulação, durante anos e anos. Não tem nada que lhe dê o orgulho de ter erguido a plataforma da liberdade, juntamente com os mesmos camaradas que hoje lhe olham com desdém, a não ser o manancial de histórias de nunca acabar, que conta com rigozijo nas bebedeiras sem fim.

 

No fundo, Lundunu já não espera nada. É uma pessoa resignada, que se entristece pela mentira dos seus camaradas, pela falsidade de dizerem uma coisa à luz do dia, e fazerem outra coisa no escuro. Nós não lutamos para isto, di-lo desesperado enquanto puxa sofregadamente o charuto de tabaco puro trazido de Murrombene. O que me dói ainda mais é que somos indignos dos nossos filhos, não são eles que aprendem a roubar, somos nós que os ensinamos. Somos nós que os mostramos o caminho da desonestidade. Abaixo o colonialismo!

 

O colonialismo a que Lundunu se refere não é o ora português. Esse já foi desmantelado. Lundunu chora lágrimas profundas ao dizer que estamos a nos colonizar entre nós, sem vergonha de nos apresentarmos perante os que se riem da nossa incapacidade de construir um Moçambique próspero para todos. Lundunu diz mais, estamos a nos ridicularizar aos olhos do Mundo. E enquanto os jovens, que já estão embebedados pela necessidade desenfreda de amealhar dinheiro sujo, não mudarem o seu próprio rumo, então ninguém sabe para onde vamos.