No imaginário infantil, txopelar nunca foi, tão só, uma aventureira e arriscada viagem de alguns segundos ou minutos. Muitas, pelo contrário, simbolizavam a realização de sonhos que exorcizam vontades recalcadas. Noutros tempos, as crianças se penduravam nos taipais dos Land Rovers, dos Bedfords e Ifas, até nas bicicletas, e se boleavam, aproveitando a distracção dos pedalantes, para provarem ao mundo a sua agilidade e destreza.
A modernidade transformou os veículos, mas nunca o sentido da aventura. Hoje, txopelamos em chapas feitos transportes públicos. Carroçarias empilhadas e necessidade que perdeu a ingenuidade. As emoções e os prazeres, não se algemaram ao tempo e testemunham, ainda, essa fantasia que se estende pelo infinito. A verdade foi sempre a filha do tempo, e a sabedoria, a filha da experiência. De geração em geração, txopelamos nossas vidas no Centro, no Sul e no Norte deste país que busca esse horizonte de comunhão e prosperidade. Umas vezes por aventura, outras, não raras, por condição. Txopelar dá sentido as carências e vivências.
Os veleiros, nacalenses por designação, se transformaram na única salvação para a sitiada população dos distritos costeiros do Norte de Cabo Delgado. Os txopelas da salvação. De noite ou de dia, eles passaram a transportar milhares de vidas e almas ansiosas pelo reencontro com a própria vida, serenidade e razão para terem nascido. Estes moçambicanos não procuram portos-seguros, antes, procuram as razões da discórdia, da falta de irmandade. Buscam, neste percurso, o sentido da serenidade e da racionalidade.
De Quionga a Olumbi, de Panguane a Pundanhar, Quiterajo a Mucujo, a debandada quase não deixou de ter mãos a medir. O último campeonato pela sobrevivência, mas, nunca, a última corrida em busca de conforto e bem-estar. Distâncias nebulosas, permeadas por ventos e monções do Norte ou Sul. Uns a estibordo e outros à bombordo. Como carga levam seus parcos haveres. Os sobreviventes patos e galinhas, também eles deslocados, como se fossem o maior tesouro de um passado sem tantas carências. Estas aves, sequer precisam de explicações para entenderem as razões da fuga. Como qualquer racional, agradecem aos seus deuses e espíritos pela salvação. No desespero e aflição, não importa as condições e muito menos a comodidade dos txopelas. Elas nunca existiram. Por isso, são txopelas. Ser transportado sem segurança e na aventura. Precisam de se apinhar para zarparem.
Embarcados, e na precariedade do desconforto, viram todos insulares e sem história e nem nomes, procurando refúgio no continente, um espaço que os deixe olhar para os outros seres na condição humana. Porém, a ondulação e os silêncios, atravessadores pelas ordens dos ventos, se fracturam com os choros de crianças não contabilizadas no horário da partida. O txopela, quando todos mesmos esperam, se reconverte em maternidade. Um parto sem assistência e dignidade, mas com a solidariedade das matronas e assistidos por capulanas salgadas pelas ondas. Os mais inapropriados e inconcebíveis espaços para se chegar ao mundo. O mar de tantos mistérios reserva para si o direito de conservar, em suas profundezas, as placentas que registam a incredulidade da malícia e fúria assassina insurgente.
Hawa ou Eva, nessa etimologia bíblica, foi uma de tantos que vieram e chegaram ao mundo flutuando. Embalados pela sinfonia combinada de ondas que testemunham tantos outros nascimentos, no interior de suas profundezas, porém, quase nunca, na superfície de suas águas. Mas, são estas águas que se acalmaram para receber cada uma destas crianças. Receber e transportar para outros mundos inundados de dissabores e imperfeições.
No mar florescem para a vida os pequenos guerreiros ávidos de rescrever sua própria história, alterar o curso da humanidade e fazer valor a historicidade de tantas gerações de Manis que souberam viver da pesca e caça ou recolecção, mas, jamais, de fratricida e inexplicadas disputas. Hawas, Faridas e Omares, Anchas e Ibraimos, Naziras e Salimos, tantos que agora parecem ser números, mas que transportam fascinantes histórias de trabalho, vida e amor. O tempo se encarregará de escrever a sua própria história. Estas crianças nascidas em maternidades ambulantes e flutuantes serão candidatas a navegantes fugidos da barbárie e crueldade, em busca da terra prometida, como Moisés procurou Jerusalém, partindo para essa fé que alimenta a religiosidade.
Vivemos txopelados para essas esquerdas e direitas, com rajadas de vento nem por isso tão favoráveis. Para tanta desgraça não pode ser apenas a natureza que dita o nosso destino. Somos nós próprios. O bom senso e condução colectiva terão de nos orientar para um porto de calmarias. Assim, a sorte acompanhará os audazes.
De maternidades flutuantes os txopelas podem, lamentavelmente, transformar-se em pequenos calvários, espaços onde a vida deixa de fazer sentido. Neste mesmo mar de tantas alegrias e salvação, os afogamentos sepultam corpos em suas águas cristalinas. Junto da placenta dos recém-nascidos, jazem heróis e famílias com destinos interrompidos. As paradisíacas ilhas assistem com a mesma cumplicidade, o gerar e o desfazer de vidas. São estas águas que retiram o melhor de nossos concidadãos. São os txopelas das múltiplas tragédias de tantos refugiados e fugitivos. Nestas horas, o idílico azul se converte num túmulo sufocante e frio, para deixar nas suas profundezas os sonhos de quem nunca entendeu a génese de tanta conflitualidade, descrença e vandalismo.
Entre maternidades e calvários, só tem um nome, esperança de um outro futuro e novos horizontes. Estes txopelas são as imagens do sofrimento, narradas de formas tão cruzadas, incompletas e incoerentes, insensíveis e arrepiantes, que viajam em sentido inverso do aceitável e tatuando as nossas consciências e memórias. Os txopelas revelam a plenitude de uma tragédia e crime humanitário cujas proporções, só mesmo Deus poderá, algum dia, justificar.
Na linha do horizonte, os txopelas vão chegando silenciados e com a réstia de esperança restabelecida. Invadem as místicas praias do Paquitequete. Areias brancas transformadas em pequenos hotéis desprovidos de tudo. Um céu aberto e a última redenção divina para quem alcança terra firme. Paquitequete abraça a todos com a mesma gentileza que recebe dezenas de pescadores. Para trás, as narrativas de uma longa aventura, os relatos da crueldade e descaso, a matriz de sentimentos, de pequenez da nossa solidariedade e generosidade e de um presente que não quer ser passado, pois, o futuro também parece ter deixado de existir.
“Eu nasci em KaTembe, a 2 de Novembro de 1920, um Domingo, às 11 horas da manhã. A minha mãe chamava-se Jinita Libombo e o meu pai Jeremia Dick Nyaka. Os meus pais conheceram-se em KaTembe, onde ambos cresceram e frequentavam a mesma Igreja. Foi lá que eles se casaram, e tiveram os primeiros dois filhos: o meu irmão Daniel e eu. Tiveram ao todo sete filhos, quatro rapazes e três meninas.”
Começa assim Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade), de Nely Nyaka, o prodigioso relato e testemunho e testamento da Vovó Nely. O seu activismo social começou cedo, primeiro no seio da Igreja Metodista Wesleyana e, mais tarde, no Instituto Negrófilo (que depois assumiu a designação de Centro Associativo dos Negros da Colónia de Moçambique), organização de que o seu pai foi sócio-fundador. Recentemente, esteve na criação e é uma das mais notáveis dinamizadoras da associação Pfuna, dedicada a mitigar a pobreza e a miséria de crianças órfãs.
Vovó Nely é uma das grandes intérpretes do devir moçambicano. Não só pela sua experiência, mas sobretudo pelo seu exemplo e valores. Neste livro, editado pela Marimbique, em 2018, cartografa não só a sua trajectória individual, mas estabelece um atlas de um tempo e de uma sociedade.
Os pais, Jinita e Jeremia, a KaTembe, Lourenço Marques, a vida na periferia (mahanyela: xitiki, bajiyas, machambas e outras formas para ganhar a vida), a casa e os rituais, o namoro, o casamento, a gravidez e parto, o falecimento.
A Moamba e a vida lá nas terras do Sabié. O nascimento dos filhos. A cegueira do filho Raúl. Os tempos duros. Os tempos sombrios. A prisão do marido Raúl. O retorno à Lourenço Marques, a casa de Ximphamanine. A prisão do filho Luís pela PIDE. Os assassinatos políticos. A sordidez do colonialismo no seu estertor.
O livro fala dos alvores da Independência, do 7 de Setembro, do Governo de Transição, do entusiasmo e da euforia, de Samora Machel, dos erros da nacionalização das barracas e casas de madeira e zinco, dos excessos da revolução, da Operação Produção, do seu tempo como Juíza eleita, das transformações sociais, da língua e cultura, das novas práticas e das narrativas e brincadeiras da nonagenária com o seus netos e bisnetos.
Estas memórias percorrem uma longa e enriquecida vida de uma extraordinária personagem deste século moçambicano, mulher dotada de uma memória prodigiosa, exemplo de probidade e repositório de valores. Profunda conhecedora de Lourenço Marques (Maputo) e, mais particularmente, dos seus bairros periféricos, onde cresceu, Nely Nyaka fala-nos, em Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade, dos marcos geográficos e sociológicos da sua cidade, das famílias que a habitavam, das práticas e dos costumes da comunidade e dos artifícios a que se recorria para mitigar a pobreza, e para vencer as enormes barreiras criadas pelo poder colonial a todos os que não fossem brancos.
Aqui estão 100 anos de uma vida plena, não isenta de provações, contudo absolutamente instigante. Impressiona-me sobretudo o seu olhar. A perspicácia do seu olhar. A candura do seu olhar. O acerbo espírito crítico e o poder de observação. A filha Gita Honwana Welch, que ajudou na fixação do texto e é autora do prefácio, fala da “candura da observação”, uma expressão felicíssima.
O ingente livro de contos Nós Matámos o Cão Tinhoso (1964) ou mesmo o recente e brilhante livro de ensaios A Velha Casa de Madeira e Zinco (2017), de Luís Bernardo Honwana, as incontornáveis Memórias (1985), de Raúl Bernardo Honwana, ou ainda os escritos de Raúl Honwana (filho), autor da obra O Algodão e o Ouro (1995), cruzam-se com este (2018), de Nely Nyaka, e denunciam, se quisermos, uma estética que lhes é comum. Uma mesma ética. A ética é, aqui e sempre, uma espécie de estética da responsabilidade, individual e colectiva. No fundo, estão imbuídos de uma mesma poética.
Não deixo de assinalar que vivemos um contexto adverso, onde a cultura e os valores, onde a ética e a estética, onde o património e o acervo cultural, onde tudo isto perdeu a centralidade. A grande violência das últimas décadas é, para além do aniquilamento de vidas que se perderam, esta degenerescência em que nos atolamos.
O lançamento deste livro, em Novembro de 2018, nos seus 98 anos, foi um momento de júbilo, facto que hoje não se repetiria dadas as circunstâncias supervenientes deste ano pandémico. O átrio do Museu dos CFM estava cheio: filhos, netos, bisnetos, amigos, familiares, admiradores. Quando chegou o momento de a autora se pronunciar, ela fez uma oração profunda e acutilante, assombrosa e generosa, lúcida e corajosa.
A oração foi feita em ronga, transcrevo parte da tradução:
“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo
...os três nomes que nos dão a medida da tua grandeza.
Agradeço-te Deus nesta hora, agradeço-te meu Deus as bênçãos que derramas sobre a minha vida e a generosidade de teres permitido que eu escrevesse este livro.
Escrevi este livro, sim, meu Deus, porque tu abriste a minha mente para que eu tivesse a ideia de o escrever.
Move-me a vontade de tentar explicar a maneira como se vivia antigamente. Sempre ansiei por contribuir para que os mais novos tivessem consciência de como eram as coisas nesta terra, muito antes de eles nascerem.
No meu dizer, meu Deus, é um pouco da história de Moçambique o que quero contar àqueles que me rodeiam.
Agradeço-te meu Deus por teres permitido o tempo e a força para que eu pudesse fazer o que tanto desejava fazer.
E é por isso que uma vez mais rogo que tu estejas connosco também neste momento e neste lugar para que o nosso trabalho de hoje se cumpra em boa ordem.
Sem me esquecer meu Deus de orar pela nossa terra.
Quero orar pela nossa terra.
A nossa terra vive tempos muito atribulados.”
“Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, de Nely Nyaka, é uma obra notável, surpreendente e generosa. Disse-o e aqui repito: testemunho e testamento majestoso, sumptuoso, soberbo. A Vovó Nely cumpriu o seu dever e aqui está o seu livro, a sua vida, o seu exemplo e os seus valores. Aqui está ela nos seus belos 100 anos! Deus deu-lhe esse tempo e essa força. Espero que a oiça quanto à nossa terra e quanto a estes tempos atribulados que vivemos.
KaMpfumu, 2 de Novembro de 2020
Principio este texto, citando o saudosíssimo Samora Machel, num excerto do seu extenso discurso proferido a 18 de Março de 1980, aquando do lançamento da “Ofensiva Política e Organizacional” (sic): «quando conquistamos a independência, dissemos em cada parede em cada palmo de terra, está o sangue e o suor de um moçambicano; mas fomos entregar a defesa das nossas conquistas àqueles que queriam se banhar com o sangue e suor do povo».
Quem são esses que pretendem «banhar-se com o sangue e suor dos moçambicanos»?
Resposta: São moçambicanos.
Não irrompeu nenhuma força externa que nos veio subjugar. Nós próprios estabelecemos, entre nós, gatos, de um lado, e ratos, doutro. E comemo-nos que nem canibais.
O caricato, mas esperançoso, nisto tudo, é que não precisamos enveredar por lucubrações complexas e exaustivas para “identificar o inimigo”. É só nos olharmos ao espelho que ele está automaticamente identificado.
Mas essa coisa de nos culparmos à nós mesmos de algo, costuma ser um exercício massacrante e de extrema dolência. Não há juiz mais severo do que a nossa própria consciência.
É necessário encontrar alguém (ou algo) em quem colocar a culpa.
Culpar o governo ou governantes é um exercício fácil(itado). Vitimizar-nos ao invés de nos responsabilizarmos, é sempre um ensaio que não requer dificuldades. É algo que não se aprende na escola. É uma tentação perante à qual todos estamos sujeitos a tropeçar e, por ser cômoda, optamos, sem hesitação, por nela investir.
Mas o governo é corporizado por pessoas. São elas que cristalizam o modus cogitandi, modus operandi e modus faciendi nos quais se cristaliza a acção governativa. Tudo isto é labor do ser psico-físico, com capacidade de saber o que faz e que consequências se extrairão do que faz (mesmo naqueles casos em que os actos são inconsequentes, há capacidade de intuir que, na eventualidade de haver consequências, estas seriam, sempre, assustadoras aos olhos dos próprios autores dos referidos actos).
O problema não é o governo. O problema é o moçambicano que, sabe-se lá a partir de que momento, canibalizou-se e introduziu no seu intelecto insaciadamente voraz que, enquanto viver, tem de matar. O governo não é culpado pelo facto de uma comissão de moradores de um condomínio surripiar os valores dos contribuintes/condóminos; o governo não á culpado pelo facto de as empresas privadas comercializarem vagas de emprego em troca de actos sexuais; o governo não é culpado pelo facto de os nossos WhatsApp’s servirem de autênticos centros difusores de boatos sobre a vida dos nossos melhores amigos com os quais nos rimos e aos quais abraçamos todos os dias.
Hoje em dia o cidadão já nem sabe onde efectuar uma queixa. É bem provável que, se se atrever a efectuá-la junto à Esquadra policial, corra o risco de, pasme-se, sair de lá na qualidade de indiciado, pois está instalada uma patética doutrina segundo a qual é proibido fazer queixa contra indivíduos aos quais foi atribuída a categoria de “intocáveis”, sob pena de o denunciante ir, ele próprio, preso. O jornalismo investigativo é desencorajado através do terrorismo, no qual se lhes incendeiam as instalações e [se lhes] destroem os equipamentos de trabalho, como forma de lhes “chamar atenção” para não enveredarem pelo correcto e aconselhável pergaminho do exercício do direito de informar e da liberdade de imprensa.
É falacioso apregoar-se que a culpa pela ocorrência destas distopias sociais é propriedade exclusiva do governo.
A culpa, como doutrinaram os neologistas Bockelman e Mezger, está na «formação da personalidade» de cada um de nós.
É que, em boa verdade, não se sabe ao certo se nos deixamos corromper inadvertidamente pela degenerescência ou se, antes, fomos nós que criamos conscientemente a degenerescência como preferencial instrumento de conduta, visando satisfazer anseios que, propositadamente, preferimos nos esquecer que são moralmente impúdicos.
Assim, do nada, se fez o silêncio. Condoído e melancólico. Inexplicável. No mês do professor, terminava uma viajem que parecia infinita, duma das mais profícuas e renomadas professoras que a própria Universidade Pedagógica ajudou a professorar. O vocabulário da exaltação será sempre restrito e, quiçá, repetitivo para expressar a temporalidade, a dialéctica de metamorfoses, a viagem, e o erudito. As melhores expressões se converteram em lágrimas. Uma dor profunda e uma comoção abrasiva.
Para trás, e neste cenário de incredulidade, ficou um percurso de tantos, e essenciais, livros e outros textos conjuntos e colectâneas de natureza e conteúdo académico e educativo e, acima de tudo, uma história que passou tangencialmente, ou na profundidade, pela história de outros tantos estudantes, docentes e curiosos.
E nesse instante, terminou uma fascinante aprendizagem, cuja intenção se associava a disponibilidade para olhar o mundo que nos envolve, saber escutar e, sobretudo, caminhar junto da natureza no universo das suas diferentes formas.
No ano em que a Universidade Pedagógica de Maputo, mais extensa ou confinada, celebra o seu 35º aniversário, a nossa professora Stela Mithá Duarte, também se aproximou das 35 publicações, dos 35 estudantes que orientou, das 35 conferências que organizou, dos 35 cantos da universidade que amou e dos 35 tectos que edificou. Essa, a marca do reconhecimento e da grandeza de um talento que, indelevelmente, ficará para os anais desta instituição que são o produto da revolução do 25 de Setembro, das vitórias e dos sacrifícios da independência nacional, da coragem e bravura dos melhores filhos desta pátria.
Celebramos os 35 anos de uma universidade que, na sua dimensão territorial, regional, cultural, educacional e científica, uniu e formou moçambicanos de todas as raças e etnias, das classes sociais mais desfavorecidas, das classes médias e abastadas, estrangeiros, e primou por manter presente essa busca incessante pelo conhecimento, pela pesquisa e pela extensão. A professora Stela formatou esse restrito grupo movido pelo ideal do olimpismo universitário que procurou ensinar mais, publicar mais e elevar o brilho de um país que procura o seu reencontro.
Nesta ode, não são as memórias ou as fases institucionais mais importantes, que devem ser restauradas. Serão antes, as energias que ao longo dos anos preencheram suas alegrias, os dissabores que a entristeceram, os debates que acalorou e, principalmente, as virtudes que foi estimulando e que engrandeceram este longo percurso que ainda terá de ser palmilhado. A professora Stela era essa líder. Serena e resguardada, que sabia orientar e iluminar as mentes mais controversas e brilhantes.
Devolvemos o seu corpo à terra no dia do professor, na semana onde as festividades se confrontam com as vicissitudes, nos momentos em que um país inteiro é chamado à reflexão, como se as nuances educativas continuassem desconhecidas ou carecidas de debates. E sob a capa da chuva miúda e teimosa, transformamos o seu corpo em cinzas. Essa cinza, do seu corpo, que é conhecimento e que vai descer rio a baixo, por toda a extensão do Zambeze, contemplando a Chupanga de David Livingstone e desaguando nas ensobradas águas do Índico. Esta foi a sua vontade, e estas cinzas também são a história. O Zambeze se converte no rio de todas as nossas emoções.
O Zambeze se transformará num rio de energias e conhecimento secular e, igualmente, num rio universitário. As águas que nos roubaram uma companheira sóbria, destinta, amiga de todos e companheira de todas as ocasiões.
Ninguém te pede para repousares em paz, professora. Os verdadeiros professores não repousam. Não podem repousar, enquanto existirem pesquisas para escrever, enquanto não nos reconciliarmos como moçambicanos, enquanto existirem crianças e adultos analfabetos, enquanto os tabus superarem a ciência, enfim, enquanto os dissensos forem bem maiores que os consensos. A professora Stela partiu como viveu. Comungou o espírito de reconciliação. Nasceu muçulmana, cresceu católica e hindu. Na hora da partida, comungou estas três religiões, para que a sua alma pudesse partir reconcialiada. Apenas o seu corpo deixou de estar no nosso seio. (x)
A ilha dos espíritos celebrou o 202º aniversário. Clausurada, sem alaridos e nem hosanas. Uma comemoração, quase, esquecida e melancólica, com silêncios ensurdecedores, sem espaços e recantos engalanados. O maior convidado foi, apenas, o tempo. Esse tempo infinito que contempla, estarrecido, noites e luares misteriosos, auroras endiabradas, crepúsculos de mil cores e, os ventos que acenam mudanças políticas e climáticas.
Faltou tufo e fraternidade insular. Até o sol, enfraquecido, foi insuficiente para recriar o cruzamento milenar de sabores e sons. A torre de São Miguel não parecia, nem de longe e muito menos de perto, o espaço de maior dimensão multicultural da costa moçambicana. Na ausência de festividades, até os toques culinários do sirissiri e do lumino, viraram insossos. Nesta celebração carente, faltaram, curioso, até os políticos e suas ocas veleidades. Dois anos antes, eles quase afundaram a ilha porque era conveniente comemorar.
Imaginei como seria o diálogo, por estes dias, com a Dona Lili. O que será que ela diria sobre esta efeméride e sobre a ilha de Moçambique? Falaríamos sobre a terra de Moisés, filho de Mbiki, ou Mussa Bin Bique, tantos outros assuntos curriculares e marginais, que dão alento a alma e ao espírito Nharsa. A dona Lili, do clã Tivane, faz parte de um grupo de escritoras de cartas. Um grupo que já foi expressivo. Agora agoniza. Os escritores de cartas têm a mesma origem, amor pelo próximo. Começam como um hobby e, depois, ganham gosto. É o analfabetismo das maiorias que valoriza o conhecimento, as habilidades dos dedos e da tinta.
Escritores de cartas, salvo raras excepções, são confidentes muito especiais e de extrema confiança. Pessoas que escutam com ouvidos de padres e espírito confessionário. Depois de discutidos os contextos e passadas as confissões, estas jamais são reveladas para quem quer que seja. Espécie de cofre-forte. Estes escritores, preferencialmente, mulheres, transcrevem para o papel centenas de segredos, as novidades familiares, rabiscam as alegrias e os nascimentos dos novos membros, descrevem, enfim, as novas cabeças do rebanho que engrandecem as fortunas, falam das colheitas, pragas e enfermidades. Mas, estas cartas suavizam, também, as tristezas da dor e do luto dos vizinhos e membros da aldeia.
As cartas não representavam, apenas, uma ligação mecânica entre quem quer transmitir episódios e factos, pois, transportam e estabelecem uma relação de fraternidade confidencial entre os correspondidos e seus entes distanciados. Dona Lili, minha escritora favorita de cartas, lá das bandas de Chicumbane, desde o longínquo Maio de 1933, escreveu milhares de cartas. Perdeu a conta e as memórias. Não sabe qual delas foi a melhor ou a menos inconveniente. Até para os desterrados na Ilha escreveu. Por isso, eu queria mesmo saber que carta ela escreveria, por esta ocasião dos 202 anos.
Imagino a Dona Lili escondida no argumento de que os primeiros correios de Moçambique foram estabelecidos na ilha, em 1811, depois do Sultão de Zanzibar ter perdido o controlo sobre o local. Não poderia ser diferente, pois, esta foi a primeira grande cidade moçambicana. Para a ilha e da ilha, esse histórico espaço de confluências culturais, deu aso a centenas de milhares de cartas. Umas para destinos mais próximos, outras, para lá das linhas do horizonte. Então, a Ilha deveria ser, igualmente, um local favorito e predilecto para escritores de cartas, metrópoles e ultramares.
Acredito que dona Lili começaria por felicitar a resiliência desse povo e dessa porção de terra que resiste às ondas mais severas e aos ventos mais devastadores. Os ilhéus precisam de se manter distanciados de qualquer conflito e viver a paz que Deus lhes proporciona. Depois, ela desejaria que mulher nenhuma passasse pelos horrores da guerra e da insurgência. Nenhum filho deveria tirar a vida de nenhuma mãe.
Os motivos para contar episódios e facetas insulares, não devem escassear. Vão desde as cartas que abordam política, tortura e desterro, velas de barcos que se furaram pela força dos ventos, peixes assustadores que afundaram embarcações. As mais dolorosas seriam as que descrevem o sofrimento de pescadores que se fizeram ao mar, e jamais regressaram da faina. Suas almas ficavam, eternamente, nas ondas verdes desse mar que nutre sonhos e canções.
Dona Lili cresceu no meio de livros. Seus pais eram ávidos leitores e tinham, sempre, um pedaço de papel em suas mãos, comentando um com o outro, o que haviam lido, ou estavam prontos para ler para os seus filhos. Conta que, lá pelas bandas de Banhane, muitas das mulheres, cujos maridos trabalhavam no Rand, não sabiam ler e escrever. As notícias dos seus maridos só chegavam por carta. Foi assim que começou a escrever para ajudar e nunca mais parou.
A paixão pela leitura tornou a Dona Lili, não apenas numa leitora voraz, mas, também, numa activista pela causa. Celebra quando vê pessoas lendo livros, não importam os espaços, e estranha a ausência de bibliotecas públicas, em boa parte das instituições de ensino e outras. Se surpreende quando pessoas, até influentes, afirmam, com certo orgulho, não se lembrar da última vez que leram um livro, por mais pequeno que este seja.
Hoje, em meio à pandemia, os escritores de cartas quase ficaram privados do exercício da sua profissão favorita. Na realidade, a chegada dos celulares e dos meios de comunicação massiva, quase silenciou esta actividade. Ainda assim, Dona Lili escreve cartas. Tem um conjunto de clientes fiéis e devotos. Confiam mais nas suas cartas do que em qualquer outro meio à disposição.
Equivocado pensar que a modernidade os derrotou. Continuam activos e presentes. Diferentes da ilha e dos seus aniversários públicos esquecidos. Os escritores de cartas sobrevivem indiferentes ao COVID e a todas as pandemias. Nosso monólogo terminou com as acusações a modernidade. Sofremos com os desacertos e a intranquilidade.
Eu quis terminar este momento, resumindo o livro “Amada” da premiada escritora Toni Morrison, onde a escrava fugitiva Sethe, mata a sua filha, para que ela não sofra, na vida, e nem tenha a mesma sorte que a sua mãe, esquecida nas celebrações. Privada de liberdade e paz. Esta paz que tarda acontecer e, também, nos faz reféns do prazer de ler e desfrutar de cada canto deste vasto país. (X)