Há dias re-assistia ao informativo filme "Barry Seal: Traficante Americano" que relata como um piloto norte-americano nos anos de 1980 trabalhou com o narcotraficante colombiano Pablo Escobar e com a CIA, levando para alguns países da América latina armamentos diversos para pés descalços, viciados de coca e bêbados que repentinamente comandavam guerrilhas violentas e sem objectivos claros para os integrantes do grupo, mas bem delineados pelos gringos. O papel do piloto é interpretado pelo galáctico da sétima arte hollywoodiana Tom Cruise, principalmente através da saga Missão Impossível.
Sucede que, enquanto acompanhava atentamente a saga acima mencionada no portátil, eis que uma peça de reportagem chama a minha atenção: "Junta Militar da Renamo elege novo líder". Atento e sem pestanejar, lá estava eu, acompanhando o palavreado do brigadeiro incumbido de dar a "boa nova" aos moçambicanos habituados a serem sacrificados sempre que um ciclo eleitoral se aproxima – ali pensei que alguém quer desculpas e renovação do discurso de paz para enriquecer o manifesto!
Na ocasião, o outro lado da minha mente dizia que podia ser mesmo que os homens humilhados no "papo do DDR" tenham sido informados que não teriam nunca na sua mesa alguns vinhos que os chefes consumiam em Maputo, Beira e Nampula e, a partir daí, decidiram resgatar a sinuosa e confusa missão de Mariano Nhongo - pensam em instalar o pânico na zona centro do país.
No outro momento, imaginei até que podem ser alguns mancebos que já estiveram em campos de combate e lá aprenderam que o negócio da guerra é super lucrativo, apesar dos riscos, ou seja, se resistires até podes forçar um acordo de paz, exigires patentes de coronel ou general sem ter combatido e nem disparar uma Makarov, com subsídios chorudos e regalias, e ainda ser visto como herói pelos seus correligionários depois de terem saqueado celeiros de camponeses indefesos e atirados para a pobreza.
Com a informação pipocando a minha mente, imaginei até que se poderia tratar de grupos de moçambicanos que diariamente são despedidos dos seus postos de trabalho e quando verificam suas contas bancárias, percebem que durante toda a sua vida apenas estiveram a acumular roupa rota e problemas de saúde. Entretanto, após estas todas viagens reflexivas, lembrei-me de uma longa conversa com um importante quadro das nossas Forças Armadas, que me disse que o DDR estava rodeado de mistérios e falsas máscaras, no estilo dos militantes de um partido que são transportados de um lugar para outro para encher os comícios de um determinado dirigente partidário.
Sem papas na língua, o patriota defendeu na altura que, por viveremos num país do "faz de conta", onde se procura culpa para tudo e para justificar o injustificável, logo, não seria surpresa que a escassos meses do início do show dos partidos políticos alguém quisesse influenciar as manchetes do Jornal, para que as sujidades governamentais que de quinquénio em quinquénio começam a explodir não tivessem tanto espaço, como o ataque a um autocarro transportando civis ou hospital vandalizado.
A guerra é uma mina de diamantes que alimenta o ego de grupos subversivos e corruptos, que vêem a morte e o sofrimento de inocentes como um negócio lucrativo e sem fiscalização. Por isso, sempre existirão novos Nhongos para causas justas e injustas, dado o rumo das coisas na Pérola do Índico. Podem surgir guerrilheiros como os criados pela CIA em Nicarágua, nos anos 80, para derrubar o governo no poder e que actuavam em conluio com os grandes grupos do narcotráfico da Colômbia, Bolívia, México e Estados Unidos da América (EUA), mas que serão grupos para ganhar eleições e dar agenda de trabalho aos políticos.
A verdade é que se continuarmos a viver num país sem uma agenda de desenvolvimento social e económica justa e comum a médio e longo prazo, as pessoas que se beneficiam destes actos, seja política ou economicamente, poderão continuar a saga de criação de novos "Marianos Nhongos" para instalar o caos e criar novos falsos heróis da paz e mais um acordo definitivo sem conteúdo – e uma lista longa de assassinatos protagonizados por homens com licença e carta branca para matar – os esquadrões da morte! Ainda pensando (…)!!!
Agora que descobriu o silêncio da minha casa, não quer sair mais daqui, vem todos dias. É como se este espaço fosse dela também. Thsala Mahenhane diz que o meu quintal, vedado de plantas, sem muro de pedra, é uma galeria, ao mesmo tempo um atelier. Se estes pássaros todos, chegam e poisam e cantam e fazem sexo em liberdade, “porquê que eu também não posso gozar a liberdade neste lugar?”.
Thsala gosta de beber, “as pessoas dizem que sou uma pipa, mas tu nunca me disseste isso”. Na verdade jamais a considerei pipa alguma. Respeito-a, até porque cada um de nós tem o direito de traçar os limites dos seus passos, mesmo que seja em desobediência ao Deus de Jacob e de David e de Abrahama. E esta mulher quer cantar, depois de um copo. Então, quem convoca a música nestas circunstâncias, tem o coração que passa a vida a repetir versos de amor.
A nossa relação começou num dia inesperado. Num dia como os outros, com o tempo a tomar conta de mim, dando-me alfazemas e orquídeas. De graça. Sentia uma paz extraordinária dentro de mim, sem saber o que isso significava, até à altura em que uma mulher entra de rompante, visivelmente aflita e diz: “desculpa, peço casa de banho”.
Passado um tempo considerável, comecei a achar estranho que a “minha hóspede” não estivesse despachada, então resolvi abeirar-me da porta da “toilett”.
- Está tudo bem com a senhora?
- Desculpa, tenho uma preocupação, mas só posso apresentá-la à uma mulher.
- Está certo, espere só um minuto.
Fui a correr a uma farmácia que fica aqui perto e, passado pouco tempo, trouxe uma embalagem de pensos higiénicos. Fui de novo à porta da casa de banho e introduzi a mão.
- Isto resolve o problema?
- Muito obrigada.
Voltei à minha varanda sem preocupação, feliz por ter ajudado uma desconhecida. Porém, o mais surpreendente é que eu nunca havia comprado pensos higiénicos em toda a minha vida, nem para as minhas ex-esposas, mas a vida é essa caixinha de surpresas!
- Peço imensas desculpas, ao mesmo tempo que agradeço ao senhor pela compreensão. Eu não devia ter feito isto. Desculpa.
- Você não fez nada demais, e, por favor, não me trate por senhor, pode me chamar Bitonga Blu.
- Obrigada, eu chamo-me Thsala. Thsala Mahenhane.
A mulher estava aliviada. Mais do que isso, apaixonada pelo meu espaço.
- Este lugar é tão lindo!
Lançou o olhar por todo o perímetro da casa, e parecia completamente conquistada. Viu a minha guitarra, em repouso num dos cantos da varanda, e perguntou se eu era músico.
- Não sou propriamente um músico, toco algumas coisas. Gosto de cantar.
- Eu também gosto de cantar.
Pediu-me que a acompanhasse no tema da Mingas, Mweti, e o que veio depois, a partir daí, foi a paródia em si, a loucura. Já tinhamos uma garrafa de Gin Gordon à mesa, a alimentar as metáforas, sem que eu soubesse que a presença desta mulher que aparece na minha casa em período menstrual, vinha mudar a minha forma de estar. Ela não mudou meu caminho, mas mudou a mim.
No início das conversações do desfecho da II Guerra Mundial (1939-1945), o líder soviético, Joseph Stalin, respondendo ao líder americano, Franklin Roosevelt, quanto ao futuro da Alemanha, perguntara “Alemanha? Qual Alemanha?”, pois, para ele, a Alemanha do final da guerra era apenas uma noção geográfica.
No final, e para o bem das conversações, as partes acordaram que seria a Alemanha do dia anterior à data do início da II Guerra Mundial (data da invasão alemã à Polónia).
E se a mesma pergunta de Stalin tivesse que ser feita nas conversações sobre o futuro da Ucrânia pós-guerra da invasão russa?
No mínimo, seguramente que Vladimir Putin, presidente russo, responderia a Joe Biden, presidente americano, de que se trata da Ucrânia do dia anterior à sua invasão (a dita operação especial militar): sem o domínio da Crimeia (sob controle da Rússia desde 2014) e também das duas repúblicas separatistas, ora autoproclamadas independentes e reconhecidas pela própria Rússia nas vésperas da invasão.
Por outro lado, é certeiro que os aliados ocidentais da Ucrânia, concretamente os Estados Unidos da América e a União Europeia, respondessem de que seria a Ucrânia desde o dia da sua independência em 1991.
De toda a maneira, e seja qual for o entendimento de cada uma das partes, será por aqui - de que Ucrânia se trata – que Putin, durante as conversações sobre o futuro da Ucrânia no pós-guerra de invasão russa, empreenderá a sua última batalha por Kiev (capital ucraniana).
E até que se chegue a fase destas conversações é expectável (conjecturo) que o historiador que inspira as aspirações de Putin lembre a este que para o consenso entre Stalin e Roosevelt, fora determinante a clareza sobre quem invadira a soberania de outros.
Passa um ano que uma das mentes hodiernas das artes, letras e caneta calou fisicamente para sempre, deixando para trás um eterno vazio no seio dos moçambicanos. Juma Aiuba foi jornalista, activista e cronista cuja escrita e voz ainda penetram pelas nossas consciências, clamando por um texto seu face aos diversos fenómenos sociais que ultimamente assolam a Pérola do Índico. Com seu estilo humorístico e iluminante, deixou-nos no dia 24 de Fevereiro de 2021, instalando para sempre um enorme vazio nesta sociedade carente de mentes iluminadas e íntegras.
Há dias, acompanhava a audiência do ex-presidente da República, Armando Guebuza, e atentamente ia anotando as suas declarações e a dado momento parei e comecei a folhear o livro Co’ licença, tendo chegado à conclusão que estamos diante de um profeta que muitos não percebiam. Na rápida releitura do livro, dois textos chamaram-me atenção: "o calote da dívida": afinal, este filme tem ou não o "Chefe dos Bandidos"? e o texto o "boato patriótico".
Naquele momento, pensei na possibilidade de os mortos terem um espaço para interagirem com os vivos que sentem saudades deles. Imaginei que o mundo à tua volta terá conspirado contra ti e os moçambicanos que seguiam a tua agradável reflexão e escrita, por não teres tido a oportunidade de viver até que completasses a tabela periódica do Nhangumele. Por não teres acompanhado o cota Guebas a confirmar suas reflexões. Por não poderes escrever sobre este filme que parece de facto, até aqui não ter um chefe dos bandidos assumido – até alguns parece terem sido removidos os cérebros daquilo que defenderam entre 2013 até a detenção de Chopstick!
Naquele momento percebi que o destino foi injusto contigo e com os teus admiradores, porque precisavas terminar a sua obra, entre elas um livro sobre o julgamento das dívidas ocultas. Só tu, Juma, nos poderias ajudar a entender aquela tragicomédia que se vive naquela "tenda dos sem vergonha", embora parte dos teus textos respondam sobre várias questões do julgamento. Tuas crónicas ainda nos explicam sobre como Moçambique está a ser gerido em textos como "um país que não processa” e "Sua Excelência Indivíduo-Quê". Lendo os trechos destes textos, percebe-se que Juma era um Aristóteles africano e com conhecimento aprofundado sobre o seu povo.
Acredito que muitos que te desdenhavam naquela altura devem estar a sentir saudades de ti e vontade de lerem algo escrito por ti sobre toda "cagada" que somos obrigados a consumir diariamente. Fico imaginando entre os botões como seria a tua análise sobre o assunto dos conteúdos da sexualidade e da homossexualidade no livro da 7ª classe de Ciências Naturais.
Sobre o pedido do boss em Bruxelas para que os antigos colonizadores financiem a educação dos africanos. Acerca do barulho da Expo-Dubai. Sobre o suposto carro roubado nas terras do rand que o SERNIC diz ter encontrado no quintal do "boss da CTA". Sobre o fight de Xinavane. O impedimento do mano Mané pedalar na cidade que o viu nascer e que gere – só tu Juma poderias explicar isso e ajudar-nos a rir desta desgraça que nos persegue.
Infelizmente, o mundo é um lugar passageiro, onde temos de obedecer a lógica do destino e dos mandatos divinos e naturais, mas como escreveu Mia Couto a seu respeito – Juma Aiuba cumpriu com coragem uma missão espinhosa: criticar a hipocrisia viciada de muitos dos nossos costumes. Precisamos de ter mais Jumas!
Descanse em paz, Maitololo!
As notícias, sobretudo as da televisão, são dominadas hoje pela tragédia da Ucrânia. Quando vi o atlas do musculado ataque russo divisei, entre outras regiões, Odessa, uma cidade ucraniana às margens do Mar Negro e um ponto estratégico neste conflito. O meu defeito de formação levou-me ao jornalista e escritor Isaac Babel, que eu lia na juventude e cuja história, igualmente trágica, terminou numa execução, aos 45 anos, em 1940, às mãos de Stalin e da Grande Purga. Ainda hoje tenho a memória vívida dos seus “Contos de Odessa”.
A despeito, a minha memória de Isaac Babel não sobreviveu à lembrança da saga de Isabel Bapalpeme, uma jovem guineense, de 29 anos, que viveu sozinha em Portugal durante anos, à espera de um transplante de pulmão, triste por estar apartada da mãe, desde 2014, a quem a embaixada portuguesa em Bissau lhe recusara visto apesar dos veementes apelos médicos.
Quando um jornal de grande influência denunciou a situação, as autoridades apressaram-se a conceder o visto à mãe de Isabel e aos irmãos menores e uma onda de solidariedade preencheu-lhe finalmente o vazio da casa em que vivia. Que tem a ver o destino desta guineense com aqueles que, no rigoroso frio da Ucrânia, se veem agora na situação de se transformarem em exilados? Aparentemente nada.
Acontece que Portugal fez uma declaração exuberante e o governo instruiu as embaixadas para conceder vistos a ucranianos e considerou-os bem-vindos ao país desde que o queiram. O gesto não merece censura, antes pelo contrário. No entanto, este altruísmo lusitano denuncia o desprimor ou a desestima com que o mesmo país lida com os africanos de quem declara serem de países irmãos. Perante as nossas tragédias, que incluem guerras e outros colossais infortúnios, nunca vi semelhante gesto dadivoso ou prodigalizador.
Há mais de um quarto de século redigi, para o jornal “Público”, um artigo intitulado “A cooperação pelintra”, onde mapeava as misérias desta nossa equívoca relação. Reitero o que então disse. Não me apetece voltar aos argumentos nem sequer alvitrar quem quer que seja. Anoto, neste dia em que a comoção ocidental é unânime sobre o desfortúnio da Ucrânia, a dissimulação ou a insinceridade que está na base das relações entre países.
A história dramática de Isabel é a metáfora de como Portugal trata (ou melhor: destrata) os cidadãos oriundos dos nossos países ou aqueles que deles são progênitos, para não falar dos nascidos em território português, párias ainda hoje e nunca verdadeiramente integrados. É isto resquício desse racismo iniludível, continuamente impugnado oficialmente, ou é produto da hipocrisia que domina a realpolitik?
Fica a pergunta retórica e uma convicção inabalável:
Brancos sim, pretos não!
Maputo, 24 de Fevereiro de 2022