Director: Marcelo Mosse

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Actualizado de Segunda a Sexta

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Carta de Opinião

“Carta Aberta”

I. As últimas de 2024 (em Portugal de Marcelo Rebelo de Sousa) mostram, através das legislativas, um cenário político cada vez mais assustador e perigoso. Disputadas por AD (PPD/PSD-CDS-PP-PPM); IL, BE, PS, PSD, etc., a questão que aqui se põe, a de saber se a democracia constitucional portuguesa – ao nível da qualidade da democracia internacional como exemplo do que é civilização democrática, do que é democracia constitucional, do que é rotativismo democrático (alternância democrática), do que é partilha de poder (democracia pluripartidária) – permanece firme sobre os alicerces do 25 de Abril ou se se trata de um ‘retrocesso democrático civilizacional’ parece-nos inevitável. Vozes há, mais ou menos otimistas e outras nem tanto! As otimistas, falam da existência da chegada da “tripolarização do poder” (AD-PS-CHEGA) – apesar de, em nossa opinião, não a reconhecermos como tal pela natureza belicista do Partido liderado por André Ventura na medida em que ao nível conjuntural e estrutural implica que haja consensos que nem sempre podem facilitar o processo de governabilidade à AD. Ou seja: um acordo com o CHEGA, não nos parece (em ciências políticas) aceitável; uma aliança com a extrema-direita de Ventura seria claramente um pacto com o ‘Diabo’; mancharia a própria AD e o histórico doloroso sobre a conquista da democracia portuguesa. Não é por acaso que Marcelo e Montenegro se “distanciam” de um eventual acordo político com o CHEGA.

 

II. Aliás, lembremos nas palavras de Marcelo o seguinte: (i) “(…) é importante, numa democracia que celebra 50 anos que não acompanhemos a evolução de democracias mais antigas e mais velhas que é o de aumento da abstenção em eleições que são todas elas muito importantes”; (ii) “os portugueses vão votar e, naturalmente, ponderarão aquilo que é o significado do seu voto e os portugueses têm demonstrado desde o 25 de Abril uma maturidade e uma sabedoria antecipando em muitos casos aquilo que muitas vezes só se percebe no futuro…” (Marcelo R. de Sousa, 10 de Março para o 1º Jornal da SIC notícias). Discurso realista de Marcelo, mas vejamos até onde vai o “realismo” de Marcelo na prática democrática. Primeiro ponto, Marcelo, ao jogar a democracia para as mãos do Povo, força os eleitores, quase todos, a terem de decidir tudo nas últimas 24 horas… isto é, na boca das urnas sendo resultado disso muitos dos votos, inconscientes. As sondagens de muitos meios de comunicação social, da Universidade Católica portuguesa – politizadas (ou não) para influenciar as decisões dos eleitores flutuantes – apontavam para este cenário de incerteza político-eleitoral sobre em quem votar. O grande pretexto usado foi o de que não pode ser primeiro-ministro quem não foi a votos. Ora, a pergunta aqui é: se o “voto de Marcelo” vale tanto quanto à indispensável e necessária estabilidade parlamentar… talvez seja hora de rever a Constituição para permitir que, reconhecendo a legalidade da dissolução parlamentar, situação superveniente possa ser decidida por meio de um referendo e não apenas por uma decisão presidencial (presidencialismo pós-dissolução?). E, olhem que mau Professor Catedrático… sempre atrasado… vem dizer sobre a importância do 25 de Abril nas vésperas das eleições, sobre os cuidados a ter com a implantação de uma “sociedade de radicais”, tudo isso para disfarçar ainda mais os seus intentos palacianos… numa altura em que já tinha “permitido” que o fascismo e o nazismo se instalassem na democracia portuguesa pluralista de Luís Vaz de Camões.

III. De facto, nunca, nunca na história democrática portuguesa a direita-centrista se aliou com um partido da extrema-direita radical. Nisso tudo, vemos Marcelo! Para nós, o grande autor da “tripolarização do poder” em Portugal, numa cadeira de rodas, de mãos-atadas modo “António Guterres perante as nações em guerra.” Não tenhamos ilusões, Marcelo “lança” a extrema-direita radical e o cenário de ingovernabilidade e austeridade na democracia portuguesa com pretexto na eleição e na inadmissibilidade de um cenário que integrasse um ‘primeiro-ministro interino’ de acordo com a democracia direita (Referendum); uma solução de estabilidade política, económica, social e cultural assente numa maioria relativa como a que foi encontrada e rapidamente dissolvida. Evidentemente, a conjuntura internacional, os conflitos armados internacionais (Rússia vs. Ucrânia; Israel-Hamas, etc) dariam um grande empurrãozinho ao populismo do CHEGA e óbvio que MARCELO sabia disso… Marcelo, suficientemente estudado nestas matérias, agiu com “intenção” dolosa; a intenção de aniquilar “parcialmente” a dimensão cultural – exigência da Carta das Nações Unidas, da Declaração Universal sobre os Direitos do Homem e do Tratado internacional que regula as questões sociais; a intenção de facilitar a ascensão da extrema-direita em Portugal e com isso tornar-se o autor da “tripolarização do poder” em Portugal, pelo menos de uma falsa ideia de “tripolarização do poder”. Como se há de calcular: é impossível negociar com radicais, narcisistas, machistas, mentecaptos, sectários e oportunistas que em nome dos seus interesses individuais e de um Portugal com um espírito ainda muito colonial (pelo número de idosos que tem, que viveram a época colonial e que não abandonam as ideias coloniais) vêm os seus ódios e sentimentos de vingança (íntimos e camuflados), resplandecer. É, pois, com hipocrisia que julgam o socialismo liberal sendo que também elas vivem dela… a história política tem vindo a provar que pela natureza humana e das leis os ciclos se repetem se não formos vigilantes…

 

IV. Uma “tripolarização do poder” como a que se pretende a todo o custo não vai a bem da democracia, da democratização da sociedade. Antes! A bom senso, vemos a bipolarização do poder continuar na prática democrática. Do mesmo modo que uma mulher adulta finge orgasmos para agradar quem ama, a ilusão da “tripolarização do poder” não deixa de ser importante aos olhos da comunidade internacional. É sempre importante manter o casamento aos olhos dos povos, mesmo que ambos (os cônjuges) saibam que não existe mais comunhão plena (…). Os media, uma vez mais, são os que mais sabem dar de comer aos ignorantes esses venenos promovendo essas falsas ideias. Um veneno que nos vai matando aos bocados… Não é o Ventura o principal autor da “tripolarização do poder”, é o “São MARCELO” – o troca tintas, o que se veste de “Bom Samaritano.” As “asneiras” e as “infantilidades” de Marcelo parecem infindáveis, nem SANTOS SILVA conseguiu escapar a rasteira dada por Marcelo… primeiro, estão os seus interesses individuais e políticos. Legitima a geringonça; depois, promove uma maioria parlamentar que certamente sabia que tarde ou cedo havia de resvalar para a ditadura da maioria… inflama o ego do Governo, com isso faz reacender nas massas o descontentamento mais ou menos generalizado; a bomba atómica é instalada e acionada por via da PGR, a tática mais perfeita! Onde há um campo colonial aberto, tudo flui naturalmente. Claro que a conjuntura internacional, dissemos, dão aqui um grande empurrão. Ninguém desconfia da “Justiça” – são sempre os homens de Deus (Roma locuta causa finita). Portanto, temos na Constituição formal portuguesa um sistema constitucional semi-presidencialista, mas que na prática MARCELO continua o Rei soberano, o grande mostro – o leviatã hobbesiano, o príncipe maquiavélico que emana o Estado sob as vestimentas mais sagradas do Estado – o respeito pelo Estado de Direito democrático e de Justiça social; um Estado de Direito que afasta o sistema presidencialista. Marcelo, sem fazer parecer, funciona como um verdadeiro camaleão. Tanto arrota santidade perante o grande público como destila o seu veneno em trajes do Rei João sem Terra, o tirano que forçou a imposição da Magna Carta em 1215. Assume a figura do Sto. Padre, o Francisco, e (ao mesmo tempo) o de Imperador-tirânico como se de uma monarquia ditatorial se tratasse.

 

VI. O “caso Galamba” foi o auge; a não exoneração de Galamba inflamou o ego de MARCELO, o menino mimado que não pode ser contrariado e/ou desafiado. Afinal ele é o grande Monarca. Custou a Costa (e seu Governo constitucional) – que tentou cumprir com excelso zelo e inegável diligência política as regras estabelecidas pelo Estado de Direito os seus direitos políticos constitucionais – uma demissão seguida de dissolução parlamentar que nos parece até hoje fruto dos violentos coices de MARCELO – um golpe de Estado palaciano bem estudado… Apesar disso, a estratégia de Marcelo terminou mal, isto é, para além de só conseguir criar uma mera “geringonça” (AL) na fase pré-eleitoral, o maior efeito dominó foi a má fama da existência de uma extrema-direita radical na democracia portuguesa e na democracia da União europeia (UE). Sobre a extrema-direita radical, dissemos, tendo em conta a formação académica de Marcelo, custa-nos muito a acreditar que tenha sido um “acto político” intencional… Como reza a religião de Marcelo, em Provérbios: “quem provoca o Rei, arrisca a vida.” Um duro golpe que certamente Costa (seu Governo) e a esquerda liberal ressentir-se-ão para sempre. Zezinho, o Sacerdote da Congregação Jesuíta, figura incontornável na doutrina e literatura cristã-católica, na sua Música Nênia chora. Chora perante a sepultura da democracia pluralista, (…) pela falta de inclusão e nós, seres sensíveis, choramos com ele por amor ao próximo: “tem piedade de nós Senhor, tem piedade do teu Povo; confiamos e mentiram para nós; É teu povo que não sabe mais o que esperar; Já não sabe mais em quem votar; Trapaceado e explorado e sem ninguém; Confiou e foi traído lá nas urnas; Manda-nos profetas; Manda gente honesta; Manda novos líderes, Senhor; Estes de agora não nos amam...” estamos certamente diante de um novo murro das lamentações made in MARCELO REBELO DE SOUSA.

 

VII. Espero que lhe sobre um grande peso de consciência. É com profundo desgosto que começo a acreditar que fomos iludidos. Pensávamos que apreciávamos o nosso Mestre-Catedrático por nos falar no espírito quando afinal só nos falava na letra. Mas as ciências já nos tinham advertido que um bom professor catedrático nunca se mete na política. O discurso inicial, o de nem a esquerda, nem o centro e nem a direita, mas o Povo no seu todo cego a pureza da nossa alma. No fim, revelou-se um grande promotor e defensor oficioso do seu Partido; depois de ter conseguido a estabilidade económica por conta das excelentes habilidades políticas de negociação com Bruxelas por parte de quem acaba de governar, Marcelo sacode o capote sem mestria nem elegância; sacode o Governo de Costa sem piedade, sob a deixa de um processo-crime para cima da democracia socialista. Ainda bem que continuamos democracia! A democracia de Abril, a dos nossos egrégios avós, não morre com a “ditadura” de Marcelo e Ventura. A dignidade da pessoa humana, muito apregoada e defendida (ao nível do direito internacional, regional/comunitário e estadual) não se defende só em papéis, vive-se; não se defende só para certos grupos, para ou entre iguais; defende-se a dignidade de e para todos, na medida e proporção da sua diferença, pelo simples facto de serem pessoas humanas. Não se defende só a disciplina, mas também o Amor. Viva Abril.

 

PhD in Law - Lisboa; Professor Auxiliar & Investigador da Universidade Católica de Moçambique. Antigo Director-Adjunto Pedagógico da Faculdade de Direito da Católica (UCM). Colunista do Jornal Impresso Canal de Moçambique (2012- ao presente).

terça-feira, 26 março 2024 07:05

Estamos a apodrecer

Não me canso de percorrer o mercado Mafurreira, tenho-o entranhado todos os dias, quase todos os dias nas manhãs, sem procurar, no entanto,  nada em especial a não ser a necessidade de rever as mesmas pessoas com as quais lido há anos, e assim, nas saudações que vão acontecendo quase mecanicamente, busco espraecer-me, mais do que querer comprar qualquer coisa. Todavia, vou notando em cada passo, que as minhas amigas deixaram de ser as mesmas vendedeiras dos tempos em que o negócio fluía, perderam o entusiamo.

 

Já são quase doze horas e muitas delas, a maioria, ainda não “fizeram” cem meticais. Outras nem sequer o mínimo que seria preciso para comprar pão para as crianças que esperam lá em casa, não há negócio. As pessoas passam nos corredores, apreciam os produtos colocados nas bancas, porém não compram, nem sequer perguntam o preço, o que torna o cenário ainda mais desesperador para as negociantes que podem voltar para casa de mãos vazias, e não poucas vezes, com os produtos deteriorados.

 

É triste querer comprar tomate, cebola e pimento, numa conta que não chega aos cinquenta meticais e ficar a saber que a senhora que me atende não tem troco, “nunca vi esse dinheiro desde que amanheceu”, e eram duzentos meticais que eu trazia. A companheira do lado também, sentada num saco feito esteira com as pernas flectidas e o corpo apoiado no braço, sem qualquer esperança, ainda não vendeu nada, e se vier a fazê-lo será com muita sorte. Então esta situação magoa.

 

Tivemos tempos em que as coisas floresciam. Havia muita conversa e risos no mercado, entre o movimento do dinheiro que entrava e dos produtos que saíam. O brilho no rosto das mulheres, que nos deixavam sentir o estado vivo da alma, ressurgia em cada gesto e isso era o sinal inequívico da aurora. Era assim, intensamente ao longo de toda a manhã, todos os dias, e aos finais de tarde quando os funcionários voltavam para casa e passavam por alí e enchiam o saco plástico para a alegria da família. Hoje não, o desespero é total, ninguém compra nada, não há “mola de impulsão”.

 

Os intervalos das onze para o “matabicho-almoço”, outrora passados quase em regabofe, com peixe frito, pedaços de frango, salada  e pão, chá quente com limão, e bastante tagarelice para alimentar o coração, passaram a ser frustrantes e dolorosos. Há um silêncio na Mafurreira. As mulheres passam maior parte do tempo a dormir no chão sobre as capulanas sem sonho, ninguém compra nada.

 

Ainda no mesmo espaço temos as peixeiras que passam o tempo todo espantando as moscas sobre o marisco. “Compra, amigo! Se não tens dinheiro, leva, vais pagar amanhã! Mas essa condescendência toda pode significar que está-se no fim da linha, ou no princípio do fim da linha, e o peixe vai apodrecer, e se calhar nós também.... estamos a apodrecer!

Há situações extremas que nos deixam com um enorme amargo na boca. A ser verdade a foto divulgada, uma enorme pompa e circunstância se criou em torno da inauguração de uma casa para um Administrador de um dado Distrito. A casa assemelha-se em tudo a uma dessas vivendas de luxo situadas nos bairros ricos de Maputo. Casas que não apenas custam enormes fortunas para construir, como depois para equipar e manter. Acredito que a ser construída pelo Estado é um modelo que irá ser replicado em todos os distritos do país. Um gasto significativo que perante tanta necessidade básica fica impossível não causar indignação.

 

A lista de necessidades básicas é extensa e mesmo infindável. Temos milhares de crianças sem carteira ou mesmo tecto para estudar, hospitais por construir, equipar e suprir dos mais elementares consumíveis, estradas por manter e construir, salários por pagar e melhorar e por aí fora. Mas assistimos a um chocante despesismo improdutivo que não pára de crescer e que consome uma não contabilizada fatia do orçamento público. Infelizmente, essa lista é tambem extensa. São as escoltas que se multiplicam, as viagens que não param, os constantes “retiros” que muitas instituições do Estado fazem em estâncias turísticas como se não tivessem salas nas suas instituições, banquetes e comemorações luxuosas repletas de champagne, vinhos e whiskeys que nada de mal teriam se não fossem pagos com o erário publico. Temos até dois governantes por província que consomem muito e não sei medir o que realmente fazem. Temos um Estado cheio de chefes e directores, cujas regalias dificilmente se traduzem na produtividade que deles se espera. Temos milhares de viaturas, muitas de luxo, muitas vezes em triplicado para o mesmo dirigente. E, por  detrás disso tudo, uma enorme  alocação de pessoal e meios necessários para manter essa máquina dispendiosa.

 

Um exemplo desse despesismo e das necessidades básicas que ficam por suprir está hoje a acontecer. Como consequência da inexistência de um sistema de drenagem adequado, a chuvada intensa que caiu sobre a cidade está a provocar o sofrimento de milhares de citadinos a níveis chocantes. Esta situação não pode ser atribuída a mudanças climáticas pois as chuvas intensas são um fenómeno natural já há muito existentes. O problema de fundo tem sido apontado pelos especialistas e vem se agravando por um crescimento desprovido de planeamento urbano cuidadoso que inclui os sistemas de drenagem. Por isso as zonas correctamente urbanizadas pouco sofrem com as chuvas e as desordenadas enfrentam calamidades por demais conhecidas. Sem qualquer dúvida o enorme desperdício em consumos não essenciais tem de ser revertido.

 

Está na hora de quem de direito reequacionar toda a gestão publica e fazer cumprir o papel do Estado em tomar conta do país e das necessidades dos seus cidadãos. Uma tarefa muito complexa e difícil, mas totalmente necessária. Um trabalho gigantesco que, contudo, tem de ser feito se queremos ter uma gestão a nosso favor. E, enquanto agora temos de gerir esta emergência em que há que acudir as vítimas das cheias, deixemos de julgar que a caridade abafa as nossas consciências, e comecemos desde já a tratar do que tem de ser feito para que não haja necessidade de caridade e possamos viver tranquilamente com ou sem chuva.  

 

António Prista

sexta-feira, 22 março 2024 08:51

Estamos a apodrecer

Não me canso de percorrer o mercado Mafurreira, tenho-o entranhado todos os dias, quase todos os dias nas manhãs, sem procurar, no entanto,  nada em especial a não ser a necessidade de rever as mesmas pessoas com as quais lido há anos, e assim, nas saudações que vão acontecendo quase mecanicamente, busco espraecer-me, mais do que querer comprar qualquer coisa. Todavia, vou notando em cada passo, que as minhas amigas deixaram de ser as mesmas vendedeiras dos tempos em que o negócio fluía, perderam o entusiamo.

 

Já são quase doze horas e muitas delas, a maioria, ainda não “fizeram” cem meticais. Outras nem sequer o mínimo que seria preciso para comprar pão para as crianças que esperam lá em casa, não há negócio. As pessoas passam nos corredores, apreciam os produtos colocados nas bancas, porém não compram, nem sequer perguntam o preço, o que torna o cenário ainda mais desesperador para as negociantes que podem voltar para casa de mãos vazias, e não poucas vezes, com os produtos deteriorados.

 

É triste querer comprar tomate, cebola e pimento, numa conta que não chega aos cinquenta meticais e ficar a saber que a senhora que me atende não tem troco, “nunca vi esse dinheiro desde que amanheceu”, e eram duzentos meticais que eu trazia. A companheira do lado também, sentada num saco feito esteira com as pernas flectidas e o corpo apoiado no braço, sem qualquer esperança, ainda não vendeu nada, e se vier a fazê-lo será com muita sorte. Então esta situação magoa.

 

Tivemos tempos em que as coisas floresciam. Havia muita conversa e risos no mercado, entre o movimento do dinheiro que entrava e dos produtos que saíam. O brilho no rosto das mulheres, que nos deixavam sentir o estado vivo da alma, ressurgia em cada gesto e isso era o sinal inequívico da aurora. Era assim, intensamente ao longo de toda a manhã, todos os dias, e aos finais de tarde quando os funcionários voltavam para casa e passavam por alí e enchiam o saco plástico para a alegria da família. Hoje não, o desespero é total, ninguém compra nada, não há “mola de impulsão”.

 

Os intervalos das onze para o “matabicho-almoço”, outrora passados quase em regabofe, com peixe frito, pedaços de frango, salada  e pão, chá quente com limão, e bastante tagarelice para alimentar o coração, passaram a ser frustrantes e dolorosos. Há um silêncio na Mafurreira. As mulheres passam maior parte do tempo a dormir no chão sobre as capulanas sem sonho, ninguém compra nada.

 

Ainda no mesmo espaço temos as peixeiras que passam o tempo todo espantando as moscas sobre o marisco. “Compra, amigo! Se não tens dinheiro, leva, vais pagar amanhã! Mas essa condescendência toda pode significar que está-se no fim da linha, ou no princípio do fim da linha, e o peixe vai apodrecer, e se calhar nós também.... estamos a apodrecer!

sexta-feira, 22 março 2024 08:15

Simião Ponguane

Conheci-o em miúdo pelos ecrãs da televisão e quis a rota da vida que trilhasse os seus ofícios e nos tornássemos amigos. Simião Ponguane era um profissional de características humanas incríveis: sem complexos de geração nem de concorrência, principalmente os que se geraram entre a TVM e STV, quando esta última emergiu; um jornalista todo-o-terreno e de todos os temas; uma fortaleza de integridade moral e ética.

 

Enquanto os jornalistas da sua época “reformavam” do chamado jornalismo de rua, Simião Ponguane mantinha-se presente, por convicção e profissionalismo, para cobrir fosse política, economia, sociedade ou cultura. Certa vez, enquanto jornalista de economia, fui destacado para cobrir a apresentação dos resultados económico-financeiros da Mozal. Dez minutos antes do evento, lá estava o Simião Ponguane humilde, com o seu pulôver, microfone nas mãos e bloco de notas preenchido de perguntas provocatórias. Com aquele sorriso falso, interrompido com questões embaraçosas, obrigou a Mozal a ir a fundo e facilitou a vida dos colegas jornalistas que, a partir das suas questões, obtiveram linhas de abertura de jornal. 

 

Não me sai da memória a parte introdutória da peça de Simião Ponguane: “O gigante Mozal tremeu, mas não caiu”, um recurso à figura de estilo para resumir as dificuldades transitórias atravessadas pela empresa.

 

Aberto a formas diferentes de pensar, outra vez me ligou: “Oh, Mucipo, que entrada fulminante para o teu debate na espectaculosa!!! – é assim que gostava de chamar a STV –. Isso é que é ser jornalista: incomodar e sacudir a poeira. Peço-te, envia-me os dados e as fontes do teu tema, hei-de querer seguir para os meus programas”. 

 

No trabalho de televisão, o jornalista e o operador de câmara funcionam como gémeos siameses. Era habitual ver Simião Ponguane, mais velho e mais experiente, com o tripé pesado nas mãos e em plena sintonia com o seu operador de câmara, enquanto nós, os mais jovens, resmungávamos e discordávamos dos papéis de cada um. Ele ignorou os caprichos e “protocolos” de Director de Informação e continuou a fazer trabalho de rua com o tripé nas mãos, mantendo-se assim na África do Sul, quando foi enviado como correspondente.

 

Uma outra vez, coincidimos numa viagem internacional e, já o conhecendo, antecipava momentos disruptivos. Por razões de organização, fomos informados de que ficaríamos mais um dia, para completar o trabalho no tal país. Simião Ponguane logo se insurgiu e obrigou a organização a elaborar uma carta ao PCA da TVM, Armindo Chavana à época, para que fosse autorizado a estender a viagem. Simião Ponguane era assim: pontual, honesto, vertebrado e com um exagerado respeito institucional, chegando a devolver as ajudas de custo das viagens à contabilidade da TVM, caso sobrassem ou, por alguma razão desconhecida, fossem acrescidas.

 

A TVM era o seu grande amor, mas por ter sido fiel à profissão que escolheu, foi conduzido ao ostracismo. Nos últimos anos, já castigado pela doença, lamentava o condicionamento aos órgãos de comunicação social e lembrava com saudades os momentos de liberdade em que o lápis azul deixava espaços de respiração.

 

Encarou o maldito cancro com a coragem que sempre o acompanhou no jornalismo. Fiquei a dever-lhe uma visita no seu rancho, no bairro da Matola Gare, onde se refugiou para a convalescença. Terá de ser noutro lugar! Vá em paz, Simião Ponguane. A luta continua!!!

A indústria de produção de óleo em Moçambique tem, na minha opinião, o desafio de ombrear com os maiores “players” da área no mundo. Antes de 2007, altura em que se decidiu isentar alguns produtos alimentares, incluindo o óleo, até esta parte, o que terá feito o Governo para que a indústria nacional pudesse ter acesso à matéria-prima, sabido que, antes disso, a produção destas oleaginosas era exclusivamente para a exportação.

 

Por outro lado, os produtores de oleaginosas, como Girassol, Gergelim e Soja, são produtores familiares que recebem os insumos agrícolas dos fomentadores. São os fomentadores que determinam o destino da produção. O Governo de Moçambique terá feito essa análise e, se sim, qual terá sido a conclusão. Colocar o produtor nacional a competir na compra dessa matéria-prima com os industriais da China e Índia, grosso modo, destino da nossa produção?

 

O Governo e os governantes devem deixar de pensar que as “potencialidades” se comem. As pessoas não comem “potencialidades”, as pessoas comem os produtos que saem da terra que tem potencialidade de produzir e o processo de produção é bastante complexo. Quando o governo decidiu alavancar a indústria do açúcar, assim o fez. Lembram-se do que se fez? Hoje, a indústria do açúcar pode ombrear com qualquer indústria da região, mas houve trabalho de base, inclusive, desenvolvido de forma multilateral e com apoio do estrangeiro. As oleaginosas não merecem o mesmo apoio? Veja abaixo as constatações de governantes e outros interessados.

 

“Quase a totalidade importa o óleo bruto e faz a refinação em território nacional. O objectivo era usar a nossa soja, o girassol e o algodão. Pelo contrário, fomentamos a criação de refinarias. Nós não queremos continuar a potenciar essa veia de negócios”.

 

Silvino Moreno, citado pelo Jornal Notícias, edição nº 32.189 de 19 de Março de 2024

 

“Hoje em dia, cerca de 70 a 80% do óleo consumido em Moçambique é de palma e isso não é só em Moçambique; se olhar para todo o mundo, mais de 60 a 70% do óleo consumido é de palma e todos nós sabemos que a sua produção exige determinadas condições agroclimáticas encontradas maioritariamente no sudoeste da Ásia. Nós não temos essas condições agroclimáticas para a sua produção e a única opção que nos resta é migrar do óleo de palma para abraçar as oleaginosas que são economicamente benéficas, tanto para o produtor como para o consumidor. Se isso acontecer, então aí temos uma oportunidade e, sim, deve começar de algum lado e precisamos, digamos, de cinco a 10 anos a contar a partir de agora”.

 

Shridhar Krishnan, vice-presidente e Director-geral da OLAM para África Austral

 

“O país tem potencial para gerar um volume de negócios anual de dois biliões de dólares, nos próximos três anos, com base nas oleaginosas e seus derivados. O facto foi tornado público hoje, em Maputo, pelo Ministro da Agricultura e Desenvolvimento Rural, na cerimónia de divulgação das oportunidades da Cadeia de Valor das Oleaginosas.”

 

In Celso Correia, Ministro da Agricultura e Desenvolvimento Rural, citado pela RM 28/02/2022

 

A isenção do IVA nos produtos de primeira necessidade, como é o caso de óleo alimentar, sabão e açúcar, foi decretada em 2007 e com o seu fim para Dezembro de 2023. Aos olhos do comum cidadão, o período foi longo e, de facto, algo deveria ter mudado em Moçambique. No entanto, é preciso olhar para o estágio do mercado nessa área, antes e depois da isenção, sobretudo, o que terá sido feito para que o cenário mudasse!

 

Primeiro, é preciso dizer aqui e agora, de forma clara e objectiva, que a produção das oleaginosas aqui indicadas, Gergelim, Girassol e Soja, é feita por pequenos produtores familiares, através do fomento, praticado por Empresas, com interesse na exportação dessas oleaginosas, pelo que não se trata de um produto produzido para depois se procurar o mercado e vender. Os fomentadores destas culturas têm os potenciais compradores internacionais posicionados para a aquisição do produto, por isso não se trata de negócio pequeno, é negócio de biliões de USD e como é que o produtor industrial consegue a compra destas oleaginosas!

 

Se calhar, aqui seria de questionar se houve algum trabalho que visasse a protecção da indústria nacional de óleos na aquisição da matéria-prima local! Se não, como é que uma indústria emergente moçambicana pode competir com os compradores destas matérias-primas a nível do mundo. Será que os nossos governantes desconhecem essa realidade? Ou esperavam que os fornecedores de insumos aos produtores familiares, que o fazem com o objectivo de, a posterior, recolher a produção e exportar, deveriam fazer para a entrega na indústria local? E qual seria o benefício destes? Sim, porque, pelo que se sabe, o nosso Governo não investe na produção de qualquer cultura alimentar e muito menos na produção das oleaginosas. Como disse, trata-se de produção, maioritariamente, familiar, com base no fomento!

 

O Governo de Moçambique é especialista em descobrir “potencialidades”, mas nunca se questiona sobre como transformar essas “potencialidades” em real produto para fornecer ao mercado e fazer com que os moçambicanos tenham acesso a preços baratos. Senhores do Governo de Moçambique, as “potencialidades” não se comem, as pessoas não vendem “potencialidades”, vendem um produto concreto, palpável e que possa ser medido e transformado. Ver “potencialidades” em tudo é bom, a questão é o que acontece depois da constatação.

 

Adelino Buque

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