O nosso 2024 não pode ser de disputa entre pessoas ou famílias poderosas - reis e rainhas, cavaleiros e renegados, homens honestos e mentirosos, tribos ou regiões, famílias nobres ou dinásticas, alianças mafiosas ou conspiradoras - lutando pelo controlo político-económico do país como no “Game of Thrones. Moçambique não é e não pode ser transformado numa série de televisão imaginada para distrair as pessoas nos tempos de ócio.
Porquanto possamos negar, até a pés juntos, os sinais da nossa crise são muitos, graves e dramáticos. Não é só a constante e continuada crise da nossa política, democracia e economia, mas é, sobretudo, a nossa incapacidade de assumir a nossa soberania.
Na primeira visita ao Moçambique independente, Julius Nyerere (1975) deixou uma profunda advertência sobre as diferentes espécies de tramoias que nos assolam: Moçambique está no mar alto, está livre e independente, mas ainda não alcançou os objectivos pelos quais o seu povo lutou – paz, progresso e felicidade do povo (Cabral) – devido às dificuldades próprias do processo e à oposição “daqueles que não querem que a África se desenvolva em liberdade”.
Por isso, lutar por Moçambique é um desafio contínuo. A asserção de Frantz Fanon nunca foi tão verdadeira e pertinente: cada geração tem uma missão a cumprir, realizá-la ou traí-la. Algumas vezes até parece que a “geração da insurreição” teve uma missão muito árdua: lutar contra o colonialismo debaixo de perseguições, prisões, torturas e até assassinatos. Outras vezes, parece que, na sua dificuldade, teve sorte e tarefa facilitada: identificou e definiu com exactidão o inimigo – o colonialismo - e o objectivo fundamental da sua luta, a autodeterminação política.
A geração da insurreição e da independência, apesar das críticas que lhe possamos fazer por causa de alguns dos seus feitos – nos procedimentos, nas ideologias, nos processos económicos –, em retrospectiva e com a distância histórica que temos, somos obrigados a reconhecer que se engajou para realizar aquilo que pensava ser a sua missão.
Precisamos de continuar a “Lutar por Moçambique”, mas o tempo e as circunstâncias mudaram. Já não se trata de lutar contra o colonialismo do minúsculo e periférico Portugal, mas de resistir aos mastodontes e colossos que, ainda por cima, se fundem em grandes unidades com vocação imperialista. A necessidade de resistir para continuar o nosso caminho de liberdade é tão importante hoje, como foi no passado (ou talvez mais) e o percurso certamente mais árduo.
Hoje, na época da complexidade (Edgar Morin), do ultraliberalismo caracterizado pela Necropolítica (Achile Mbembe), da sociobiologia, é quase aporético identificar o inimigo contra o qual lutar, como também -e sobretudo-, é aporético identificar com quem contar para essa luta, dentro dos partidos em concorrência e mesmo entre os líderes que nos governam.
Contudo, somos chamados a ser amigos do nosso tempo, a apreendê-lo através de conceitos (Hegel) e a partir das nossas circunstâncias (Ortega e Gasset); a falar a sua linguagem (Jacques Derrida) e a partir do nosso lugar, mesmo se periférico (Enrique Dussel).
É nestas circunstâncias aporéticas que temos o desafio de realizar a nossa missão, de continuar a lutar por Moçambique contra novos inimigos e novas adversidades. Esses inimigos e adversidades são, antes de mais, internos, não só no sentido de que estão dentro das nossas instituições, mas também no sentido de que estão dentro de cada um de nós e se chamam individualismo (solipsismo, com os seus corolários de corrupção), promiscuidade, etc. Mas as adversidades são também a globalização neoliberal e o poder corruptor do seu dinheiro, são a corrida desenfreada e selvagem aos recursos naturais, são a constituição de grandes blocos hegemónicos, é a possível re-transformação de Moçambique em campo de batalha de antigas e novas potências imperialistas e predadoras.
No mundo da adoração narcisista do “Eu” temos que ousar (aude, Horácio) continuar a pronunciar a palavra ‘Nós’, a ser comunidade (cum munia), a ser nação; deslocar os moçambicanos, do “eu” e das tribos de interesses colaterais (partidos, grupos, oligarquias...) para um “Nós” assertivo, um Nós-Moçambique.
Não se trata simplesmente de pronunciar a palavra, mas de convocar o seu sentido (bíblico) criador e vivificador. Isto é, assumir as consequências que o pronunciamento da palavra implica.
Tautologicamente, o nós-Moçambique deve ser o pressuposto e, ao mesmo tempo, o único baluarte da possibilidade de continuação da nossa luta.
Não de um Moçambique que nos adormece com doadores, petróleo e ONG, mas do Moçambique da maioria dos moçambicanos cuja condição nos deveria impedir de dormir… O nós-Moçambique é o conteúdo simbólico de um projecto histórico para o qual se impõe reforjar o sentido, a fim de o possuir plenamente. Trata-se de nos apropriamos desse projecto, fazê-lo nosso e actualizá-lo nas condições actuais do país e do mundo. Para isso, é necessária muita criatividade para renovar e actualizar as formas de luta. A batalha visa também travar e barrar um modelo que faça recuar o nosso sentido de fraternidade e de comunhão.
Não obstante as suspeitas que suscita a utopia hoje, ela deve ser encarada como uma narrativa que fala de esperança, que porta uma visão de futuro. Ela faz entrever algo que ainda não existe, prefigura o que ainda não é. Fala de um espaço livre, aberto, terrestre, imaterial que pode traduzir concretamente a verdade de amanhã.
Tivemos utopias emancipadoras, distopias, utopias de baixo forjadas no baixo fundo das narrativas e perspectivas actuais. Essas distopias tinham o lomuku (emancipação) e a igualdade no coração dos seus projectos. A falência das utopias passadas – descolonização, independência, desenvolvimento – pode levar à resignação, a passarmos do comunitário ao individualismo.
O espírito das afrotopias (utopias africanas), assim como das “moçambitopias” (utopias moçambicanas) tem que ser retomado com mais força e com espírito renovado, pois o conceito continua válido, mesmo se a forma tiver que ser repensada.
Temos que ousar (aude) determinar-nos em função das nossas necessidades e concepções. A nossa via não pode ser dirigida por outros e pelos seus interesses, assim como não pode ser prisioneira dos feitos das gerações passadas. Cabe-nos inventar um discurso – e uma prática – em conformidade com a nossa linguagem – e circunstâncias –, habitar um espaço infrequentado do imaginário a partir do qual dar vida a uma realidade fecunda.
Na mediocridade ambiente - em termos de valores, pensamentos, convicções -, o desafio de Horácio é mais do que nunca actual: sapere aude. Ter coragem de pensar por nós mesmos, reivindicar o direito à iniciativa e tomar a palavra no espaço-mundo.
Precisamos de um pensamento moçambicano – não de uma maneira moçambicana de pensar –, de um pensamento de moçambicanos para Moçambique, pragmático e emancipado de posturas e diferendos ideológicos; de um pensamento (e propostas políticas) que parta(m) de uma análise lúcida e realista dos problemas do país, susceptível de propor soluções para os nossos impasses. Precisamos de elaborar estratégias de infusão e difusão desse pensamento e mobilizar os diferentes actores políticos, sociais, culturais e intelectuais.
Temos que continuar a correr, mas sobretudo temos que aprender a correr a nossa própria corrida e não a corrida de outros. Para isso, é necessário que tomemos decisões com ciência e em consciência, mas sempre 'em-comum’ - o que requer diálogo e consenso - muito para além das clivagens; tribais, regionais, raciais ou partidárias. O (em) comum requer políticas devotas à causa e instituições à altura das suas responsabilidades.
Estamos a atravessar um momento crucial, um tempo de desafios que devemos catapultar em novas oportunidades de mudança. A crise actual, embora grave, oferece-nos uma chance para uma transformação significativa. Precisamos discernir com sabedoria entre o que necessita ser mudado e o que deve ser preservado. É hora de fortalecer as nossas instituições, moralizar a vida política e garantir uma democracia robusta e justa. Devemos focar-nos não só em purificar o país da corrupção, mas também em manter firmes as conquistas históricas como a nossa independência e a unidade nacional.
Para além da corrupção, da promiscuidade e do vazio axiológico, o problema de Moçambique hoje é a necessidade de introduzir novas solidariedades num país cada vez mais individualista, incrementar uma demanda de liberdade numa sociedade cada vez mais neocolonizada, manter uma exigência de paz num país cada vez mais marcado pela violência e até pela guerra, realizar o espírito democrático num sistema cada vez mais autoritário.
Se Game of Thrones pode ensinar-nos alguma coisa, é que, para fazer face ao longo e severo inverno que se aproximava, os beligerantes tiveram de se unir.