Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI

Carta de Opinião

sexta-feira, 08 março 2024 06:24

Êxodo no Wimbe

Estamos a voar sem escala no carrancudo 737 da LAM há mais de seis horas, numa viagem que devia levar pouco mais de 120 minutos, mesmo assim os comissários de bordo não páram de sorrir. A informação que temos é de que chove torrencialmente em Pemba, com descargas atmosféricas de grande magnitude. Apagaram-se as luzes da pista e de toda a cidade.

 

Mas porquê que não desviam a rota para outro aeroporto aqui  perto? Também chove a cântaros em Nampula, com granizo em todo o lado, e na Zambézia os ventos que fustigam trazem poeiras de mau agoiro. E agora como é que vai ser? É só esperar, isto vai passar, não obstante a autonomia de voo poder estar em causa.

 

Estamos por cima das nuvens numa máquina cujo motor é imperceptível aqui dentro. Há um silêncio de morte no bojo, e deste modo pode ser que estejamos numa câmara de gás à espera de ser acionada pelos verdugos para que o cianeto goteje, e ainda assim trazem-nos taças de vinho em carrinhos leves para irmos bebendo, mas ninguém aceitou aquela bebida da cor de sangue, e eu então lembrei-me da música de Chico Buarque e Milton Nascimento “pai, afasta de mim esse cálice...”.

 

A minha cadeira está por cima da asa, que tremilica, e já atingi o limite do medo. Restam-me,  todavia, as últimas reservas de esperança.

 

“Apertem os cintos por favor, estamos para aterrar no aeroporto de Pemba”! A ansiedade e o medo não desvaneciam, aumentavam. A voz feminina soava a música sinistra, provavelmente o comandante tenha decidido fazer o poiso sobre a própria morte, os pássaros morrem no chão. Ninguém sabe o que vai acontecer, mas seja como for, se for para morrer, já estamos mortos. Morremos todos os dias. Moçambique vive de morte em morte.

 

De qualquer das formas parece termos saído, após aquela voz cantante vinda dos altifalantes roufenhos que mais parecem megafones, da antecâmara do diabo. Pemba estende-se na plenitude aos nossos pés como um paraíso, entretanto essa vista será ilusória, Pemba treme em toda a placa. Senti isso quando saí do avião: todos olham para os passageiros que desembarcam com olhar profundamente  inexpressivo como quem diz, o quê que eles querem aqui?

 

Neste momento em que chegamos, há muitos aviões que partem. De meia em meia hora uma máquina busca os ares, até não haver mais nenhum aeroplano para descolar, a não ser o “nosso” que igualmente vai voltar ao espaço daqui a pouco, com gente entulhada como no “My love” onde somos tratados tipo gado de abate.

 

Quando embarquei em Maputo, o meu plano era hospedar no Wimbe e ir desfrutar da vida no restaurante Dolphin, mas alguém, que está fugindo como os outros em massa,  diz-me que o Dolphin está fechado, o Nazaré não está lá. Fugiu da chuva que penetra pelo tecto sem fissuras e janelas fechadas molhando tudo. O peixe conservado nas arcas ressuscitou e voltou para o mar ensanguentado. O arquipélago das Quirimbas está a tremer, as aves marinhas sucumbiram ao cheiro da pólvora e das baionetas e das facas.

 

Mas eu quero ir ao Wimbe, mesmo assim. Sentir a brisa no Dolphin e ouvir a música da natureza cantada pelas gaiovotas que não estarão nos galhos, fugiram inesperdamente, deixando para trás os mangais transformados em matadouros de homens. Então lá fui em contramão daqueles que deixavam o mítico Paquitequete, o Metuge e toda Pemba, e todo o Cabo Delgado.

 

No Dolphin não está ninguém, a não ser um homem longelíneo vestido de turba negra, que me estende a enorme bandeja de prata contendo uma cabeça humana acabada de ser decepada.

 

Eu ia receber a bandeja pensando tratar-se de cabeça de peixe, de xerewa. Afinal era um pesadelo, numa noite com temperaturas jamais sentidas em Inhambane.

segunda-feira, 04 março 2024 07:54

Prontos: o candidato tem que ser do Centro, mas…

Esta fora a conclusão de um turbulento debate, este domingo, na rota Baixa­Boane. O debate, ocasional e que reunira uma dezena de passageiros junto ao banco traseiro do autocarro, decorrera em torno do perfil ou critérios para o próximo candidato presidencial do partido no poder,

 

Enquanto o debate decorria ia pensando em que perfil ou critérios teriam sido baseados as escolhas anteriores para a chefia do partido e∕ou candidatura presidencial. Neste exercício veio-me à memória, mais uma vez, uma entrevista de Marcelino dos Santos, falecido membro sénior e fundador do partido no poder.

 

Na aludida entrevista, Marcelino dos Santos mencionara de que na escolha de Samora Machel, depois da morte de Eduardo Mondlane, pesara o facto de Samora, sendo o comandante militar e hábil líder, poder responder melhor ao objectivo de intensificação da luta armada como resposta de vitalidade contra o poder colonial.

 

Quando da sucessão de Samora Machel, Marcelino dos Santos afirmara que para a escolha de Joaquim Chissano, então Ministro dos Negócios Estrangeiros, pesara o seu carácter diplomático e capacidade em "engolir sapos", características que seriam vitais para o contexto de mudanças mundial e internamente da época.

 

Na escolha de Armando Guebuza, então Secretário-geral do partido, quando da sucessão de Joaquim Chissano, Marcelino dos Santos dissera que valera a liderança e capacidade deste em poder dinamizar o partido para as mudanças e respostas necessárias aos desafios do país na altura, sobretudo socio­económicos. 

 

Na entrevista, que fora durante o reinado de Guebuza, não se falara sobre o que determinaria na escolha do sucessor de Guebuza. Aliás, o debate da sucessão parece que não consta do lema ”A Vitória Prepara­se. A Vitória Organiza-se", atendendo e comparando com a antecedência com que o partido no poder trata todos os outros assuntos conexas ao processo eleitoral.

 

Contudo, decorrente do avançado por Marcelino dos Santos ­ o de uma escolha que resulte da combinação do contexto (internacional, nacional e partidário) a enfrentar e a particularidade e habilidades requeridas face a tal contexto ­ resta saber até que ponto estes critérios terão sido observados na sucessão de Guebuza para Filipe Nyusi e se serão observados na ora sucessão de Nyusi.    

 

"É melhor que seja do Centro (do país), encerrando assim, de uma vez, o "Agora é a nossa vez!". Este pronunciamento, dito em alta e rochosa voz do casual moderador, arrancara aplausos de todo o autocarro em sinal de total concordância.  Do pronunciamento também a assunpcção de que o candidato será certamente o próximo presidente.

 

Os aplausos interromperam a minha viajem ao passado. Do recolhido nada constava que o critério regional fosse determinante para a escolha. Do vigoroso consenso do autocarro, a ideia de que o critério regional vincará ­ com a escolha de alguém do Centro, completando assim o ciclo regional ­ e de que o precedente fora aberto quando da escolha do actual timoneiro.

 

Sendo assim, e para que o assunto não fique um pendente e uma fonte futura de conflitos: que seja mesmo a última vez do "Agora é a nossa vez!".

sexta-feira, 01 março 2024 06:31

Sou eu, o Zé Luís... o gato!

Fui nascido com o firme propósito de reverberar com as mãos tenazes. A mulher que me deu à luz no chão, não sabia que com o andar do tempo eu estaria no cume, nem tinha capacidade de perceber que vinha ao mundo para levantar estádios inteiros. A minha missão  era essa, mais do que defender as azagaias arremessadas com furor, fui escolhido entre muitos para ser o derradeiro reduto.

 

Ainda trago de Chimoio e de toda a província de Manica, aqui onde a vida é vivida segundo as parábolas, as lembranças de que o esteito dos matewe (tribo maniquense) era eu. Era em mim que se agarravam nas batalhas dramáticas do futebol, na esperança quase certeza, de que sobre mim ninguém vai passar. E na verdade era isso mesmo, eu serei a última esperança. A esperança infalível!

 

Diziam sempre, quando me vissem a passar pelas ruas de Chimoio, que a albufeira de Chicamba era eu, pois, segundo eles, sem mim não haveria iluminação no Textáfrica, mas isso era um exagero, Chicamba era toda a equipa, uma das melhores que Moçambique já teve em todos os tempos.

 

Mas todas essas memórias que hoje me vibram na alma neste lugar onde o futebol tornou-se música, não vão querer dizer mais nada,  senão que a minha vida na terra foi uma outra forma de celebrar os sons e os batuques das vitórias, eu dançava na baliza. Ria me dos avançados que desciam em flecha ávidos de celebrar o golo, sem saberem que eu era o baluarte de Chimoio e que nas minhas veias vai circular com verve, todo o sangue dos guerreiros de Chimanimani.

 

Sou eu, o Zé Luís, o Gato! Rejubilo em todos os momentos neste lugar onde vivo a vida jamais imaginada e jamais esperada. Aqui nada é repetitivo, só existe o crepúsculo do amanhecer. Tudo é novo e reluz-se por si mesmo.  É diferente dos dias das derrotas do Textáfrica, e da Selecção Nacional, que me entristeciam profundamente. Sobretudo aquela humilhação nos Camarões! E ainda alguém zombava de nós dizeendo: quem semeaia ventos, colhe tempestades! Mas eu já me esqueci desses vendavais que em determinados momentos tornavam-se em dilúvios.

 

Sou eu, o Zé Luís, o Gato! Apagaram-se em mim todas as dores, e agora passo a vida a planar, ouvindo de vez em quando a voz do João de Sousa gritando: que defesa espectacular do Zé Luis! E logo a seguir vejo o mar de gente enchendo o Estádio da Machava, ovacionando-me. Mas eu chorava sozinho,  de emoção, sentindo os arrepios em todo o meu corpo e espírito, ao ser erguido pelo povo inteiro.

 

Pois e! Só vinha vos dizer isso, e pedir ao Textáfrica, agora que luta por se levantar outra vez, o favor de levar o canecão ao Monte Binga, como aconteceu em 1976. E para essa luta, contem comigo.

 

Sou eu, O Zé Luís, o Gato!

quarta-feira, 28 fevereiro 2024 08:23

Nelson Saúte: o farejador de memórias

O meu primeiro encontro com Nelson Saúte foi nas ruas poéticas dos meus antigos manuais escolares, ainda me recordo como se fosse hoje. Os meus manuais escolares, forrados de papel de jornal com rostos de mortos da necrologia, tinham no interior diversos versos de Nelson. O meu pai forrava os meus livros sem se importar com a pilha de mortos e pesadíssimos anúncios de adjudicações de contratos que carregava todos os dias para a sala de aulas.

 

Eu lia os poemas de Nelson numa gulodice que até hoje me impressiona. Depois de muitos dias de confiança, fui autorizado a carregar Nelson para a casa, em forma de livro, por bibliotecários da Associação dos Escritores Moçambicanos. “Maputo blues”, um livro belíssimo que me embasbacava de encanto a cada poema, porque eu, nos meus sonhos molhados e desmedidos de infância, queria também ser poeta e ser uma mítica figura que vivia em livros. Ainda oiço cada trepitar de todos os poemas desse livro neste momento.

 

E depois, de tempos a tempos, via Nelson entrando sem licença na casa dos meus pais pela televisão. Eu sorria, porque sabia que, em meu quarto, tinha também metade de Nelson escondido no seu jeito de poeta em meus manuais. Ainda tive as belíssimas cartas do “Escrevedor de destinos” em meu quarto, mas a minha pacata veia poética, que nessa altura estava verde, ficava amadurecida quando sentia o sal do “Maputo blues”.

 

Nelson Saúte, depois de um tempo decidiu lançar, pela sua editora, Marambique, o belíssimo livro de Noémia de Sousa “Sangue Negro”. E eu, comboiado pelos excelentes declamadores do Arrabenta Xithokozelo, estive no evento a dizer um poema de Noémia de Sousa. Nelson estava lá: elegante, conversador e com uma sensibilidade artística impressionante. Depois do lançamento, ainda tive a ousadia de esticar a minha mãozinha a Nelson. E ele olhou para mim uma data de tempo, não me apertou a mão, estava certíssimo, eu ainda era um miúdo; Nelson fez-me, apenas, umas festinhas ternas na minha cabeça despenteada enquanto ajeitava a voz debaixo de ruídos de comboios que partiam, ali nos CFM, para dizer “muito bem, rapaz. Muito bem, rapaz”.

 

E depois foi no Instituto Camões, numa palestra sobre Noémia de Sousa, que revi Nelson. Recordo-me que ele partilhava o pódio com o sublime poeta Eduardo White. Ambos falavam de Noémia de Sousa. A dado momento, Eduardo White, um poeta fervoroso, levantou-se, totalmente esgazeado, atacou Nelson com enormes palavras e fez um longo discurso cheio de calão e insultos enquanto usava as suas próprias mãos como duas batutas para escorraçar o moderador do debate. Nelson continuou no pódio, tonto de uma humildade desarmante que não me sai da memória. Ali sofreu em silêncio todos os bombardeamentos e insultos numa dignidade impressionante. Nos poucos segundos que o poeta Eduardo White dirigia-se, de forma abrupta, ao moderador, Nelson aproveitava para pingar no microfone suas vivências com Noémia de Sousa. Eduardo White, na sua altura de agitar o céu, depois de tudo, ainda disse ternurentas palavras sobre Noémia de Sousa que nos comoveu a todos.

 

Hoje, Nelson é esse grande guia que nos comanda nesse exercício canino de farejar memórias. Farejar todas as paredes com nódoas de memórias, polir lápides, abrir túmulos tão cheios de nós e fazer missas aos grandes homens que nunca cabem na nossa minúscula memória, se calhar por serem grandes. É uma grande honra pertencer ao tempo presente habitado, também, por Nelson Saúte. Não podemos ter receio e nem medo de o dizer “Nelson é um grande homem do nosso país”.

 

O escritor francês Vidalie dizia que devíamos todos usar suspensórios para que a alma nos caísse um pouco menos sobre os calcanhares. E além de suspensórios, eu acho que os todos os países precisam de homens como Nelson para que a memória lhes caia um pouco menos sobre os calcanhares.

 

Escrevo este texto porque soube que Nelson fez 57 anos de idade. Mas a energia de Nelson, nos seus textos, continua a de um rapaz de 20 anos, aliás, foi assim que o vi pela última vez: um moço de 20 anos de idade sentado numa sala, ali no museu dos CFM, de perna cruzada e engolido por um enorme jornal. Se calhar é este jornal que hoje me falta para forrar todas essas memórias sem me importar com os rostos da necrologia e os contratos de adjudicações.

quinta-feira, 22 fevereiro 2024 07:16

Ainda sobre o pórtico dos escravos

Virado para o mar, para sempre, o pórtico dos escravos guarda em silêncio as dolorosas memórias dos gemidos. Das torturas. Dos escárnios e das revoltas. Mas nem parece que será daqui onde vão partir sem regresso, os homens acorrentados e empurrados pelos açoites para o interior dos porões sombrios, sem sequer lhes darem a oportunidade de acenar pela última vez para as belíssimas paisagens em todo o percurso a partir da baía, passando por Mucucune e praia da Barra, com Linga-Linga à ilharga até ao Mar Alto, de onde a terra já não se vê.

 

Revisitei ainda esta semana, sem entusiamo, este lugar que fará da cidade de Inhambane inteira, um património da humanidade, e desta vez, em vez das dores vocalizadas dessa fase cruel das grilhetas, senti as canções cantadas em côro para celebrar a poesia. Então, os escravos estão vivos, despidos de mágoa e rancor. O que deixaram para trás cabe a nós preservar, não a eles.

 

Os escravos não carecem das nossas lágrimas, a quem gravita na órbita das luzes brilhantes do pós-morte não se chora, aclama-se como aos actores reais que usam os palcos como Céu, onde a dor não existe. É por isso que, passando por aqui hoje, não se sentem os arrepios dentro de nós, os escravos não estão mais onde jazem os cheiros dos seus corpos tatuados com ferro aquecido em fogo, eles já não se lembram disso, nós sim.

 

Mas não é justo que ao pórtico seja impedido o mar. O mar já não se vê a partir daqui. Barraram-no com construções que representam a anarquia e a desvalorização do belo. É como se eu estivesse a ouvir, passando por este memorial, as vozes dos escravos  em torrente dizendo: derrubem essas barreiras por favor, queremos contemplar a nossa bela baía! Rebentem com isto! Liberdade!

 

Mas esses gritos não serão, comcerteza, dos escravos, são da minha imaginação, dos meus sentimentos, “Rebentem com isto!”. Os escravos já não reivindicam, jamais voltarão a materializar-se, eles agora cantam e dançam danças jamais vistas e cantam novas canções, diferentes das que entoavam nas plantações da prosperidade alheia, já não se lembram das feridas da carne e da própria alma agora livre para sempre.

 

Rebentem com essas construções em frente ao Pórtico dos escravos, porque queremos contemplar o mar e perscrutar os sons da história produzidos pelos pés descalços dos escravos chapinhando na água para terras de longe. O mar é a nossa poesia, é a nossa música. Então rebentem com isso, e deixem os escravos livres!

sexta-feira, 16 fevereiro 2024 10:37

De Elvira ao canto de esperança!

 

Aqui, entre nós, não é muito comum que um álbum se vinque e tome sua forma a partir do título. “Venho de Longe”, de Elvira Viegas, reforça logo a construção do sentido musical e enriquece o processo conceptivo, estético (e, na expetativa, melódico) das 15 músicas que a compõem. O álbum dá continuidade à evocação de referências das suas vivências que são sinónimos de calos, lágrimas, pesares e tentativas pregações de moral e patriotismo.

 

E é sobre isso que quero aqui abordar. Elvira faz, neste 2024, 50 anos de carreira e 69 de idade, a completar em outubro próximo. Tem cinco álbuns gravados, “Nfzixikala vitu”, “Tlanga upimela”, “The best of Elvira Viegas”, “Venho de Longe” e “Ora Chegou”, que deixam sempre a sua fragância melódica por onde ecoam. São quatro vidas que me interessam analisar, mas hoje, nesta extensa introdução, interessa-me recuar no tempo e, desde o início, seguir essas pegadas feitas em 50 anos de música.

 

“Venho de Longe” (uma reedição de The best of Elvira Viegas), como sugere o quarto disco, traz, na sua organização, as melhores músicas da cantora, gravadas originalmente em diferentes momentos e circunstâncias. São esses os calos da sua história, de lá longe de onde vem, que, regravadas e alinhadas, compõem o primeiro álbum ousado da cantora, juntando igualmente instrumentistas como Pipas, Stélio Zoe, Carlos Gove, Sacre, e o seu falecido irmão Pacha Viegas.

 

E sem rodeios: o disco é a mascote da Música Ligeira Moçambicana – um campo que já foi dividido entre ela, Elsa Mangue e Zaida Chongo. Bem, um pouco forçado também por Mingas, embora o seu estilo circunde entre o ligeiro moçambicano e o moçambicano internacional –, que antes mesmo de reeditado, já tinha conquistado reputação na Rádio Moçambique, reafirmou o valor da artista e o reconhecimento que veio também da Rádio França Internacional (RFI), que o atribuiu o seu galardão maior (Prémio Descoberta), no ano de 1987.

 

Com audácia, e uma dinâmica crescente, sem por isso quebrar a senoide, o álbum conta a história de um país – e seus inquilinos – que prossegue em meio a tantos problemas, sobretudo relacionados às mais básicas dádivas da humanidade: dar amor aos filhos, aos cônjuges, aos vizinhos, ter esperança e perseverança.

 

Por isso, as batidas, misturando uma Marrabenta e Afro-Pop, estimulam a nostalgia ao ressoar do teclado característico de Pipas. As composições são modestas, interpretadas com um soltar de voz, em timbre grave: o equivalente melódico da fleuma de poesia cantada. Pois canta com alma, mestria, simplicidade e às vezes complexidade! E não será coincidência qualquer semelhança com Elsa Mangue, a quem ficam também reverentes nostalgias. As duas são feitas de poesia!

 

Transportando para estúdio a intensidade do ao vivo, Elvira Viegas reafirma-se no álbum em “Errei, pequei” e, abusando da sua criatividade, mistura elementos comuns de diferentes estilos do Afro-Pop, o que dificulta a sua categorização e, ao mesmo tempo, apresenta um material agradavelmente inusitado aos seus ouvintes. A música é uma obra completa, no sentido de que nenhum instrumento envolvido seria muito coerente se fosse ouvido sozinho. A bateria e a guitarra acompanham a voz, estonteante, que repetidas vezes clama: “Errei, pequei com o coração ao deixá-lo chorar”.

 

A música rasga o peito e reverencia a complexidade poética de Elvira. É sobre dor, prazer, paixão? Não, é sobre a aceitação: “Errei, pequei aos olhos dos homens, descobrindo o meu caminho, não pisando a areia movediça”, diz a música, levando à consciência sobre a necessidade de se ser livre e feliz. E a liberdade se espalha numa tonalidade primorosa. A voz está segura e confiante, o som invade o cenário e casa-se com a melodia até tudo explodir num refrão que alivia a tensão e resolve a harmonia com inteligência e bom gosto.

 

“Xikala Vitu”, o mesmo que sem nome, continua aqui a fazer subir o álbum e traz ao arrepio dessa viagem rítmica outros brilhos, outros sentidos. Aqui, Elvira recolhe-se mais, divide seus quatro minutos de dor com Sizaquel e Jenny, que também, no fundo, dão drama à música. Uma melodia que dói, que arrebata e nos traz à memória a covarde moda de assassinatos de parceiras em Moçambique. E questiona: “Como te chamarei se comeste a minha boca? Como te escutarei se grelhaste a minha orelha? Como irei brincar contigo se cozinhaste os meus seios? E as tripas o guisado?”

 

Elvira deita fertilizante nas suas canções melancólicas, e duas delas espraiam-se mesmo pelas lágrimas. Uma delas, Grito da Criança, é o auge de tudo o que Elvira sente e viveu: uma maratona por toda a sua geografia musical e afetiva, tempestade de bateria e melodia, uma crónica da crueldade do abandono familiar, uma obsessão pela moral e um fatalismo pelo caos que vivemos. A outra música, Coração de Pedra, um choro de outra mulher, é útil porque desmente a falácia de que toda a mulher-mãe é protetora.

 

Texto: Reinaldo Luís

 

Jornalista e Editor de Cultura

 

 

Pág. 14 de 167