Director: Marcelo Mosse

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Carta de Opinião

quinta-feira, 23 abril 2020 06:51

Volte e não saia de casa

Tenho acompanhado pela comunicação social que Portugal, a antiga metrópole colonial de Moçambique, constitui um exemplo no que tange a tomada de medidas contra a propagação da COVID-19. O seu povo é elogiado por acatar as medidas do Estado de Emergência, sendo o “Fique em Casa” a mais notável. Palpito que o facto do fim da ditadura portuguesa  ser ainda recente (pouco menos de 50 anos) produz, no imaginário dos portugueses, o medo da autoridade repressiva de um Estado ditador, operando assim como um dos factores dissuasores para o cumprimento generalizado das medidas.

 

Por arrasto, na Varanda do Índico, era suposto que os tempos da ditadura portuguesa – via colónia – e os que se seguiram logo após a independência, mais os tempos em curso da pandemia, fossem suficientes para duplicar o medo de quem queira sair de casa. Nem tanto. Alguns dirão “Porque sair de casa ainda não é literalmente proibido”. Será? E no caso de barracas (aglomerados, notadamente, de venda e consumo de álcool), cuja abertura é proibida, o seu encerramento é literalmente observado?

 

Há uma semana do fim do Estado de Emergência (30 dias), igualmente decretado por força da COVID-19, quer me parecer que para quem cumpre com a medida (e fica em casa) e para quem abre ou encerra a sua barraca - ou outro tipo de estabelecimento similar enquadrado na mesma proibição – o medo da repressão da autoridade, incluindo a extorsão e o excesso de zelo, está subjacente na decisão. Aliás, ciente desse facto, quem abre ou finge que fecha a sua barraca e os clientes criam e articulam condições alternativas para que a provisão e o acesso aos serviços prestados  ocorram de forma oculta.

 

Procurei perceber as circunstâncias que justificam o risco. Um dos argumentos, e o predominante, prende-se com a imprescindível renda de sobrevivência de quem vive do negócio da barraca. Mas este argumento não cola para quem vai à barraca gastar a sua renda e se expor à pandemia. A menos que quem assim procede ainda não tenha voltado à casa desde o dia 31 de Março, data anterior ao da entrada em vigor do Estado de Emergência. Neste caso, e numa eventual prorrogação do Estado de Emergência, proponho que se adicione o "Volte e Não Saia de Casa" nas campanhas de sensibilização para a contenção da COVID-19.  

quarta-feira, 22 abril 2020 08:30

Um nonagenário inesperado

Conheço-o há pouco mais de 40 anos. Nessa altura, eu ainda fedelho, ele já corria nos campos com a bola aos pés, driblando os maiores defesas da época, sedento de golo. Era o carrasco dos guarda-redes, que titubeavam ao vê-lo subir como um bisonte, que no lugar de contornar os obstáculos, derruba-os. Mbata Nhalégwè era mais que um jogador normal de futebol, era um actor, um dançarino que em diversas ocasiões do decorrer da partida, confundia-se com um executante de mapiko. Ele era o eixo, sobre o qual gravitava todo o espectáculo.

 

Mbata Nhalégwè era um remoinho, uma dinamite com o rastilho sempre aceso, e ninguém sabia e nem podia prever quando, como, e em que lugar do campo é que aquele explosivo ia rebentar. Podia ser antes da linha divisória, e essa imprevisibilidade punha o último reduto atarantado. Ninguém tinha a certeza de que estava no lugar apropriado para impedir a caminhada fatal da orca. Pior do que isso, era de consenso que ninguém tinha capacidade para ser o torpedo de um jogador franzino, mas letal em todas as dimensões.

 

O campo, nos dias em que Mbata Nhalègwè jogava, parecia um espaço de tourada. O toureiro era toda a equipa adversária, e o touro era Mbata Nhalègwè. Era preciso, antes de abatê-lo, fechar-lhe os flancos reais e prováveis, antes que fosse ele a derrubar tudo. Mas todas essas armas, e toda essa empreitada para erguer a muralha, eram por demais fragilizada pelo talento, pela inteligência, e sobretudo pela determinação de um homem que ia ao campo para vencer.

 

Foram anos sem fim, e Mbata Nhalégwè recusava-se a descer ao sopé, onde nunca viveu. Ele nasceu no cume, aliás foi nesse patamar onde fez tudo, até hoje que já treme nas bases. Mora recolhido na sua modesta casa, cheia da luz do passado no interior, onde brilham as lembranças estampadas nas fotografias e nas medalhas e nos troféus individuais conquistados nas várias lutas em que ele ia à frente, como um pastor de almas. Mbata Nhalégwè era a gazua do seu tempo.

 

Mesmo assim, com noventa anos comemorados em solidão no último sábado, sem direito a champanhe,  ele ainda sonha. Vê-se isso no brilho dos olhos quando fala, como se houvesse um jogo marcado para o próximo domingo, onde receberá os aplausos das massas. Mbata Nhalégwè mantém a esperança de voltar a levantar estádios inteiros com os seus inesperados tiros de canhão. Mas claro, todo este sentimento é um delírio, de alguém que já não sabe muito bem em que tempo está.

segunda-feira, 20 abril 2020 16:08

Pois é, “Dura Lex, sed Lex” (wa munho okho)

*Este texto é motivado pela satirização e cinismo de Diógenes, ironia socrática e marrabuas do Mwanachuabo

 

No momento em que escrevo essas linhas soltas, vejo uma espécie de comoção  social quase que eufórica, ladeando e gravitando ao regalo a mais um absurdo surreal perpetrado por “nós”, ao estilo daquelas peripécias retratadas pelos grandes dramaturgos, aliás o que já tem sido prática, a cada amanhecer nestas terras banhadas pelas águas cristalinas e sobretudo salgadas do nosso índico oceano.

 

Vive-se nesta já ida e bem abençoada “pátria de heróis”, que em tempos ostentou o apelido carinhoso de “pérola do índico”, momentos de muita tensão. Tendo em conta que, de um lado estão os subsídios a ganhar por parte dos ex-deputados no processo “fantasmagórico” de reintegração e por outro, os subsídios a não ganhar pelos burocratas street level (funcionários públicos). Bem, nunca pensei que esta palavra “reintegração” ganha-se contornos e contextos completamente diferentes, quanto esses que ganhou agora, recordando-me, com alguma agridocidade nostálgica, a antonomásia que caracteriza o solo onde desde fase embrionária e até hoje, me criei e me conheci como gente pensante. Percebia que, só se reintegrava o que se tinha distanciado ou privado a dado momento de fazer parte (posso estar equivocado, mas fácil até seria, antes de deixar a minha percepção sobre o conceito, consultar um dicionário para ver a tradução do termo, mas não o fiz), entretanto, faz-me confusão quando não é esta à tónica que se discute, ainda de quem ou alguém que nem sequer deveria estar desintegrado da sociedade. Pois, é por ela, que estes tais (que precisam de reintegração) não só advogam como também são legítimos interlocutores. Logo, o paradoxo, como se “reintegrar” alguém que deveria sempre estar integrado para em nome dos cidadãos advogar como o seu legítimo interlocutor? Mas “any way”, vamos avançar, qual igual mazameras desta sociedade (a)normal.

 

Com o vosso beneplácito, esta é a verdade, viril, jocosa, ardilosa ou até sorrateira, mas é a verdade, ou se lhe quiserem adicionar outros adjectivos que melhor lhe caracterizam neste momento, estejam a vossa vontade. Pois é, “ologa ofuna weio wa  munha okho”[1]. “Dura lex sed lex”, é a mais pura e “salgada” verdade. “Dura lex e sed lex”, é uma expressão antiga, reza a história que a expressão remota ao período de introdução de leis escritas na antiga Roma, a mesma é derivada do latim, cujo significado na língua “camoniana” e ao pé da letra seria “a lei é dura, mas é a lei” e tem que se fazer valer. A cada novo dia, sobre o olhar impávido e sereno do povo, uma nova novidade surge, como se já não bastasse, as do COVID-19; dos insurgentes em Cabo Delegado a “guerra sem rostos”; da circulação condicionada de viaturas e bens, pela zona da mítica Gorongoza; e agora essa, dos “reintegrados”. Pois libertaram os “ladrões”, não esses, mas aqueles gatunos, epah as estas alturas, já nem sei como os distinguir direito (já que de uma ou outra forma, todos acabam criando incertezas ao povo a cada alvorecer), mas sei que em algum lugar, foi aprovado com eficiência admirável um decreto que assim o diz, não mesma eficiência foi vista, a quando da deliberação dalguma outra resolução relativa as mensalidades das escolas privadas (o negócio dos “boices”), quando no máximo foi deliberada uma orientação de negociação arbitrária entre os proprietários e os pais e ou encarregados dos que ali “compram” conhecimentos (ainda não sei que desfecho esperar, se ambas as partes são indivíduos racionais e auto interessados a maximizar a eficiência de “Ótimo de Pareto”). Enfim. Particularmente as últimas novidades, estas sim, tem sido um autêntico e rude golpe ao estômago daqueles que não conseguem se “avestrujar” (nem sei se o termo existe, mas como o texto é meu ele ficará assim mesmo, “wa munha okho[2]).

 

Sem quaisquer receios e com coragem animalesca, estes famigerados compatriotas nossos, augustas personalidades, de forma viril, sorrateira e inescrupulosa, “no teatro das operações”, aprovaram leis no crepuscular do dia, embebido à leiguice dos pacatos cidadãos que os confiaram o testemunho para a si representarem, eis que no “no aurorar dia” (já vespertinamente despertos), descobrem que as suas confianças foram conspurcadas. Já é tarde. Salvo se ainda pudesses qualquer coisa fazer. Neste engodo, foram-lhes servido, para engolirem sem recurso a água para digestivamente “empurrar”, um grande e gigante “ananás” com a sua coroa e armadura característica (este é o sentimento que agora nos percorre). Agora “terão” que digerir goela abaixo este abacaxi, se ao menos pudéssemos saborear, nos restaria a polpa e o seu suco, mas não, temos que o engolir, impávidos, serenos e, sobretudo, frustrados e moribundos.  

 

Com os seus ouvidos feitos mercadores, os nossos interlocutores e coincidentemente representantes, já não advogam por nós, afastam-se, e se esfumam no horizonte dos seus próprios egos e vaidades, regozijando-se de mais um golpe bem dado, a aqueles que juraram estatutivamente e cristalinamente servir ou servir-se (não sei bem). Esta é a verdade, e mais uma vez, esta verdade, igualzinha às mentiras da verdade, vêm de forma fulminante, fogosa e maquiavelicamente brandir os nossos já maltratados corações.

 

E ao longe e já sem mais sangue a se lhes poder dar, ouve-se o “titilintar” das moedas no ecoar nos bolsos vazios do povo, num autêntico contraste, “aquelas”, contrapartidas destes famigerados representantes do povo, verdadeiros “combatentes da reintegração”. Mas, como dinheiro não fala, usam e abusam dos nossos parcos recursos, sem apelo nem agravo. Os seus semblantes e a robustez que ostentam na mais pura e gritante “inocência”, lhes desmente o tal estado de “inópia. Pois é! Esta é a verdade, e agora em forma de lei. Cumpra-se, para não seres acusados de prevaricar a lei.

 

Pois é, enquanto o povo, vive na incerteza do seu dia-a-dia fazendo e buscando milagres, embrenhando-se nos impossíveis para possivelmente prover condições mínimas e conferir alguma dignidade a si e aos seus, espremendo a cada gota de suor e se exprimindo a cada suspiro, já estas augustas excias que nos representam, vivem em sua pompa e áurea formosura, mergulhadas nas artérias das abundâncias sofridamente conquistadas nos anais do sufrágio. Na majestosa casa do povo, onde sofridamente estes, supostamente se contendem, para garantir o estado de direito e o bem-estar comum, a água potável jorra do chão num extremo golpe de beleza (através de um chafariz ali instalado), não tão potável a nível da sede destes representantes (pois ali, só bebem de águas engarrafadas, sejam elas naturais, da fonte, ou tratada, desde que venham em potes de 500ml ou 1,5litros lá de Namaacha), mas de preciosidade inenarrável para os seus representados de Albazine, Matendene, e por ai fora.

 

Estes beligerantes feitos deputados, aliás, “antigos, actuais e futuros reintegrados”, imbuídos de poder popular, conferidos em última assembleia eleitoral, vociferam, sem dó nem piedade, e com ar jocoso, dissabores aos ouvidos dos que são responsáveis para implementar os seus programas e fazer cumprir os seus mandatos, de que este ano “não haverá, o sempre esperado, aumento salarial”. Presumivelmente, por conta da tal crise que se tende a agudizar com a visita do inesperado e não desejado COVID-19, e porque do que dá, temos que primeiro cuidar daqueles que cuidam do povo. Os argumentos, para que não se negociem os salários, são os suspeitos do costume: crise, deficit orçamental, ausência de apoio e os contratempos da gestão abaladas pelas hecatombes. Mais e então, onde estão aqueles que supostamente, merecem viver em apoteose (ainda que não equiparada aos dos demais representantes que gravitam pelo mundo fora) por tão afincadamente lutarem por nós? E as mais-valias o que são feitas delas? E aqueles que nós somos, o seu legítimo “patrão”?

 

Pois é, não adianta mais chorar, agora é de lex e sed lex, wha munha okho. Estas perguntas sem respostas, nos forçam mesmo contra a nossa vontade, a concluir que afinal, aquele “bife”, que vocês bifaram, só o fizeram porque não vos sobrou um gostoso e suculento pedaço de “bife” daquela ceia, para de igual forma, vocês e entre vocês se empanturrarem, até vos saltaram os botões das vossas balalaicas de linho e desses vossos fatos feitos em “pele de cordeiro”, seus irresponsáveis sociais e egocêntricos patriotas (até porque “passarinhos voam todos os que são da mesma espécie”[3]).

 

Excias, aliás, prezados e iluminados “antigos, actuais e futuros reintegrados” aguardamos o próximo golpe, não para repostar, até porque, na nossa praia só cabem mesmo murmúrios e silêncios ensurdecedores, já nos contentamos com isso no teatro das operações, enquanto suamos dolorosamente em vossas benesses (quando muito só podemos vos dar uma merecida “toela”), mas para que num desses golpes de espargata se pontapeiem. Ai sim, já diz a velha máxima, “zangam-se as comadres, e descobrem-se as verdades”[4].

 

Para vocês, marrabuistas, deixo algo que li algures: “etxie ne ile mulugo etxienavi”(o que Deus esbranquiçou, branco sempre será)

 

Braga, 17.04.2020

 

[1] Podem falar oque quiser, isso é contigo; ou da sua conta (assim se percebe na tradução não oficiosa da língua Chuabo )

 

[2] O que quis dizer com o termo avestrujar, é que nem todos conseguem ter estômago de avestruz, pronto para engolir sapos e pedras.

 

[3] Adágio popular

 

[4] Adágio popular

 

*Obrigado “aqueles” que de uma forma ou outra participaram nesta notas soltas. (poderia citar alguns nomes, mais aqui, não se aponta).

segunda-feira, 20 abril 2020 15:36

“Os Gatekeeper do Whatsapp’’

O dia 2 de Abril foi o Dia Internacional de Verificação de Factos. Uma efeméride extremamente relevante para os comunicólogos, principalmente os que se sustentam da profusão do ambiente digital para exercer uma actividade profissional, como eu e tantos outros. Em Moçambique, por exemplo, tal como em outros países onde o ambiente para a propagação da desinformação é altamente próspero, muita pouca reflexão foi produzida nesta data.

 

Com a proliferação dos smartphones e a baratização da internet a crescer num ritmo desproporcional ao da alfabetização cibernética, em Moçambique é quase certa a percepção de que caminhamos para um verdadeiro caos sem precedência que pode ser causado por uma indústria cada vez mais presente da desinformação, que rema contra a maré e contra os esforços do nosso sistema de saúde.

 

Até o Dia da Mentira, que se celebrou um dia antes do Dia de Verificação de Factos, conseguiu ser mais apelativo e mobilizador. Aliás, pelos especialistas de verificação de factos, o dia das mentiras é o único dia, em que a maioria das pessoas realmente verifica os factos que lê ou de que ouve falar.

 

Normalmente, os princípios de alfabetização digital e midiática de muitos de nós ainda são regidos pela nossa ignorância e mediocridade, quando às vezes trocamos as nossas alternativas de webjornalismo por alguns grupos de WhatsApp e de Facebook que acumulam centenas de milhares de membros, onde todos somos gatekeeper, todos somos informados e todos somos informadores, numa proporção igualitária de responsabilidade.

 

A minha atenção com o Dia Internacional de Verificação de Factos dobrou, principalmente quando globalmente traça-se cada vez evidências de que o coronavírus desencadeou duas pandemias paralelas que se reforçam. Biológico: o próprio vírus - e o outro social: desinformação, este último motivado por fins políticos, comerciais ou ideológico.

 

Isso fez-me conectar com a história. Em alguns países, com excepção da China e outros, os primeiros casos foram confirmados socialmente e não clinicamente, através dos domínios especulativos associados a uma forte onda de ansiedade colectiva. Talvez muito antes de existirem os próprios testes nesses países, os seus cidadãos já tinham informações que confirmavam a existência de casos positivos. Assim aconteceu em Zimbabwe, Tanzânia, Nigéria, Ucrânia, Moçambique e mais alguns. A desinformação propalou-se mais rápido que o próprio vírus.

 

E aqui em Moz, tal como na Ucrânia, com a agravante de que a confiança pelo sistema de saúde e pelo governo é baixa, a ansiedade sobre o surto se espalhou tão rapidamente quanto as notícias falsas, obrigando Filimão Suaze a desmentir a Fake News.

 

O exemplo mais gritante e representativo de desinformação deu-se na Ucrânia, em Fevereiro deste ano, onde um e-mail viral, desinformador e letal foi cair nos dashboards dos cidadãos ucranianos já possuídos por medo e muitas notícias falsas, provocando protestos violentos e confrontos com a Polícia. O e-mail falso, que era supostamente do Ministério da Saúde local, revelava que 5 dos 45 ucranianos repatriados da China estavam infectados.

 

Os cidadãos rapidamente se reuniram e começaram a quebrar as janelas dos autocarros que transportavam os repatriados e incendiaram barricadas, bloqueando o hospital de Novi Sanzhary, para onde o Governo planeava colocar em quarentena os evacuados. Na verdade, ninguém dos repatriados estava infectado. Tudo pertencia a indústria da desinformação.

 

Mas, enquanto o transporte se arrastava para o hospital com o apoio do contingente policial, a equipa médica do hospital de Novi Sanzhary fugia das instalações... A quebra-cabeça no Governo Ucraniano estava montada. Então, quem ia cuidar dos repatriados??(...) enfim, foi um capítulo longo, mas que exemplifica melhor o impacto da indústria da desinformação.

 

As Fake News também continuam a tirar sono de Tedros Adhanom Ghebreyesus e o seu elenco da OMS. Esta semana, o Secretário-Geral da ONU também se chateou, deixando claro que uma das coisas que torna esse vírus diferente dos anteriores é a penetração das mídias sociais no mundo e na vida das pessoas. São os gatekeepers dos WhatsApps e Facebooks. Juntou-se a eles Kate Starbird, da Universidade de Washington, especialista em "informática de crise" – que liderou um estudo sobre como a informação flui em situações de crise, especialmente nas mídias sociais. Ele acredita que as crises sempre geram níveis de alta incerteza, que por sua vez gera ansiedade. Isso leva as pessoas a procurarem maneiras de resolver a incerteza e reduzir a ansiedade, buscando informações sobre a ameaça.

 

No meu vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=g79nTPWdgvU&t=85s) tento, de forma resumida, abordar sobre como as pessoas desinformadas colocam a si mesmas e a outras pessoas em risco, diminuindo a confiança nos conselhos do governo num momento em que é vital ouvirmos recomendações oficiais sobre como podemos reduzir a propagação do coronavírus.

 

Faço algumas entrevistas a cidadãos, cujas respostas permitem cruzar múltiplas variáveis sobre como conseguem aceder a informações sobre prevenção do coronavírus.

 

Percebeu-se que as vezes é mais fácil o cidadão confiar na informação partilhada pelo seu familiar, através de WhatsApp do que nas informações disseminadas por fontes oficiais. Em caso similar, e verificada a falsidade, o recomendado é não partilhar e nem comentar, mesmo que seja para argumentar que é falso. Os comentários geram engajamento que ajudam a popularizar ainda mais a desinformação.

 

Das sondagens, emerge também a percepção de que ainda precisamos de promover o bom hábito nas pessoas, para que de forma proativa e periódica, consultem os meios digitais lançados pelo Governo para conter a propagação das Fake News. Precisamos da urgente alfabetização digital e mediática, introduzida nas escolas Primária como disciplina, talvez, sei lá. Precisamos, após a actual situação estiver controlada, de criar Incubadoras, Startups e Hub orientadas as TICs através de modelos como crowdfunding e reactivar e equipar os centros e telecentros informáticos e coloca-los em beneficio das comunidades e dos alunos. Talvez seja por isso que estejamos a enfrentar dificuldades sérias de implementar o programa de ensino à distância. Não fizemos nada ainda, nem a própria activação da motivação nos nossos alunos.

 

#NaDúvidaNãoCompartilhe, #FactCheckingDay, #FactCheckIt e #FakeNewsNão

 

Escrevo este diário a partir do centro de confinamento para controle de coronavírus na cidade de Santiago do Chile, onde me encontro confinado desde o dia 9 de abril. A sentença foi de 14 dias de escuridão, sem a luz do dia e sob uma forte vigilância das autoridades locais. Por pouco, caia em depressão.


Dia 1


“Uma saída difícil do Brasil que me levou ao confinamento”


A minha história começa na cidade de São Paulo, onde estava a realizar um intercâmbio internacional de estudos ambientais, que infelizmente foi cancelado. Foram 5 dias de ida ao aeroporto sem poder viajar, na maioria dos dias pelo cancelamento do voo, informação que apenas tinha acesso no local. Entre vários motivos, devia regressar ao Chile por se tratar do meu país de residência e por ter obrigações acadêmicas ainda por cumprir.


No dia 9 de abril, finalmente consegui viajar e para o meu espanto se tratava de um “voo humanitário” de regresso dos nacionais e residentes no Chile. Éramos em média 20 passageiros, e mais tarde fiquei sabendo que alguns tinham testado positivo para Covid-19. Chegado ao aeroporto, fui surpreendido com a informação sobre o confinamento, que deveria permanecer num “hotel” durante 14 dias antes de retornar a minha casa. Segundo explicaram, o facto de ter passado por um país de risco tornava-me, automaticamente, um caso suspeito. Pelo que, deveria ser confinado durante 14 dias (renováveis) num estabelecimento vigiado pelas autoridades governamentais. A minha temperatura foi de 36.7, mas mesmo assim, deveria seguir o protocolo.


Fiquei assustado, não sabia em que condições passaria os próximos 14 dias, mas a ideia do hotel acalmava-me, pois, imagina um local a (mil) maravilhas - pensamento desmentido pela realidade.


Cheguei ao local, eram 22h, o carro deixou-me na porta do hotel. Já estavam à minha espera e conduziram-me ao quarto. O meu quarto era pintado de branco e tinha janelas com cortinas presas (que não me davam acesso ao exterior). Sobre o hotel, não sei nada de concreto, não conheço a cor, o tipo de infraestrutura e nada, apenas sei que nas manhãs sentia um cheiro de comprimidos - algo que me fazia levantar várias questões.


Dia 2:


“Chorei, quando recebi a minha primeira refeição”


Eram 7h45, quando bateram à porta (sinal de aviso da hora de refeição), abri a porta do quarto e vi uma bandeja jogada no chão, com pedacinho de pão e água quente. Entendi, ja que se trava de pequeno-almoço, mas a história piorou na hora do almoço: quando eram 12h, o sinal da porta voltou a despertar-me, estava lá a minha bandeja, abria-a e o meu corpo não conseguiu segurar as lágrimas, era uma mistura estranha que parecia sopa, feijão, verdura e um mar de água. Naquele momento, entendi que estava numa prisão e não num hotel.


Dia 3:


“As notícias de Moçambique, deixavam-me mais triste”


Acompanhava diariamente as notícias de Moçambique, casos aumentando a cada dia e mais relaxamento das medidas tomadas pelo presidente Nyusi. Fiquei confuso, não entendi como numa altura que o país registava maiores números, se relaxa medidas de grande importância como a lotação nos transportes públicos. Não entendia como doentes de coronavírus continuavam em cuidado domiciliário. Ficava mais confuso quando recebia depoimentos de pessoas em quarentena obrigatória dizendo que nunca foram ligados pelas autoridades de saúde. Perguntava-me, como isso é possível? Eu, mesmo sem apresentar sintomas fui submetido ao confinamento, recebo ligações periódicas para o controlo do meu estado de saúde. 


Dia 4:

“O cheiro de comprimidos que não me deixava em paz”


O cheiro de comprimidos piorava a cada dia, não o suportava e decidi abrir a minha porta para avaliar a sua origem “a história da curiosidade que matou o gato”. Em menos de 1 minuto se aproximou um funcionário e disse “volta ao quarto, abra esta porta apenas quando for para levantar a comida”. Humildemente retornei ao quarto e a sensação de estar preso piorava. Já no quarto, recebi um alerta por telefone“ a saída do quarto pode custar-te uma multa”. A partir deste dia, aprendi a conviver com a minha curiosidade, mas não me saía da cabeça que algo de errado estava acontecer.

 

Dia 5:

 

“A história de cobaia e o medo por ser negro”

 

(Próximo capítulo)

segunda-feira, 20 abril 2020 09:07

Tempos de crise, tempos do padeiro

Por estes dias tenho ido objectivamente à padaria (e não sob pretexto) e acredito que em menos de um mês fui mais vezes à padaria do que em um ano no passado. Falo de um passado recente, pois do mais recuado, fui um assíduo nas idas à padaria. E ontem, enquanto cumpria a única fila para a compra do pão, veio-me à memória os tempos (e de crise) das bichas/filas da padaria, marcadamente nos anos oitenta. Dessas bichas, guardo um e outro episódio do poder do padeiro em tempos de crise.

 

Um dos episódios foi numa padaria próxima de casa. Havia uma bicha (curta) de pão para cooperantes (trabalhadores estrangeiros, grosso modo de raça branca) e uma outra (bem cumprida) para moçambicanos. Nesta fila, uma e outra vez, não me deixavam ficar, alegando que a minha era a outra: a dos cooperantes/brancos. Às zangas de criança lá ia à fila indicada, formada na sua maioria por russos e outro pessoal do leste. O padeiro, na hora da compra do pão, questionava-me: “Desde quando mulato é cooperante/branco?”. E assim - voltar com o pão para a casa - dependia do padeiro do dia: este é quem decidia se eu era cooperante/branco (estrangeiro) ou moçambicano.

 

O outro episódio prende-se com um detalhe: algumas das beldades que circulavam com o saco de pão – já recheado – não eram vistas na padaria. Mais tarde, percebi a razão do fenómeno quando um dos padeiros arrendou uma dependência (anexo) próxima da padaria, respondendo, deduzo, a duas exigências: uma de trabalho e outra de ordem feminina. A de trabalho, por conta dos turnos, sobretudo o nocturno. A feminina, era justificada pelo entra e sai de beldades de tirar o fôlego a qualquer outro profissional e até de áreas tidas de prestígio. Sobre isto, já diz um amigo próximo: “Em tempos de crise o padeiro é uma profissão de poder e prestígio e até superior às tradicionais ”.

 

Voltando à fila de pão de ontem: na hora do meu atendimento o padeiro demorou um pouco mais do que o habitual e foi atendendo outros clientes. Por coincidência foram duas beldades da terra e um senhor de raça branca que me pareceu estrangeiro. E pouco antes que eu recorresse à alguma forma de protesto, o padeiro pediu-me imensas desculpas, pois ainda aguardava por dinheiro trocado. Por algum tempo, temi que ele não me fosse vender o pão. Em tempos da pandemia COVID-19, e da crise acoplada, tudo pode voltar (a acontecer) e o poder do padeiro, não seria, de certeza, uma excepção.