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quinta-feira, 29 setembro 2022 10:45

Xivothxongo

AlexandreChauqueNova

Bebe-se em todo o lado, a toda a hora, por gente de todas as idades, homens e mulheres das camadas desfavorecidas. É a  loucura em si que está a levar jovens e adolescentes, ao abismo sem volta. Os velhos também estão nessa senda, vergaram ante um veneno chamado xivothxongo, e já existem queixas vindas das mulheres, os homens estão a perder erecção por causa dessa porcaria. Há casos de internamentos nos hospitais, com fortes sinais de esquizofrenia, e parece não haver capacidade para travar o caos.

 

Muitos rostos, outrora frescos e saudáveis, hoje estão tumefatos, flagelados pelo xivithxongo. São miúdos que logo às primeiras horas da manhã, dirigem-se às barracas cheios de babalaza, com o corpo a tremer de alto a baixo, sem vontade comer. Eles pensam que, bebendo mais uma, restabelecem  o metabolismo, enganam-se. Cada maldita garrafinha que consomem, é um degrau que descem para o precipício, e nunca páram de se esfrangalhar porque estão viciados, e o vício de xivothxongo é imediato.

 

Muitos deles não bebem água, se bebem, é muito pouco. Ignoram que a bebida seca desidracta facilmente. É por isso que, no lugar de tirarem a babalaza com muita água e chá com açúcar, tomam mais pinga para voltarem a esborrachar-se e apodrecerem pouco a pouco. Aliás, grande número de  jovens e adolescentes, e velhos também que alinham com os putos, na verdade já estão obsoletos, nem força para estarem em cima de uma mulher têm.

 

Houve tempos em que a bebida mais consumida aqui na cidade de Inhambane, era a sura e um pouco a aguerdente de caju ou citrinos ou ainda cana-de-açucar, e os danos não eram tão fulminantes. Também havia petisco de marisco, o que contribuia para minimizar os prejuízos no corpo. Hoje, não! O que triunfa é a mixórdia do xiviothxongo, com todas as consequências nefastas que ela acarreta.

 

Xivithxongo é um veneno, não nos cansaremos de dizer isso, di-lo-emos até que amanheça, para ver se alguém nos ouve e toma medidas que retirem esse perigo para a saúde, dos lugares onde é vendido com o fim de destruir as pessoas. Não se difere muito de uma droga pesada do tipo heroína e outras drogas sintéticas que incluem misturas de canabis com diesel. Então, as instituições do Estado devem mover-se no sentido de proteger a juventude e os velhos que nos dão a impressão de desespero e frustração.

 

O piior é que as crianças entraram na carruagem, repetem o refrão dos mais velhos que sorriem com os lábios queimados.  Elas – as crianças - bebem também essa poção de morte e sentem-se adultos, sem terem a noção de que estão a deslizar para o buraco onde serão recebidos por espigas de aço. As farmácias, por outro lado,  estão a fazer dinheiro com a venda de estimulantes sexuais para os consumidores de xivothxongo, que estão a minguar todos os dias, mas há muitos outros que, mesmo com estimulantes, não irão fazer nada porque não se alimentam. E existem outros ainda, que pura e simplesmente abdicaram das mulheres. Mulher para eles é o xivotxongo.

 

Onde se bebe xivotxongo não há barulho, não há grandes vozearias como nos bares de cerveja. O silêncio é provocado pela falta de energia no corpo dilacerado diariamente, sem que o Estado faça algo para proteger as crianças e os jovens, cujo futuro parece comandado pelo xivotxongo.

 

**Bebida alcoólica – seca, vendida nos mercados e barracas e lojas, em pequenas garrafas de vidro ou de plástico, cuja agressividade não lembra o diabo.

Um centenário parece uma eternidade que esta imerecida lógica da vida impõe sobre a humanidade e nos condicionou às ausências infinitas. A mão invisível persuade-nos a abdicar da presença dos líderes que pavimentaram os caminhos de verde para deixar passar a liberdade e o futuro. De forma prematura, teríamos adorado seguir a revolução, ainda devotados pelas memórias e serenidade poética de Agostinho Neto. Foi como se uma estrela se tivesse escurecido no espaço celestial. 

 

Fiz parte do grupo que saiu para as ruas para receber o Presidente Agostinho Neto, na sua última visita a capital moçambicana. Ele era discreto e exagerado nas suas aclamarias. O oposto de um Samora vibrante e extrovertido. Vimo-los abraçados e em franca cavaqueira. Algumas vezes, mais comprometidos e serenos. Uma cumplicidade que escondia uma amizade que se reconfigurava em irmandade.  Meses depois, a força desse inapelável destino roubou, de todos nós, esse lutador intransigente, com visão profética e mobilizadora. O líder que frequentou mais cadeias e celas políticas, que qualquer outro da sua época. Como prisioneiro político, deambulou por Luanda, Lisboa, Cabo Verde, entre Santo Antão e Santiago e, novamente, Lisboa.  Mas não era a ele que se prendia, mas sim aos seus poemas. Como se pudessem colocar algemas nas suas palavras.

 

Nenhuma masmorra, ainda assim, o privara de escrever esses proféticos poemas que denunciam as amarras e amarguras de um povo que vivia subjugado e oprimido. As prisões de Agostinho Neto desencadearam uma incontestável onda de protestos e de petições, de inúmeros intelectuais, de entre os quais o célebre filósofo francês Jean Paul Sartre; quem diria. Outros celebres intelectuais e artistas, apelaram, igualmente, a sua libertação, como se uma onda de grandes proporções e comoções tivesse invadido os corações de André Mauriac, Aragon e Simone de Beauvoir e, ainda, do prestigiado Nicolás Guillén, poeta cubano. A indignação não deixou de fora o pintor mexicano Diogo Rivera. Tamanho reconhecimento ditou que António Agostinho Neto fosse eleito o prisioneiro político do ano pela Amnistia internacional.

 

Já nos trajes de Presidente da República de Angola, Neto Kilamba, pseudónimo que o consagrou esse médico de profissão, poeta por vocação e iconoclasta líder revolucionário por missão, colocou Moçambique no topo das suas prioridades. Com Machel, sofreram juntos as agressões belicistas da África do Sul racista e da Rodésia de Smith.

 

As visitas de Estado entre Angola e Moçambique se regavam sob o manto da fraternidade. Por isso, Agostinho Neto tem o seu nome associado a toponímia nacional moçambicana, numa auspiciosa avenida no coração da cidade de Maputo. Igualmente, centenas de aldeias mais recônditas ostentam seu nome. Pelo menos, 36 escolas primárias e secundárias de Moçambique tem Agostinho Neto como seu patrono. A empatia e simpatia que granjeou no seio dos moçambicanos alimentaram esse caudal, tão devoto, de memórias que continuaram sendo invocadas entre distinções e designações. Agostinho Neto vive e se imortaliza como líder estrangeiro, patrono do maior número de escolas em Moçambique. Não deve ser obra do acaso.

 

O poeta e presidente que trouxe a independência à Angola foi dos mais proeminentes e carismáticos líderes africanos. Ombreia nesse estatuto com tantos outros intelectuais e líderes como Eduardo Mondlane, Samora Machel, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos ou, ainda, com Léopold Senghor, Patrice Lumumba e Kwame Nkrumah. Também eles, rendidos e impregnados de veia e pensamentos utópicos, com uma dose de pragmatismo e humanismo. Agostinho Neto, sonhou Angola e todas as antigas colónias portuguesas como territórios e espaços livres e independentes, como Estados de justiça social, nações prósperas e unidas pela irmandade e solidariedade, educadas e, sobretudo, democráticas.

 

A meio da azáfama das eleições no seu próprio país, das cerimónias fúnebres de seu sucessor José Eduardo dos Santos, da fatídica guerra da Ucrânia e de outras intermináveis reuniões partidárias, ficamos, todos, devendo uma homenagem ao saudoso António Agostinho Neto, no seu centenário. Uma espécie de missa reconciliatória e purificadora. Um reencontro com os fundamentos dos nossos Estados e com os sonhos que seguiram outros rumos e horizontes. Ele próprio escreveu, em tantos poemas, que nunca se esta só e nem se deve ignorar a presença do outro; todavia, parece abandonado e sem convicções, no mausoléu que o alberga para que jamais desapareça do nosso imaginário.   

 

Parece, pois, imperdoável que esta amnésia colectiva e ausência de pronunciamentos públicos e de outra índole, não sejam, por conseguinte, merecedores da indignação. Como nos alheamos a esse espírito revolucionário que serviu de menu para a nossa caminhada inicial? Não creio que seja, simplesmente, pela cultura de esquecimento que esta celebração ficou invisível, pois, não pode existir tanto descaso, sem razão, que omita a celebração deste centenário. Fomos presunçosos e, marcadamente desatentos, por quaisquer que sejam as razões.

 

Mesmo que não queiramos fazer-lhe aqui a biografia, seria incontornável reviver seu percurso, desde esse longínquo 17 de Setembro de 1922. Foi no Município do Icolo, Bengo, arredores de Luanda que tudo começou. Ali foi enterrado o cordão umbilical e o jovem António viu a luz do sol pela primeira vez. Oriundo de uma família já assimilada e com créditos evidentemente reconhecidos, seu pai, Agostinho Neto, era pastor metodista e catequista da mesma missão metodista americana, em Luanda. Sua mãe, Maria da Silva Neto, por outro lado, era professora primária. Se aglutinavam os condimentos para que o jovem António enveredasse e revelasse sua apetência pela literatura e rigor escolar.

 

Ele foi educado para saber usar o verbo na sua plenitude.  Esse mesmo poder da palavra o transformou e marcou profundamente a sua personalidade e irreverência. Do poema à utopia revolucionária foi um passo subtil e mágico. Essa utopia o personificou e fez dele jovem inconformado, atento as dinâmicas do seu povo, alguém que não se evadia da realidade e do sofrimento, e que referenciava, nas suas quadras e estrofes, a realidade que o circundava. Emancipou-se e jurou usar essa mesma palavra para combater, sem tréguas, a descriminação e o colonialismo. A deambulação de seus escritos e a tonalidade de suas palavras, converteram-lhe naquele sujeito poético que a humanidade testemunhou e que lutou contra a ordem existente até a independência de Angola.

 

Amadurecido pelas circunstâncias e com o apoio da igreja metodista, foi uma lança que desferiu golpes contra o regime colonial português. Importante salientar a igreja Metodista como a mesma igreja que ajudou tantos outros nacionalistas a prosseguirem seus estudos para melhor combaterem a presença colonial em seus países. Nem mesmo a Congregação dos Padres Burgos ou mesmo Jesuítas teve tanto impacto na preparação e financiamento de estudantes nacionalistas. Eduardo Mondlane teve e recebeu o mesmo apoio.  Não se pode, portanto, dissociar o papel e a responsabilidade da igreja metodista no apoio aos processos revolucionários nas ex-colónias portuguesas.

 

Neto Concluiu o Liceu “Salvador Correia”, em Luanda, onde terminou o 7º ano em 1944, e partiu para Coimbra, Portugal, onde frequentou a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e depois Lisboa. A capital portuguesa fervilhava e transbordava a lava de vulcão da revolução. As dinâmicas propiciaram o momentum e os espaços para que a militância política ganhasse suas letras de ouro e glória. Por ironia do destino, o controlo da polícia política portuguesa fraquejou e permitiu que Lisboa se convertesse na sede embrionária da subsequente revolta anticolonial.

 

Em 1947, António Agostinho Neto integrou o movimento dos jovens intelectuais de Angola, cujo lema era vamos descobrir Angola. Associou-se aos não menos carismáticos Lúcio Lara e Orlando Albuquerque, publicando seus textos iniciais nas revistas Momento e Mensagem, que pertenciam aos órgãos da associação dos naturais de Angola. Casou-se, mais tarde, com Maria Eugenia Neto, seu maior amor e mulher, com quem partilhou todas as cumplicidades que, igualmente, visitou Moçambique, passeando todo o ar da sua descrição, generosidade e sabedoria. Eles tiveram três filhos, sendo Mário Jorge Neto, o primogénito, depois, Irene Alexandra Neto e, finalmente, a Leda Neto.

 

Os seus exímios poemas e a colectânea de textos publicados, insuflaram as mentes e o sentimento libertador. Pelos seus dedos e caneta, transfigurava a vontade de libertação. Neto foi esse esclarecido homem de cultura para quem as manifestações culturais tinham de ser, antes de mais, a expressão viva das aspirações dos oprimidos e a arma para a denuncia da injustiça e crueldade colonial. Um exemplo a seguir pelo simbolismo que representa e pela multiplicidade de acções que desenvolveu.

 

Em 1956, fundaram-se, nos arredores de Luanda, em Angola, vários movimentos patrióticos para formar o MPLA. A 4 de Fevereiro de 1961, as prisões de Luanda foram assaltadas por homens munidos de catanas e armas de fogo. Algumas das quais capturadas em acções anteriores. Mesmo sem lograrem os intentos, estava lançada a primeira salva da luta armada que se alastraria pelo solo angolano. A resposta dos portugueses foi cruel. Bombardearam aldeias e milhares irmãos angolanos sucumbiram aos métodos mais horrendos do colonialismo.

 

Em 1962, sai, de forma clandestina, de Portugal e se estabelece em Léopoldville, Kinshasa, onde o MPLA tinha já a sua sede. O primeiro congresso do MPLA elegeu Ilídio Tomé Alves Machado como seu primeiro presidente, permanecendo em funções até ser preso, em 1959. Foi substituído pelo secretário-geral, Mário Pinto de Andrade, que exerceu o cargo entre 1959 e 1960. Em 1963 foi declarado Presidente do MPLA, substituindo Mário Pinto de Andrade. No interior de Angola, outros movimentos libertadores faziam já a sua luta, a UNITA, de Jonas Savimbi e o FNLA, de Holden Roberto.

 

Ao poeta António Agostinho Neto foi-lhe atribuído, em 1970, o prémio Lótus, pela Conferência dos Escritores Afro-asiáticos. Publicou vários livros cujo substrato e pendor exaltavam o sonhar e lutar pela independência. Ainda hoje, guardo um dos seus poemas, a bom rigor, dos meus substratos favoritos. Este poema foi musicado por Rui Mingas. Minha Mãe/tu me ensinaste a esperar/como esperaste paciente nas horas difíceis/mas a vida matou em mim essa mística esperança/eu não espero/sou aquele por quem se espera. Agostinho Neto revelava e recorria a metáfora da Mãe, como representação da pátria e como o centro de toda a sua narrativa. 

 

Tive o ensejo e prazer de ler um texto escrito por Beto Van-Danem, enquanto encerrava minhas memórias sobre António Agostinho Neto. O autor recorda episódios pitorescos que mostravam a grandeza e personalidade de Agostinho Neto. Era existente e transparente. Só isso permitiu que se mantivesse leal a uma gestão digna, criteriosa, rigorosa e exemplar. Ele entendeu a liderança partidária como uma forma de servir ao povo e não de se servir do Estado. “O Neto era um homem honesto, não vivia deste país e é por isso que morreu pobre”, comenta Van Dunem. Saudades desse tempo e da justeza do movimento pós-colonial.

 

Ninguém ousou jamais questionar, ao longo dos anos, sobre a possibilidade de Agostinho Neto ter deixado contas no estrangeiro. Elas simplesmente nunca existiram. Neto morreu com a roupa que tinha no corpo. Não tinha dinheiro, concluiu Van Dunem. Era, convenhamos, um Machel numa versão Atlântica.

 

Neto partiu quatro anos depois de ter sido proclamado Presidente. Para trás, uma única mancha que pode ter marcado seu brilho: 27 de Maio de 1977. A forma como os revolucionários responderam a um movimento interno e uma alegada tentativa de golpe de Estado. Angola já se retractou, mas as mágoas ficaram muito para além do por do sol. Aqui estão os 100 anos de uma vida plena e tumultuada, uma poesia profética, porém, verdadeiramente, instigante.

 

António Agostinho Neto e seus camaradas e amigos de sempre, Amílcar Cabral, Lúcio Lara, Eduardo Mondlane, Samora Machel, Marcelino dos Santos, Orlando Albuquerque, Ilídio Tomé Alves Machado e tantos outros, incluindo Jonas Savimbi, já tiveram tempo de prestar as contas a divindade e recebem as últimas notícias de José Eduardo dos Santos. Os tempos são adversos onde a revolução e os revolucionários perderam a centralidade e os novos ventos aniquilam os anseios de outrora. Os líderes revolucionários, parafraseando Machel, nunca morrem, porque ganham o tamanho e estatuto de um povo. Povo nunca morre. (X)

terça-feira, 27 setembro 2022 18:49

O caso do touro do velho Mathe

MoisesMabundaNova3333

Os madodas da aldeia estavam, então, todos ali reunidos. Todos os 18 homens de idades acima dos sessenta anos da aldeia de Nwamati encontravam-se naquele momento ali embaixo daquela colossal sombra da mafurreira, sentados em cima de troncos de árvore grandes feitos bancos desde tempos imemoriais. Aquela era a terceira tarde, desde quarta-feira. As audiências, como dizemos hoje, eram somente nas tardes, das 14:30 para baixo, até não mais de 17:30 horas.

 

Consta que o  velho Nwamati lidera a comunidade há mais de três gerações, tendo o exercício da soberania começado com o seu avô e depois passado para o pai e agora era ele, um homem agora na casa dos 75 anos, estatura mediana, mas com uma vitalidade de espantar.Consta que o  velho Nwamati lidera a comunidade há mais de três gerações, tendo o exercício da soberania começado com o seu avô e depois passado para o pai e agora era ele, um homem agora na casa dos 75 anos, estatura mediana, mas com uma vitalidade de espantar.

 

A bandla lembrava as nossas salas de reunião em forma circular, com o líder no meio. No caso, era uma semi-circular. A cadeira feita essencialmente de paus, mas muito cômoda, do líder constituía o epicentro do semicírculo. De um e de outro lado, eram os bancos de troncos grandes que estavam prostradas no chão, sem precisar de pés ou de bases. Mas sentava-se comodamente e durante horas e horas! Mas o local não servia apenas para a resolução de problemas, mas também para outras cerimônias, como a de ukanhi, e convívios diversos.

 

Pois ali estavam os 18 madodas convocados de forma urgente na tarde quase noite de terça-feira pelo líder Nwamati para dirimir “um problema muito grave e urgente” do recentemente tornado criador de gado bovino Mudaukani na zona. Aliás, diga-se que os 18 velhos ali presentes eram na sua maioria criadores ou de gado bovino, ou de caprino e ovino, ou dos três tipos ao mesmo tempo; ou grandes agricultores, ou detinham outro tipo de influências. Eram, em suma, os mais influentes da região. Incluindo o velho Mathe, na casa dos 70 anos, cinco mulheres, neste caso o réu, na nossa linguagem jurídica portuguesa. Pelo que todos tinham experiência bastante de questões relacionadas com gado, agricultura, problemas sociais, etc. Aliás, alguém só se torna doda se socialmente for influente; caso contrário, mesmo que tenha 90 anos, não é considerado e não entra no clube dos dirimidores de problemas!Pois ali estavam os 18 madodas convocados de forma urgente na tarde quase noite de terça-feira pelo líder Nwamati para dirimir “um problema muito grave e urgente” do recentemente tornado criador de gado bovino Mudaukani na zona. Aliás, diga-se que os 18 velhos ali presentes eram na sua maioria criadores ou de gado bovino, ou de caprino e ovino, ou dos três tipos ao mesmo tempo; ou grandes agricultores, ou detinham outro tipo de influências. Eram, em suma, os mais influentes da região. Incluindo o velho Mathe, na casa dos 70 anos, cinco mulheres, neste caso o réu, na nossa linguagem jurídica portuguesa. Pelo que todos tinham experiência bastante de questões relacionadas com gado, agricultura, problemas sociais, etc. Aliás, alguém só se torna doda se socialmente for influente; caso contrário, mesmo que tenha 90 anos, não é considerado e não entra no clube dos dirimidores de problemas!

 

Mudaukani acabava de ascender ao clube de criadores de gado bovino na zona de Nwamati, graças às já doze cabeças que o filho, a trabalhar nas minas sul-africanas, tinha conseguido comprar com o dinheiro ganho no trabalho nas minas de Tembisa e deixado na guarida dele faziam quatro anos, numa das suas vindas de livi (licença para férias aos mineiros). Começou com sete cabeças e foram crescendo até àquele número. A partir de então, Mudaukani já pertencia ao clube dos verdadeiros madodas. É que, para ser madoda, tinha que ser criador de verdade, ter por aí gado que ascendia a 15, 20 cabeças por um considerável período de tempo e ter, pelo menos, três esposas. Mudaukani acabava de ascender ao clube de criadores de gado bovino na zona de Nwamati, graças às já doze cabeças que o filho, a trabalhar nas minas sul-africanas, tinha conseguido comprar com o dinheiro ganho no trabalho nas minas de Tembisa e deixado na guarida dele faziam quatro anos, numa das suas vindas de livi (licença para férias aos mineiros). Começou com sete cabeças e foram crescendo até àquele número. A partir de então, Mudaukani já pertencia ao clube dos verdadeiros madodas. É que, para ser madoda, tinha que ser criador de verdade, ter por aí gado que ascendia a 15, 20 cabeças por um considerável período de tempo e ter, pelo menos, três esposas.

 

Num belo dia, a pequena manada de Mudaukani foi calhar com a do velho Mathe no rio a beberem água. Mathe tinha mais de 20 cabeças, entre vacas, touros, novilhos e vitelos. Até hoje, nenhum criador revela o verdadeiro número das cabeças que possui. E eis que o touro principal da manada do velho Mathe ataca uma das vacas da manada de Mudaukani. E aí começou a guerra… mundial! O principal touro entra em guerra com o também principal touro da manada do velho Mathe! A guerra foi total e… sem tréguas! A luta foi titânica e nisso o touro do Mathe atinge a perna direita frontal do touro de Mudaukani e parte-a!… e o touro ficou estatelado no rio até…hoje!Num belo dia, a pequena manada de Mudaukani foi calhar com a do velho Mathe no rio a beberem água. Mathe tinha mais de 20 cabeças, entre vacas, touros, novilhos e vitelos. Até hoje, nenhum criador revela o verdadeiro número das cabeças que possui. E eis que o touro principal da manada do velho Mathe ataca uma das vacas da manada de Mudaukani. E aí começou a guerra… mundial! O principal touro entra em guerra com o também principal touro da manada do velho Mathe! A guerra foi total e… sem tréguas! A luta foi titânica e nisso o touro do Mathe atinge a perna direita frontal do touro de Mudaukani e parte-a!… e o touro ficou estatelado no rio até…hoje!

 

Mudaukani, sentindo-se, bastante ofendido, com incalculáveis prejuízos causados, foi apresentar queixa ao líder Nwamati e exigir que o velho Mathe lhe compense o grande dano com outro touro!Mudaukani, sentindo-se, bastante ofendido, com incalculáveis prejuízos causados, foi apresentar queixa ao líder Nwamati e exigir que o velho Mathe lhe compense o grande dano com outro touro!

 

A assembleia dos madodas ali estava a dirimir o problema, já indo na terceira audiência. A assembleia dos madodas ali estava a dirimir o problema, já indo na terceira audiência.

 

O líder ouviu a apresentação da queixa e entregou o caso ao que hoje chamamos plenário! As opiniões dividiram-se. Umas, considerando que o touro do velho Mathe era culpado e, portanto, havia espaço de o touro ferido ser reposto; outras, a considerarem que os pastores são culpados por terem levado as manadas a irem beber água ao mesmo tempo e que portanto deviam ser responsabilizados; e outras ainda a considerarem que o incidente tinha sido fortuito e que não havia nada a fazer. O líder ouviu a apresentação da queixa e entregou o caso ao que hoje chamamos plenário! As opiniões dividiram-se. Umas, considerando que o touro do velho Mathe era culpado e, portanto, havia espaço de o touro ferido ser reposto; outras, a considerarem que os pastores são culpados por terem levado as manadas a irem beber água ao mesmo tempo e que portanto deviam ser responsabilizados; e outras ainda a considerarem que o incidente tinha sido fortuito e que não havia nada a fazer.

 

Aquele era a terceira tarde do que hoje chamaríamos de julgamento do “caso do touro do Mathe”! E a exortação do líder era que naquele dia tinha que sair dali uma decisão, tipo sentença!, pois o caso estava a arrastar-se por muito tempo e havia que se decidir sobre o que fazer com o touro estatelado perto do rio. O ambiente, ainda que houvesse posições divergentes, era calmo e sereno. Próprio de pessoas bem maduras e socialmente responsáveis. Nisso, o velho Nwamati lembra-se de que durante esses três dias de audiência não concedera palavra ao acusado, o velho Mathe!… uma omissão bastante grave, inconcebível e inaceitável! E concede-lha.Aquele era a terceira tarde do que hoje chamaríamos de julgamento do “caso do touro do Mathe”! E a exortação do líder era que naquele dia tinha que sair dali uma decisão, tipo sentença!, pois o caso estava a arrastar-se por muito tempo e havia que se decidir sobre o que fazer com o touro estatelado perto do rio. O ambiente, ainda que houvesse posições divergentes, era calmo e sereno. Próprio de pessoas bem maduras e socialmente responsáveis. Nisso, o velho Nwamati lembra-se de que durante esses três dias de audiência não concedera palavra ao acusado, o velho Mathe!… uma omissão bastante grave, inconcebível e inaceitável! E concede-lha.

 

Calmo, ponderado, com uma fala bastante pausada, o velho Mathe muito não disse senão que “para uma sentença justa e racional devíamos saber porquê os touros lutaram, pelo que devíamos a eles perguntar e daí fazermos o juízo final…”Calmo, ponderado, com uma fala bastante pausada, o velho Mathe muito não disse senão que “para uma sentença justa e racional devíamos saber porquê os touros lutaram, pelo que devíamos a eles perguntar e daí fazermos o juízo final…”

 

O julgamento terminou.O julgamento terminou.

 

ME Mabunda

terça-feira, 20 setembro 2022 09:17

Chico António... outra vez em Inhambane

AlexandreChauqueNova

Já ninguém pergunta, “quem é aquele velho com cabelos de prata?” Ele próprio, o Chico, descomplexou-se. Também já não pergunta,”onde é que fica o mercado?”. Caminha pelas ruas pacatas da cidade como se fosse daqui. Saúda as pessoas em bitonga, língua que nunca antes sonhara, nem os seus antepassados. E para decifrar todas as parábolas, agora fala em voz baixa, aos poucos amigos, que a sua vontade é ficar aqui. Eternamente.

 

Está sempre cá. Volta e meia vai, depois torna a voltar, como as águas do mar, que enchem e vazam num ciclo interminável. Mas a “Terra da boa gente”, lugar escolhido pelo “Estúdio Bom dia” para a comemoração do 25 de Setembro, dia das Forças Armadas de Moçambique (FADM), parece ser o último lugar do autor de “Sineta”, um tema musical suave e profundo, que só chegou para exaltar o amor e a lealdade. É por isso que Chico estará cá, outra vez, como sempre.

 

Desta vez não vem sòzinho. O “Estúdio Bom dia” enloqueceu. Traz uma panóplia de grandes músicos que virão juntar-se aos daqui e fazerem uma festa imprevisível em termos de emoções. Tudo indica que haverá um derramento. Do próprio coração. Há uma grande espectativa, até porque reside neste movimento o desconhecido. Há bandas e músicos que o povo daqui nunca viu tocar, então será uma oportunidade para experimentar outros sentimentos.

 

Inhambane tem sede permanente destes eventos, e ainda bem que o Centro Cultural Machavenga, escancarado para um lago com esse nome (Machavenga), existe. Como forma de dar oportunidade a outras sensibilidades. É uma outra maneira, a criação deste lugar projectado por Filimone Mabjaia, de desmentir que o turismo na cidade de Inhambane são só as praias. A lagoa de Machavenga tem esse condão. De aglutinar as metáforas e torná-las reais.

 

Chico António anda em Inhambane há aproximadamente dois anos. Trouceram-no a estas terras para um projecto que está sendo cumprido sem pressa, ou seja, foi levado aos estúdios “Bom dia” para gravar um disco que irá sair a seu devido tempo, quando estiver maduro. É assim que, desde o primeiro dia,  tem feito um Up and down (Maputo-Inhambane), num processo que vai entranhando os temperos do CD, sob direcção de Roland, um austríaco com tendências profundas de rock-blues, mas que as circunstâncias da vida e da música levaram-no a trabalhar noutras coisas. E tem feito isso com pragmatisco.

 

É isso: Chico tem sempre uma luz fora do túnel, é por isso que jamais desvaneceu. Desde que entrou para a estrada, nunca parou de andar. “Tenho tropeçado muitas vezes, mas não aceito ser vencido, embora venha perdendo muitas batalhas. E para te mostrar a minha fé e teimosia, estou aqui de novo, para celebrar o 25 de Sertembro com os manhambanas. Isso significa que estou vivo”. E para mostrar essa vitalidade, esteve a pouco tempo na homenagem ao Guita Jr e Momed Cadir. No Centro Cultural Machavenga.

 

Agora só nos resta esperar. Por mais um banho de música ao vivo, nos dias 24 e 25 de Setembro. Com Chico António e outros grandes músicos como, Stewart Sukuma, Banda Hodi, Solly Not Solly, Mahu Mucamisa, Granmah, Afro Michael, Skhem Khem, Juliana de Sousa, Afro Moments,, Banda Elia, Ubanthu Wathu, Ivo Maia, Timbila Groove e Banda Nandza, Silvino e Banda Aventuras, João Marrima, Mozquito, Sixtogale, Vintani Nafassi, e muitas surpresas.

terça-feira, 20 setembro 2022 07:50

O décimo segundo Congresso da Frelimo

Moçambique e o Mundo vão testemunhar a partir da próxima sexta-feira e até quarta-feira da próxima semana o décimo segundo Congresso da Frelimo, o partido que governa Moçambique desde o distante ano de 1975. Com todas as peripécias e vicissitudes - qual é o país ou nação que não as contém? -, Moçambique mantém-se, desde a proclamação da sua independência, firme, uno e um Estado que vai granjeando respeito pelo mundo: hoje é membro não permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas!

 

Só o facto de o partido estar a governar o país desde 1976 é mais do que suficiente para que o evento que vai de 23 a 28 de Setembro de 2022 não passe despercebido, muito menos ignorado ou secundarizado, ou não se lhe conferir a devida e merecida importância e destaque.

 

Vale recordar também que a Frelimo, a Frente de Libertação de Moçambique, foi o movimento que libertou o país do longo manto do colonialismo português; criou os alicerces para o surgimento da nossa identidade, para o nascimento da Nação Moçambicana, a nossa nacionalidade.

 

Por tudo isto - e por outras coisas mais -, um congresso da Frelimo é algo que merece a atenção do Mundo. E sendo algo que merece a atenção do mundo, há espaço para considerações. Há pano para manga, como dizem os bons falantes.

 

O país está com muitos desafios. Uns, como o terrorismo, novos; outros, nem tanto assim: a pobreza, o subdesenvolvimento, o défice de infraestruturas, fraco crescimento e desenvolvimento econômico, governação deficiente ou má (poor governance) corrupção, entre outros!

 

A questão da unidade nacional, que fez da Frelimo ser Frelimo, continua um dos primeiros grandes desafios: actual, imperioso e inadiável. A formação da Frelimo traduziu a visão comum da imperiosidade da unidade nacional no e do nosso país. Foi uma espécie de convenção nacional sobre a ideia de que Moçambique seria mais soberbo se fosse unido, coeso e indivisível do Rovuma ao Maputo e do Zumbo ao Índico. Este desafio não tem sido fácil, desde os primórdios da formação do movimento libertador. Sabemos que houve guerrilheiros que não o assumiram e se recusavam a ir combater em províncias que não fossem as suas, esperando que a luta armada de libertação nacional chegasse às suas zonas de origem. Ao longo destes 47 anos da nossa independência, laivos de tribalismo e nepotismo têm muitos registos em todos os níveis e instituições e em diferentes regiões da nossa pátria. Os frescos e robustos pronunciamentos dos Generais Chipande e Nihia são os mais eloquentes e ruidosos testemunhos de que o consenso sobre a unidade nacional que esteve por trás da fundação da Frelimo ainda está por alcançar e consolidar.

 

Um outro grande desafio que o país enfrenta tem a ver com a “paz dos espíritos”. Não reina entre nós paz espiritual. Não estamos reconciliados conosco mesmos. As guerras que tivemos dividiram-nos profundamente, mas sobretudo a dos 16 anos. Está difícil assumirmo-nos como verdadeiros irmãos moçambicanos. Os ressentimentos teimam em marcar presença nas nossas atitudes e condutas quotidianas. Continuamos a encararmo-nos como estando a ser usados por forças estranhas e estrangeiras ao nosso país. Daí a democracia efectiva estar a patinar. Enquanto não estivermos em paz espiritual, reconciliados conosco mesmo, dificilmente praticaremos democracia verdadeira, ou algo aproximado; descentralização e inclusão continuarão meros temas de dissertações como o são agora.

 

Não menor, nem menos importante, está o desafio de desenvolvimento do nosso país. Pouco depois da conquista da nossa independência, apostamos em vencer o subdesenvolvimento em dez anos. 47 anos depois, o desenvolvimento, traduzido em bem estar dos moçambicanos em todos os cantos do país, ainda enfrenta muitos obstáculos, continua aposta. As nossas políticas e estratégias de desenvolvimento ainda precisam de ser aprimoradas, precisam de ser mais racionais, racionalizadas e consistentes. Ainda não entendemos que sem vias de acesso funcionais, infraestruturas de qualidade e políticas e estratégias menos amadoras, dificilmente a nossa economia irá florescer; continuamos a saltar de elefante branco em elefante branco, de acessório em acessório e nisso adiamos cada vez mais o sonho do país que libertamos com sacrifício.

 

Por último, mas não porque esgotados os desafios que sonecam à nossa frente, temos a qualidade de governação e a corrupção. A nossa governação ainda continua algo aquém do ideal, do profissional, do irrepreensível. Muitas escolhas, não poucas vezes, reúnem pouco consenso e pouco respeito porque despidas de autoridade e legitimidade profissional, ética e moral; técnica e qualitativamente deixam muito a desejar. Está-nos difícil perceber e executar a velha máxima, segundo a qual, pessoa certa no lugar certo. Tribalismo, nepotismo e amiguismo continuam critérios que enformam muitas escolhas. A corrupção é cada vez mais cristalina. Até “polícias que não têm criação nenhuma fazem xitiqui de cinco mil meticais por semana” à vista de toda a gente que devia estancar e combater. E o seu combate continua algo simulacro.

 

De sorte que, por mais que a Frelimo faça “n” congressos, comitês centrais ou outras reuniões que tais, se não atacar de frente fundamentalmente estes problemas, essas reuniões serão mais do mesmo! Se não for eclética como raramente tem sido, dificilmente o nosso barco transportando o bem estar para os compatriotas será célere!

 

De toda a forma, muito bom congresso aos Camaradas!

 

ME Mabunda

segunda-feira, 19 setembro 2022 06:45

Da aceitação à Negação - Uma mão cheia de nada

Muitos dos que nasceram no período da independência e nos anos a seguir, viveram uma atmosfera político-social de elevada êxtase e expectativas sobre como seriam os anos sem o jugo colonial. Foram anos de muito nacionalismo e de forte exaltação aos ideias pan-africanos em grande escala e, da negritude em menor escala.

 

Essa geração foi ensinada a pensar dentro de um quadro político-social de muita desconfiança e de algum medo: primeiro devido aos focos emergentes do neo-colonialismo e neo-imperialismo e, depois pelos movimentos armados que reivindicavam a suposta parcela do manjar pós-independência.

 

Durante muitos anos, um pouco por todo continente africano, com enfoque à Africa Austral, os partidos libertadores cimentaram sua hegemonia com recurso a narrativas, discursos e alusão a momentos históricos de difícil digestão. Essas narrativas alimentaram vários processos e várias etapas de construção de um pensamento unitário. Todavia, alguns desses partidos “esqueceram-se” de se actualizar e se de adaptar ao contexto quer em forma acções governativas ajustadas, quer em respostas mais cabais às crescentes demandas do povo. O descontentamento e o repudio à forma como os destinos de alguns países estava a ser conduzido, abriu espaço para uma nova franja crítica, seja vinda da sociedade civil, quer de partidos políticos da oposição.

 

Com o andar do tempo e com a natural evolução social e política, a narrativa dos partidos chamados libertadores, que era facilmente aceite de ânimo leve pelas chamadas massas foi se corroendo (por causas naturais e também por falta de actualidade). Essa gradual corrosão enfraqueceu internamente o tecido político-partidário e foi gerando pequenas alas e fissuras internas. 

 

A história, com seu sentido didáctico, foi testemunhou para além da conquista, exercício e sedimentação do poder por um lado, a fragilização e queda dos ditos históricos por outro lado – Novos actores políticos emergiram, e com eles, novas narrativas e novas formas de ver a governação dos países.

 

A rotatividade política em muitos países da região foi se fazendo real, numa clara amostra de cansaço e apelo a algo diferente e novo. Alguns dos países que a experimentaram perceberam que a mudança que tanto se temia, tem suas nuances e, pois, abrem espaço para formas de ser e estar na política – o rendez-vous politique.

 

As narrativas depreciativas contra os partidos da oposição, e contra as organizações da sociedade civil que a história os colocou no lado erróneo e baptizou como partidos e movimentos sanguinários, inimigos do progresso e da independência, começaram a diluir-se paulatinamente em alguns quadrantes. Tal dissolução deveu-se muito pouco a forca da oposição que foi se instruindo melhor, e muito a forma como muitos governos foram tratando o seu povo. Dito de outra forma, e com outras palavras, a oposição não precisou de muita engenhoca tampouco de estaleca para o despertar social. Os actos e acções dos partidos no poder foram paulatinamente levando muitos deles ao abismo.

 

Novas formas de reflectir a história, de pensar criticamente a sociedade, a politica e a governação ganharam notoriedade e relevo. E com essas formas, veio a dúvida sobre o presente e a incerteza sobre o futuro.

 

O advento das redes sociais foi um marco importantíssimo nesta viragem de paradigma, no processo de informação e desinformação. Foi também um momento em que o uso da tecnologia possibilitou o registo, a partilha e o consumo em tempo real. A monitoria de processos eleitorais, das acções político-governativas e de toda forma de manifestação socio-política e até cultural, fez ganhar outra dinâmica na forma de participação e influencia. Quase todos com acesso a informação, podiam a partir deste instante ser agentes de mudança.

 

Neste momento de maior questionamento, a sociedade vira um avaliador factual da acção governativa, e não se prostra de tecer opiniões escritas ou orais que fazem toda diferença na construção do estado pluralista em que as ideias contrárias valem e tem lugar. Há um salto qualitativo nas relações de intervenção social – do simples instrumento político-eleitoral, o povo passa a um agente activo, impulsionador e motriz da mudança social. O seu papel é cada vez mais apreciado por uns e combatido por outros, porque o despertar de consciência pode também significar mau pressagio para quem não esteja disposto a permitir a rotatividade.

 

A aceitação foi dando lugar a negação. As diferentes forças políticas, e das organizações da sociedade civil com melhor estrutura e liderança, com ideias mais claras e mais ou menos elaboradas e uma agenda muitas vezes alvo de questionamentos, ganham relevo e convidam o povo a uma introspeção e reflexão mais assaz sobre a independência e o pós-independência (seus ganhos e perdas). A luta da oposição não é mais para conquistar mais assentos no parlamento e na assembleia nacional, mas sim pelo assalto ao poder.

 

Muitos dos países desta parcela do continente negro, caminham para a celebração do jubileu dos 50 anos da conquista das tão almejadas independências. Nesses quase 50 anos experimentaram transições, reajustes e reformas impostas pelo Ocidente - Tais reformas ditaram a realidade de muitos países. Experimentaram igualmente o aparecimento e ocorrência recursos naturais. Alguns países, incluindo Moçambique foram bafejados por recursos naturais que se adivinhavam bênçãos, mas que aos poucos, em alguns quadrantes tem se revelado autêntica maldição (o Resource Curse).

 

A falta de transparência, responsabilização, o enfraquecimento institucional, a captura do estado pelas elites economicamente fortes, a fraca vontade e capacidade politica, a crescente desconstrução das ideias basilares e fundacionais do estado, dos ideais Pan-africanos de Nkrumah e Senghor, bem como a constante ingerência nos processos nacionais, entre outras causas abriram um buraco que se foi transformando numa cratera social, económica e politica – A corrupção instalou-se, e a cultura de pedinte se afirmou como uma cultura dos estados africanos.

 

Recentemente, viveu-se em Angola um cenário que ilustra como a aceitação foi se transformando em negação, e como a atmosfera eleitoral e pós-eleitoral foi um medidor do cansaço do povo que anseia mudanças estruturais. O cenário ali vivido, faz-nos ler com outras lentes a relação entre os ciclos governativos, a coesão dos partidos políticos, a militância de ocasião e de estomago e, acima de tudo, sobre o poder outrora oculto das massas – um poder que foi negado, mas que a realidade mostra que não há tamanha peneira para tão forte sol.

 

Hoje, uma sociedade angolana ociosa pela mudança clama pela justiça eleitoral, pela validação do seu direito exercido nas urnas. Uma sociedade dividida entre o amor pelo MPLA e pela esperança pela UNITA. Sociedade que deu uma aula de associativismo, sobre como valorizar o sufrágio e como mostrar ao poder do dia que não há nada mais forte que o povo – pode tardar, mas sempre acorda da sua longa noite escura.

 

Esta em causa muito mais que uma eleição. Esta em causa a provável queda de um partido histórico em África e no mundo, e a ascensão de um partido tido como o vilão da história recente de Angola.

 

Esta em causa uma jogatana que não se revelou ainda aos olhos dos menos sagazes analistas – a jogatana do petróleo, dos diamantes. Esta em causa a soberania do povo Angolano. Por isso, escrevo – Uma mão cheia de nada.

 

Por: Helio Guiliche (Filosofo)

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