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segunda-feira, 21 março 2022 13:03

NÚMEROS E LETRAS

Ninguém comete erro maior do que não fazer nada porque só pode fazer pouco”.

 

(Edmundo Burke, 1729-1797, Escritor e Político Anglo-irlandês)

 

Nós, os números:

Somos apenas 10 irmãos

Do mais novo “0” ao mano “9”.

Soltos, representamos senão lúgubre unidade

E se restringe, deveras, nossa quantidade!

 

Todavia, unidos

Somos a complicação de muitas mentes!

 

Jovens, adultos e velhos

Com ou sem casaco, trémulos

Reclamam o poder e a influência

Da nossa estratégica associação!

 

Ademais, reconhecemos que as letras

Engenhosamente grafadas ou manuscritas

Unidas, geram a temida Matemática

Mas nós construímos a sua essência

E isso as letras designam ciência!

 

Igualmente, nós, as letras:

Somos senão vinte e seis membros

De classes de cinco e vinte e uma

E a nossa influência é sem preço

Basta olhar para as palavras e frases

Expressões, folhetos, livros e compêndios

Somos a chama de grandes revoluções!

 

Soltas, desde a novata “a” a sonora “z”

Limitam-se nossa influência e nosso poder

Encolhem-se e estacionam-se as mais nobres mentes

Perdem-se a cor e o brilho das coisas

E quase sobre nada se pode escrever!

 

Entretanto, quando unidas:

Nascem pensamentos e sonhos

Despertam-se revolucionárias ideias,

Aureoladas e extraordinárias conquistas!

 

Além disso,

Erguem-se enormes livrarias

Clássicas e modernas bibliotecas

E a chama por um mundo melhor

Encontra em nós o seu embrião!

 

Bem que os homens

Que nos pensaram e deram vida

Poderiam algo de nós aprender

Pois se isolado cada um permanecer

Sua influência será de menor alcance!

 

Entretanto, os homens

Longe das nossas expectativas

Buscando auto-reconhecimento e vanglória

Aprenderam, com invejável destreza, a unir-nos

E esquecendo-se de si próprios e da sociedade que criaram

Hodierno, vivem resmungando socorro!

 

E nós, números e letras

Minúsculas ou maiúsculas

Em algarismo ou por extenso

Unânimes, somos o fósforo da revolução!

 

segunda-feira, 21 março 2022 09:37

REINALDO FERREIRA, 100 ANOS

Quando morreu, a 30 de Junho de 1959, aos 37 anos, vítima de um cancro fulminante, Reinaldo Ferreira era, nas assertivas palavras de Eugénio Lisboa, “rigorosamente desconhecido na Metrópole” e “profundamente admirado por um número reduzido de amigos ou simples conhecidos”, em Moçambique, onde, acrescentava, “os seus poemas circulavam há muito de mão em mão, aqui e acolá publicados em jornais ou revistas, republicados, modificados, retomados, com aquela admiração e veneração sempre vivas que só as coisas realmente belas costumam motivar”.

 

Reinaldo Ferreira permanece, à distância de seis décadas, omisso, desconhecido, deslembrado, esquecido, não obstante a obra de grande quilate que então legatou, reunida e publicada, por um grupo de amigos, no ano ulterior ao seu óbito, sob a chancela da Imprensa Nacional e com o título “Poemas”. O Poeta projectava um livro a que daria o nome de “Um voo cego a nada”, belíssimo verso do poema “Eu, Rosie, eu se falasse, eu dir-te-ia”. Cito os primeiros versos: “Eu, Rosie, eu se falasse, eu dir-te-ia/ Que partout, everywhere, em toda a parte, / A vida égale, idêntica, the same, / É sempre um esforço inútil, / Um voo cego a nada.

 

Poemas” acabará por incluir 4 livros, designadamente: Livro I) “Um voo cego a nada”, Livro II) “Poemas Infernais”, Livro III) “Poemas do Natal e da Paixão de Cristo” e Livro IV) “Dispersos”. José Régio, à época uma sumidade nas letras portugusesas, dedicou-lhe um extenso estudo e uma admiração indisfarçável. O mesmo aconteceria com António José Saraiva e Óscar Lopes, autores da incontornável “História da Literatura Portuguesa”. Todos estes gabam-lhe a rara qualidade da sua poética e elevam-no, inclusive, à estatura de um Fernando Pessoa. No entanto, esta sua breve glória póstuma seria aviltada pelo tempo. 

 

No belo e pungente “Reino Submarino” (1962), segundo livro de Rui Knopfli, que se estreara como poeta justamente no ano da morte de Reinaldo Ferreira, em 1959, com o provocatório “O País dos Outros”, cabe uma elegia ao Poeta: “O que na vida repartiu seu poema/ por alados guardanapos de papel, / o criador de sonhos logo perdidos/ na berma dos caminhos, / o mago que pressentia o segredo/ da beleza perene”.

 

Reinaldo Ferreira é autor de alguns dos mais belos poemas da língua portuguesa. Figura mítica da vetusta capital moçambicana, sobretudo nos cafés e dos circuitos da boémia nocturna, como haveria de testemunhar Guilherme de Melo, seu amigo e autor de um texto redigido para uma edição de “Poemas”, edição da Vega, em 1998, que sucedeu à da Imprensa Nacional de Moçambique (1960) e da Portugália, em Lisboa, em 1962, esta, por sua vez, com o texto de Eugénio Lisboa e um estudo de José Régio. A edição da Vega não inclui o texto de Lisboa, mas traz o texto do autor de “Poemas de Deus e do Diabo”.

 

Reinaldo Ferreira era também conhecido por ser autor de canções como “Uma casa portuguesa”, “Kanimambo”, “Piripiri” ou “Magaíça”, entre tantas outras, umas compostas originalmente e outras que resultavam de poemas seus que foram, entretanto, profusamente musicados. O Poeta dedicou-se abundantemente à arte dramática e foi responsável pelo programa “Teatro em sua casa”, do antigo Rádio Clube de Moçambique, parente distante de “Cena Aberta”, que, muitos anos depois, teria o concurso de figuras como Leite de Vasconcelos ou Né Afonso na subsequente Rádio Moçambique.

 

Hoje, no entanto, este imenso Poeta está “rigorosamente” esquecido. Fortuitamente citado, jamais celebrado pelos seus porvindouros, proscrito da glória que cobre tantos poetas efémeros, objecto de descaso quer em Moçambique ou mesmo em Portugal, os seus versos, quase todos aqui produzidos, permanecem no território do oblívio. Dir-se-ia que estamos perante um daqueles casos que não se sabe a que pátria literária pertence. Nasceu em Barcelona, cumpriu a adolescência no Porto para onde fora aos 4 anos e chegaria a Moçambique aos 19 anos e aqui viveria metade da sua vida, produziria a sua breve e fulgurante obra poética e dramática e aqui teria sepultura. Reinaldo Ferreira ficou, assim, prisioneiro do seu infortunado e paradoxal destino.

 

Breves efemérides da sua vida curtíssima em Moçambique: chega ao país em finais de 1941 e em 1942 termina o liceu. Ingressa, posteriormente, nos serviços de Administração Civil. Entre 1947 e 1949 publica, esporadicamente, poemas em páginas literárias. “Uma casa portuguesa” estreia em 1950 e torna-se um êxito de imediato. Dois anos depois, em 1952, passa a responsável da secção de teatro do antigo Rádio Clube. Em meados da década de 50 encontra-se a trabalhar nos “Poemas Infernais”. Em 1958 são-lhe detectados os primeiros sintomas da doença. No mesmo ano trabalha na colectânea “Um voo cego a nada”. Vai a Lisboa de férias e retorna a Moçambique em Janeiro de 1959. Em Março de deste infausto ano a doença agrava-se e segue para Joanesburgo em desesperada busca de cura. Em Maio já não há esperanças, regressa a Moçambique. No dia 30 de Junho desse ano morre de cancro no pulmão.

 

A sua campa é rasa e nela estão inscritos a bronze estes versos: “Mínimo sou, / Mas quando ao Nada empresto/ A minha elementar realidade, / O Nada é só o resto.” Descobri-a no acaso de uma romaria familiar ao Cemitério de Lhanguene e me deixei surpreender pela singela tumba. Não me sobressaltou o abandono. Os poetas costumam ter essa fortuna: o desabrigo, a solidão e a negligência do futuro.

 

Reinaldo Ferreira é, não obstante, um grande Poeta. Não entro na discussão da sua nacionalidade literária. Aliás, estão os seus poemas coligidos na antologia de poesia moçambicana “Nunca Mais é Sábado”. Um país que se preze reivindica-o. “Receita para fazer um herói” é o primeiro poema dessa escolha. Cito-o aqui na íntegra: “Tome-se um homem / Feito de nada, como nós, / E em tamanho natural. / Embeba-se-lhe a carne, / Lentamente, / Duma certeza aguda, irracional, / Intensa como o ódio ou como a fome. / Depois, perto do fim, / Agite-se um pendão / E toque-se um clarim. // Serve-se morto”. Belíssimo.

 

Maputo tem, felizmente, uma rua com seu nome, uma pequena rua cul-de-sac, que entronca na Emília Daússe, muito perto da Salvador Allende. Fui ontem procurá-la e lá estava recolhida na sua pacata obscuridade. O Poeta não está degredado da nossa toponímia. Ainda alimentei a esperança de o ver celebrado hoje nos lustros que perfazem, por estes dias, a relacção entre Moçambique e Portugal. Debalde.

 

Celebro-o aqui, nestas breves palavras, no dia em que passam, justamente, 100 anos sobre a data do seu nascimento, ocorrido a 20 de Março de 1922, em Barcelona. Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira, de seu nome, filho do celebérrimo Repórter X, pseudónimo do conhecido jornalista Reinaldo Ferreira, de quem herdou o nome. Leio-o esta noite e sempre com assombro e não deixo de vituperar esta cultura de esquecimento que é o apanágio dos nossos dias.

 

Maputo, Domingo, 20 de Março de 2022

Se todos nós percebemos bem, um “porta-voz” da oitava secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo (TJCM), ao impedir a cobertura noticiosa em directo do julgamento do caso “Helena Taipo”, a decorrer na Katembe, em Maputo, evocou alto e bom tom que, cito de memória, os réus gozam da presunção de inocência; e por isso as sessões de discussão, produção de provas e julgamento não podiam ser transmitidas pela comunicação social.

 

Tão somente isso: se as sessões estivessem a ser transmitidas em directo, estar-se-ia a violar o sacrossanto direito de “presunção de inocência dos réus”!, na óptica do diligente oficial.

 

Quid juris? - como eles próprios, os juristas, costumam redarguir! De quê é que estamos a falar de facto e de júri? Não passa um único segundo depois que vimos ao vivo tudo o que se passava na “tenda das revelações”, diariamente, hora a hora, minuto a minuto e segundo a segundo! Durante seis longos meses - de 23 de Agosto de 2021 a 10 de Março de 2022. Em Dezembro, praticamente só se trabalhou dez dias! Aliás, o tal julgamento ainda não terminou… falta a leitura do veredicto final.

 

Vimos ali na “tenda das revelações” tudo o que havia para ver na vida. Tristezas, não tristezas, choros, agonias, desesperos, aflições… tudo! Vimos todos os modelos de cabelo de Ângela Leão, os vestes e calçados de outro mundo do Ndambi, os chapéus do ACR, os fatos de Moda de Sidónio, as sonecas do Nhangumele, Mutola e quase todos os outros. Vimos todos isto.

 

E vimos porquê? Justamente porque o Tribunal Judicial da Cidade de Maputo permitiu que víssemos! Permitiu que o julgamento fosse transmitido em directo pela comunicação social. O mesmo Tribunal Judicial da Cidade de Maputo que, na voz daquele cidadão, nos veio, segunda-feira, dizer que a transmissão viola o princípio de “presunção de inocência”! Quid júris?

 

Significa isto, então, que o TJCM, ele próprio, estava a violar este princípio quando permitiu que se transmitisse em directo o julgamento? Estava a violar o princípio da presunção de inocência quando permitiu a transmissão do julgamento do caso Carlos Cardoso e do BCM? Onde está a consistência? Então todos os réus envolvidos em todos os casos cujos julgamentos foram transmitidos em directo podem… pedir justiça e ressarcimento ao… TRIBUNAL JUDICIAL DA CIDADE DE MAPUTO… pela violação do seu direito de presunção de inocência? Podem?

 

Sabemos e compreendemos que os juízes são soberanos. Mas sabemos e compreendemos também que os juízes agem em estreita obediência à lei. Agora, digam-nos: qual é esta lei que muda de cor tipo camaleão… numa situação, permite transmissão em directo e noutras situações não permite? Qual é essa lei? Havendo-a, que todos os juízes a observem!… Ou cada juiz tem a sua lei e a vai exibindo e usando à medida das suas conveniências?…

 

Mas, deixando a matéria de direito de lado e indo à matéria dos autos: olhando para o objecto dos dois julgamentos, o da “tenda das revelações” e o da “Helena Taipo”, bem, bem, bem… qual é o que não merecia transmissão em directo? Não é aquele em que informações sensíveis do Estado foram expostas mundialmente? O armamento que se pretendia adquirir, como, a finalidade, etc., etc…. Não era este julgamento que devia ter sido “escondido”? Não o foi.

 

Agora, um caso em que os réus são acusados de se terem apoderado de dinheiro dos mineiros… o que é que há de segredo de Estado que é preciso preservar, esconder? A figura de uma ex ministra? Convenhamos!

 

Por último. Há um equívoco muito grande para com a essência da comunicação social. O trabalho da comunicação social é levar ao conhecimento dos membros da sociedade os actos que ocorrem nessa mesma sociedade. A comunicação social não realiza altos, não acusa ninguém, procura tão somente reportar o que acontece na sociedade. Quem realiza actos são os actores sociais, quem acusa são os ofendidos e o Ministério Público. Reportar isto é violar o princípio de presunção de inocência de alguém? Reportar a sessão de julgamento é violar o princípio de presunção de inocência de alguém?

 

Ademais. Quando alguém é nomeado ministro e a comunicação social reporta e transmite a sua tomada de posse, aí está tudo bem! Não há violação de nada… Só quando reporta a sessão de discussão, produção de provas e de julgamento é que já está a violar a presunção de inocência? Todo o acto praticado por uma figura pública é de interesse público!

 

Ou então, não seja figura pública!

 

ME Mabunda

Nos últimos anos, virou moda políticos e organizações não-governamentais apontarem o ano de 2030 como o prazo para que as nossas vidas estejam “super nice”! Se ligas a televisão, só ouves que no ano de 2030 seremos isso e aquilo, se pegas os jornais, todos apontam 2030 como o ano de grandes avanços. Os grandes planos das organizações humanitárias estão todos virados para o ano de 2030 – daí o meu desejo para que este ano chegue logo, para vermos se os políticos terão razão – se o meu povo deixará de sofrer de fome!

 

Às vezes fico imaginando que se o ano 2030 chegar, finalmente, o povo moçambicano estará num patamar de potência. Que ombrearemos com as grandes nações em questões económicas, onde teremos estradas sem buracos, 98% dos jovens trabalhando, as nossas universidades produzindo ciência e não um exército de desempregados e doutores sem conhecimento. A nossa agricultura, essa, será uma das 10 melhores do mundo, se confiarmos cegamente naquilo que nos é dito!

 

– De tanto ser referenciado, até parece que existem alguns que já viveram neste ano e regressaram para nos contar o que lá viram. Alguns dirão que são meras projecções, mas quando analiso os discursos e planos tudo se parece com a promessa do antigo ministro da Indústria e Comércio, Ragendra de Sousa, que jurou e prometeu entregar a sua cabeça de bandeja para os homens de Búzi, na Província de Sofala, mas saiu do governo sem pelo menos levar um investidor para ver o tal empreendimento!

 

- Conhecendo as pessoas que nos governam, quando os políticos atiram tudo para o ano de 2030, recordo-me da obra do grande pensador inglês Thomas Moore, no seu clássico livro “a utopia”, onde apresenta uma cidade igualitária e com várias condições pretendidas e almejadas por todos. Por aqui, o ano de 2030 vira uma nova meta e mais promessas, uma vez que os tipos actuais até lá já estarão a curtir à francesa nas Bahamas ou alguns estarão a cumprir suas penas pela mola que mamaram apontando que tudo se materializará no ano de 2030.

 

Se tudo for materializado até 2030, não teremos crianças sentadas no chão para estudar. Homens adultos a violarem sexualmente menores ou unirem-se prematuramente com elas. Não teremos governos corruptos. Não haverá perseguição aos jornalistas. A indústria dos raptos já terá sido derrotada. O valor das portagens será outro, ou seja, mais baixo. As pessoas não irão perder a vida nas filas dos hospitais. O transporte público será o melhor, até lá quem sabe teremos um metro de superfície e o nível de sinistralidade rodoviária já terá reduzido – seremos a nova Singapura de África!

 

Portanto, para que isso aconteça será necessário que haja uma mudança de atitude. É importante que a ciência esteja ao serviço do desenvolvimento. É crucial que haja governantes amantes do povo e da verdade! É importante que o nosso sentido de justiça social seja verdadeiro. Que o amor à pátria seja intenso. Porque sem isso, em nada nos valerão grandes planos com metas ambiciosas e sensacionalistas quando no fundo somos Docentes livres em endividar o país para projectos que mesmo o mentor da ideia não acredita!

 

Seria bom que o ano de 2030 fosse logo amanhã, para vermos esta singapurização de Moçambique e porque não de África, onde segundo as projecções poderemos viver em Chicualacuala e trabalhar em Palma, fazendo as viagens diárias sem nenhum sobressalto. Afinal, teremos tudo a funcionar em pleno, a mola do petróleo e gás de Afungi já estará a transbordar. Os rubis de Montepuez e Mavago a renderem. Os diamantes de Gaza e Tete idem. Os locais turísticos de Maputo, Inhambane, Sofala, Zambézia, Nampula, Niassa e Cabo Delgado a meterem muito dinheiro!

 

Não haverá dificuldades, até a desnutrição infantil já terá sido esquecida! Só que não nos esqueçamos que faltam oito anos (2022 – 2030) e se em mais de quatro décadas apenas só soubemos investir em novas táticas e técnicas de desinvestimento – está aí uma desculpa para que as coisas continuem como estão ou mesmo pior, porque tudo está planificado para o ano de 2030, em que os anjos virão mijar nesta terra para que tudo esteja na máxima perfeição. Não vejo a hora de chegar no ano de 2030, quero ver uma coisa, aí – um país com um novo rosto – que pode ser um igual a de um camponês de lá das bandas de Pebane, na Zambézia, ou de um farmeiro bóer dos tempos das vacas gordas no Zimbabwe!!!      

Era preciso Marcelo Rebelo de Sousa vir a Moçambique para Lisboa autorizar que moçambicanos viajassem para Portugal sem restrições. Rebelo de Sousa chegou  hoje a Maputo, terra onde ele viveu e que considera sua segunda pátria e com Portugal tem “ligações de fraternidade que são únicas”.

 

Essa fraternidade esteve em banho-maria durante longos meses. Sem decreto conhecido, moçambicanos que quisessem viajar para Portugal eram simplesmente vexados com uma recusa de visto. Grosso modo, a opinião pública |moçambicana andava com os nervos à flor da pele. Há relatos de moçambicanos que tiveram que recorrer à Embaixada da Espanha para obterem um visto Schengen para se deslocarem a Portugal.

 

As redes sociais foram inundadas de comentários criticando a diplomacia moçambicana por não aplicar uma medida recíproca. Ou seja, no mesmo período de fechamento de Portugal aos moçambicanos, cidadãos portugueses podiam entrar em Moçambique sem restrições, obtendo inclusive vistos de fronteira, nomeadamente no Aeroporto de Mavalane. A razão para as restrições nunca foram sobejamente explicadas. E os moçambicanos podiam viajar para qualquer parte do mundo.

 

Agora, com a vinda de Marcelo, Lisboa empenhou-se em lavar uma nódoa profunda, dando a entender, nas entrelinhas, que as restrições tinham a ver com a Covid19. Os moçambicanos já podem entrar em Moçambique sem restrições. E Marcelo Rebelo de Sousa evita um grande mal estar, ele que nutre publicamente uma afeição por este país. Seja como for, esta interrupção da fraternidade por decreto português mostra como a politica fragiliza os laços entre os povos e coloca reticências na construção da dita comunidade lusófona. (Marcelo Mosse)

quarta-feira, 16 março 2022 08:40

Matxinguiribwa*

Txifuliane está entre a muldidão, com o filho aconchegado, acompanhando tudo aquilo que apenas vem confirmar o que já sabia, ou que já tinha ouvido falar. Mathxinguiribwa dança no colo da mãe ao som da timbila de Juliasse Makowo, dança e ensaia com o pequeno braço esquerdo o batimento do escudo de pele no chão, e o chão era o peito da mãe que tremia cada vez que a criança enveredasse por esse gesto. Ela voltou a ficar alucinada, desta vez viu a sua avó aproximando-se, vestida de branco passeando no ar na sua direcção dizendo, Txifuliane sai daí, sai daí depressa, minha neta, procura uma varanda para te abrigares, entra no restaurante do Mathikiti e peça alguma coisa para comeres com o teu filho, sei que acabas de comer, mas vai comer outra vez, peça algo ligeiro só para não correrem contigo de lá, compra um chocolate para  Matxinguiribwa e mantenham-se serenos.

 

Txifuliane vê Juliasse Makowo sacudindo o abraço do governador, cuspindo  depois para o chão, não a saliva, mas um jato de sangue que lhe molhou os pés, pegou na sua timbilia e nas baquestas para se retirar e dirigir-se aos camarotes, onde devia esperar para de novo voltar e apresentar o maior quilate do seu show que ainda faltava, como se aquele primeiro número não fosse nada, parecia um mamute. Relampejou tremendamente por sobre o miradouro, e um raio caíu atingindo Juliasse Makowo, que morreu imediatamente, sem que no entanto tivesse caído, morreu de pé, e quando os seus companheiros tentaram levantar o corpo não conseguiram, começou a chover em catadupas, afastando as pessoas que enchiam por completo o lugar da festa, os membros da banda de Juliasse Makowo  abandonaram o cadáver com medo dos relâmpagos que se sucediam, e do graniso que  fustigava o espaço onde já tinha começado a grande celebração dos chopi, chovia em toda a vila, mas o graniso só caía no miradouro, martelando em particular a cabeça de Juliasse Makowo que continuava estranhamente de pé. Há grandes correrias das pessoas que buscam abrigo, as tendas esticadas aqui e alí não suportam as fortes bâtegas da chuva que chove à cântaros, elas cedem perante as torrentes, em pouco tempo a vila de Quissico ficou um rio, e os carros que estavam ali estacionados transformaram-se em barcos flutuando à deriva, sendo todos levados ribanceira abaixo, até à zona das Lagoas, onde se viam enormes fogueiras desafiando a chuva que caía cada vez com maior intensidade, sem o menor sinal de que aquela hecatombe podia desvanecer nos próximos momentos. As pessoas subiram para os tectos das casas, e paradoxalmente, no tecto das casas eles não molhavam, ficavam ali a assistir ao dilúvio, que vinha para destruir o histórico vilarejo, aquilo que são as ruas metamorfoseou-se, no seu lugar nasceram braços de um rio que rasgava Quissico à meio, várias mulheres foram vistas a nadar, nuas, umas de costas, outras de bruços, outras de livre, deixando ver abundantes trazeiros que atiçavam a cobiça dos homens pendurados nos tectos bebendo aguardente de massala, ninguém sabe explicar como é que aquela bebida foi-lhes parar às mãos, mas todos eles bebiam sem se molhar com a chuva que vinha do céu em liberdade, petiscavam carne de porco assada na brasa e temperada com n´tona, todos eles pareciam alegres, riam-se às gargalhadas, divertindo-se com o espectáculo das mulheres que nadavam nuas pelos braços do rio que rasgava Quissico, mas tudo aquilo durou pouco tempo, porque logo a seguir todos estavam nos seus anteriores lugares, a chuva tinha parado, os carros voltaram aos sítios onde estavam estacionados e Juliasse Makokowo retirava-se tranquilamente, petulante, para os camarotes.

 

Txifuliane tremeu depois de voltar novamente à lucidez, sem saber o que fazer. O filho, em silêncio, para o arrepio da mãe, mexia a cabecinha em resposta às músicas que vinham das orquestras que passaram a desfilar num espectáculo retumbante, cada grupo tocava algo diferente, algo mais aliciante do que aquilo que se ouviu anteriormente, aqueles que bebiam tinham que atravessar a estrada várias vezes para comprar as bebidas do outro lado e ninguém conseguia manter-se nas barracas porque não queriam perder um evento único, que trouxe equipas de televisão de várias partes do mundo, quatro helicópeteros sobrevoavam silenciosamente o espaço, com antenas pendidas para captar o show em todos os ângulos. O miradouro está compactado, acolhe milhares de assistentes que deliram, cada vez há mais gente subindo às palmeiras, levando consigo garrafas ou latas de bebida, que é consumida para aclarar as mentes e deixar que o ritmo penetre livremente nas profundezas da alma, os timbileiros estão em êxtase, desfraldam gritos de guerra que são repetidos pela plateia ávida.

 

  •  Excerto do livro (Mathxinguiribwa) de Alexandre Chaúque