Director: Marcelo Mosse

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Carta de Opinião

terça-feira, 10 março 2020 07:18

Um bitonga chamado Nhalégwè

Há cinquenta anos – tinha vinte – que saíu daqui para nunca mais voltar. Os seus irmãos também, e tantos outros dessa geração, entraram num êxodo para terras longínquas, e lá constituíram famílias cujos filhos chegam a este lugar como estranhos. Não conhecem as raízes dos pais. Pior do que isso, desembarcam, em viagens de  férias, e correm imediatamente para as casas de hopesdagem previamente reservadas. Nos “lodges”. Aliás o que lhes apela não é a história genealógica dos seus progenitores. São as praias. E a necessidade urgente do gozo da liberdade.

 

Todos lhe chamavam carinhosamente por Nhalégwè, nome bitonga dado às gaivotas, mas hoje poucos se vão lembrar deste homem, tirando os que com ele partiram de vez, e os poucos de nós que ficamos. De resto o tempo vai esbatendo as memórias.

 

O Café Lobito está abarrotado, e a única mesa que ainda pode acolher mais um, é a minha, onde estou sentado tomando chá de camomila,  mesmo assim sentindo-me asfixiado numa cidade (Maputo) que já não tem poros. É por isso que escolhi estar perto da montra, de costas para a maioria, o que me permite vizualizar a intensa “Eduardo Mondlane”. Contemplo os carros que descem e outros que sobem, e as pessoas apressadas que se roçagam umas às outras. Pelo menos essa azáfama recorda-me que estou vivo.

 

Atrás de mim há um burburinho de gente que vem tomar o pequeno almoço rápido, ou um simples café, e ainda o tilintar das chávenas poisando constantemente nos piris. É o início de um dia de trabalho, e as tertúlias irão esperar para o final da tarde, onde, para além do café, pode vir uma caneca de cerveja. Mas eu estou livre, amanhã volto para Inhambane, minha eterna cidade, onde nunca vai  faltar oxigénio para as minhas botijas espirituais. Onde não há este ram-ram todo que me enlouquece.

 

Olho para o relógio, são oito horas e trinta e cinco minutos, e logo a seguir, no meu horizonte, vejo um homem alto, magro, cheio de barba da cor de prata, cambando no passeio, numa passada desinteressada. Pelo andar deduzo que usa prótese na perna esquerda, e pode estar, por assim dizer,  incapacitado para encetar uma corrida, a menos que a prótese que o sustenta seja de carbono, como as duas postiças de Oscar Pistorius.

 

Paguei a conta. Saí e segui na direcção do personagem que me fascina pela barba da cor de prata, e pelo estilo que parece de um bailarino. Ele dança na minha imaginação, uma dança desconhecida. Usa boina preta que cobre completamente a cabeça, camisa de ganga negligenciada, calças  Gins, e nos pés calça botas a Beatles, sem conseguir, contudo, disfarçar o defeito de um pé que não dobra, o que reforça a minha suposição de que este indivíduo tem na verdade uma prótese na perna esquerda.

 

De repente o tempo mudou e começou a chover, o que nos obrigou a interromper a marcha para nos abrigarmos na varanda de um daqueles prédios perfilados na “Eduardo Mondlane”, entre a “Salvador Allende” e “Amilcar Cabral”. Estamos muito perto um do outro. Olhei bem para ele, agora com “lupa”, e senti um gelo na espinha dorsal.  Saudei-lhe timidamente e perguntei, o senhor não é o Nhalégwè!?

 

Não podia estar equivocado. É ele! Porém, o que eu não esperava, e esperava também, é que o dito cujo me vergastasse, Nhalégwè é teu avô!

 

Deu-me costas e passou para outro extremo do nosso “esconderijo”, à espera, sem voltar a olhar para mim uma única vez,  que a chuva, que cai em catadupa, cessace. Mas esta atitude é de muitos bitongas, que detestam ser reconhecidos como tal, sobretudo quando estão em Maputo.

Há oito de Março de 1977, no Pavilhão do Maxaquene,  o  Presidente Samora Machel reuniu com alunos que deveriam prosseguir com seus estudos, na 10ª e 11ª classes, e comunicou-lhes que a partir daquele momento já não tinham mais sonhos. De que em diante: “Não é aquilo que eu quero, não é aquilo que tu queres, é aquilo que nós queremos, aquilo que o povo quer”. E o dito povo, reunido dias antes,  no seu  III Congresso,  realizado em Fevereiro de 1977,  decidira que devia sacrificar o sonho destes  jovens  em prol dos desafios que o país enfrentava na altura. Da data, do  discurso presidencial e do percurso dos jovens de então, nasceu a geração “8 de Março”.

 

Sobre os feitos e defeitos da decisão e da própria geração “8 de Março” muito já foi dito e escrito. De tudo apenas não se compreende  uma coisa: por que carga de água a geração “8 de Março”  não  tomou o PODER? (não confundir tomar o Poder com servir o Poder).

 

No debate sobre o acesso e controle do Poder no seio do partido dominante, e não só, esta geração  não é tida e nem achada e bem que poderia ser uma das alas ou grupo influente. Aliás, a sua participação e influência poderia abarcar outros quadrantes de intervenção pública nacional.  Neste Domingo e por ocasião da celebração da passagem do   43º aniversário do encontro de 77, é expectável  que os “oitomarcistas” tenham aproveitado para, entre outros,  responderem a pergunta, sobretudo e  agora que a reforma e as cobranças da consciência,  batem-lhes  a porta, e esta, para alguns, já se encontra escancarada.

 

Numa recente  discussão  com amigos e a propósito da pergunta,  ficou patente  que a geração “8 de Março”  teve (porventura continua a ter)  todas as condições para conquistar/exercer/controlar o PODER.  Fora o denominador comum de terem sido “vítimas” do 8 de Março,  os “oitomarcistas” são, na sua maioria, urbanos,  com estudos, vasta experiência profissional e de governação e com uma profunda inserção  em todos os sectores-chave de actividades a nível de todo o país, incluindo do partido dominante. Assim sendo, não se compreende que em matéria de Poder, a geração “8 de Março”,  não tenha feito melhor que a anterior geração, a geração “25 de Setembro”. Esta , maioritariamente rural, sem estudos, sem experiência profissional e muito menos inserida em sectores-chave da máquina  colonial,   conquistou o Poder, exerceu-o e controla-o até aos dias que correm. Desta geração,  fora a vénia, é importante que se tire  dela as devidas lições em matéria de manutenção e expansão do Poder.

 

Numa comunicação do anterior Presidente da República (PR), Armando Guebuza, por ocasião da passagem do 27º aniversário do 8 de Março e diante de representantes da  respectiva geração, disse:    “Aproveito esta oportunidade para vos lançar um desafio para que se unam e  se organizem (…) para transmitir às gerações mais novas a necessidade de aprofundar os conhecimentos sobre os processos políticos e históricos do nosso país, para neles buscarem referências, exemplos e inspiração, …”. Neste trecho, o então PR faltou afirmar: “Que a geração 8 de Março transmita às gerações mais novas a necessidade e a forma de conquista e manutenção  do poder de acordo com os padrões de cada época”. O PR não o tendo tido, é compreensível. Porém, é incompreensível que os destinatários da comunicação  nada tenham feito para que tal fosse um dos legados a transmitir.

 

Nas celebrações dos 38 anos do “8 de Março”, em 2015,  um representante da associação com o mesmo nome, intervindo numa sessão de auscultação  à convite do actual Presidente da República, Filipe Nyuse, disse: “De nada vale dizer constantemente que nos meus tempos, nos meus tempos, quando daí em diante nos alheamos de tudo o que ocorre à nossa volta” (Jornal Noticias, 18/03/15).   E uma das alheações  - e bem  à volta dos “oitomarcistas”-   foi a de terem deixado o Poder passar.

 

Infelizmente, e por terem deixado o Poder passar, a história não absolverá a geração “8 de Março”.  Dela,  apenas o registo da prontidão na resposta ao chamamento da pátria, e a podridão na resposta ao chamamento da cidadania.

 

 

sexta-feira, 06 março 2020 07:59

Os ajoelhados

O brasileiro e professor de Filosofia, Clóvis de Barros Filho, define os valores como identidade. Ele diz que ao se apresentar a alguém pela primeira vez você fala dos seus valores para a pessoa saber quem você é na essência. Ou seja, quando alguém pergunta "quem é você?", você começa a falar das escolhas que você fez na vida. O seu percurso de vida. 

 

E eu cá digo, se você quer conhecer um Estado, olha para os seus governantes. Se você quer saber a identidade de um Governo, olha o que fazem os seus dirigentes. Isto é, o que responde a pergunta "que Governo é este?" é aquilo que os dirigentes que suportam esse governo fazem. Se você quer conhecer um país, veja as atitudes do seu povo. O que constrói uma nação são as escolhas, as crenças e a identidade do seu povo. Cada um é indissociavelmente o reflexo do outro.

 

Ora, sendo o camarada Edson Macuacua a figura indicada pelo Presidente da República Filipe Nyusi como Secretário de Estado da província de Manica espera-se que este seja o seu fiel representante. Ou seja, Edson Macuacua é Filipe Nyusi em miniatura. Edson Macuacua é a identidade de Filipe Nyusi. Aquilo que Edson Macuacua faz, enquanto Secretário de Estado da província de Manica, define os valores do Estado moçambicano.

 

Não sei em que circunstâncias foram tiradas as fotos do camarada Edson Macuacua que circulam nas redes sociais. Nas imagens, o camarada Edson Macuacua aparece sendo "coroado" com um trono em madeira, sendo dadivado com frutas da época e adornado em camisas de capulana. Mais do que simples gesto de "presenteamento", a cerimónia chama atenção pelo seu ritual de idolatria faraónica. O mais preocupante é o rasgo de sorriso que ele faz ao ser adorado e o a vontade dos adoradores.

 

Na verdade, se aquilo foi um evento de Estado, eu, particularmente, não vejo motivo de tanta celeuma. Não vejo motivos de grande indignação, uma vez que aquilo define a nossa identidade. Se Edson Macuacua é a melhor escolha de Filipe Nyusi para Manica e Filipe Nyusi é a melhor escolha do povo para Moçambique, então, aquela cerimónia define o povo que somos. Aquele acto representa os nossos valores, a nossa identidade enquanto povo. 

 

Paremos, então, com essa indignação hipócrita. Se trocarmos a imagem de Macuacua pela de Nyusi, vamo-nos aperceber que essa revolta não faz sentido. O Macuacua não fez nada de estreia. É assim que tratamos os nossos governantes, desde o Chefe de Estado até o chefe de quarteirão. Aquilo é o que nós somos. Somos um povo de cócoras sem motivo. Um povo que nunca se ergue. Um povo que dá até aquilo que não tem. Um povo uniformizado. 

 

O problema não é de Edson, nem de Nyusi. O problema é do nosso conceito de governante. Os nossos governantes são o reflexo do que somos como povo. São as nossas escolhas. Os nossos valores. A nossa identidade. Antes de pensarmos em mudar os nossos governantes, mudemos as nossas escolhas e os nossos valores. 

 

Quando perguntarem "quem são vocês?", responda: "nós somos os ajoelhados". As pessoas vão entender. O mundo sabe que nós existimos. Não é uma condição, é uma escolha.

 

- Co'licença!

quarta-feira, 04 março 2020 09:01

Os últimos delírios de Samora Machel *

A entrevista está marcada para Chilembene, terra natal do presidente mais borbulhante da África, em todos os tempos, que pecava entretanto por pensar que as coisas deviam obedecer ao ritmo da sua loucura. É manhã solarenta de um domingo que pode estar a começar da pior forma, ou seja, Samora evoca a Deus desmentindo todos os Seus preceitos. Ele disse-me de frente, que Jehová nunca existiu. Chegou a afirmar, na sombra frondosa onde estamos sentados, de homem para homem, apesar de ele representar o símbolo maior do poder, que a bíblia era obra de paranóicos. Mas esse pensamento, claramente era um delírio.

 

Samora Machel passou a noite anterior ao nosso encontro numa cubata desguarnecida, dormindo na esteira de palha previamente preparada, completamente nu, sem travesseiro, respirando o perfume tóxico dos incensos trazidos por curandeiros ndawus de Nova Mambone. Era necessário que assim fosse, segundo soube do próprio durante a entrevista. O poder não se oferece, arranca-se, e ele sabia que estava cercado por bajuladores e gananciosos que nunca o quiseram na cadeira mais importante da governação, por o considerarem  inculto e incapaz de dirigir um Estado moderno.

 

Fui alojado no mesmo lugar, noutra cubata, ao lado da que acolhia Samora, e pude aperceber-me que o homem passou toda a noite a balbuciar. Mas  tive que fazer um  esforço para me abastrair daquele pesadelo porque não era nada comigo. Eu fui ali apenas para entrevistar o Presidente da República, que me parece, desde o primeiro dia que o vi, um grande actor que mesmo assim, carece de descernimento. Ele é capaz de agir como um touro num supermercado.

 

Acordei muito cedo, na madrugada que ainda recebia as últimas gotas do luar. Espretei lá fora pelas frestas da casota, e vi Samora saíndo do seu casulo vestindo uma saiota vermelha, cingida no lombo por um cinturão de pano preto. Estava descalço.  Atrás dele vinha uma mulher com seios enormes à mostra, segurando na mão esquerda um rabo de boi que ia introduzindo num recipiente que trazia noutra mão e chapiscava nas costas do Presidente, e eu fartava-me de rir perante aquele espectáculo ridículo. Nem parecia Samora Machel que rugia nos palanques, Independência ou morte!

 

Depois da “ducha” e do pequeno almoço, fui escolatado por dois brutamontes para o lugar onde vai decorrer a sessão de perguntas e respostas. Indicaram-me a cadeira onde devia sentar e reparei que não se diferia da outra que acomodaria o também apelidado “leão de Gaza”, embora esse epíteto pertencesse a Ngungunhana. E eu estou ali, sentindo com prazer o cantar do vento leve, enquanto espero pela sumidade do nosso tempo. Samora come na cubata, à mão, sentado na esteira com as pernas entreabertas. A panelinha de barro bruto, abastecida de xima e carne, está aconchegada muito perto dos testículos, que estão à mostra diante da mulher com os seios fartos e livres.

 

Serviram-me uma garrafa de água mineral importada da Rússia, para ir bebendo enquanto espero pacientemente pelo “boss”, e eu divirto-me com todo este cenário comandado pelo silêncio. Venero o silêncio. O silêncio é o melhor palco para amar. E o amor está acima de todas as coisas. “Vais amar o próximo, assim como de amas a ti próprio”.

 

Samora Machel sai da cubata vestindo, agora, o uniforme militar que o torna personagem destacável. É um leão saciado, pronto para novas batalhas. Mas contrariamente ao felino rei da selva que ruge depois de encher o bandulho, Samora ruge porque está com medo. Tem medo dos que lhe rodeiam.

 

Olho para ele e percebo que não está seguro. Titubeia na minha direcção. Parece um sonâmbulo que caminha para o fim,  e eu levanto-me para saudar  o ídolo das massas. Samora já não se envaidece. Muito menos embevece. Ele degenera. Está sitiado por um batalhão armado que o protege. Parece Ngungunhana quando estivesse ébrio, metia medo. Só que, Samora Machel, para além de meter medo, ele também está com medo. Não consegue responder às minhas perguntas. Delira em todo o tempo dizendo, A luta continua!

  • * Texto fictício
segunda-feira, 02 março 2020 08:53

Eutanásia nas estradas moçambicanas

Em Moçambique, uma estrada em péssimas condições elimina a vida de um  veículo e  salvaguarda a dos seus ocupantes. Por sua vez,  uma em boas condições e por conta de acidentes, elimina a vida de ambos, a do veículo e a dos ocupantes.  Neste contexto, não sei se faz algum sentido (atenção o próximo Orçamento de Estado) pedir que o Governo melhore as condições de transitabilidade das estradas. Alinhar nessa diapasão não será o mesmo que o Governo defender a eutanásia (morte assistida) ou, no mínimo, que esteja em curso, um  projecto oculto e  selectivo de eliminação de certas franjas da sociedade.

 

O intróito vem a propósito da elevada  sinistralidade nas estradas moçambicanas, em particular na N4, aqui citada apenas por razões de proximidade. Igualmente, o intróito vem a reboque do recente debate parlamentar na antiga metrópole, Portugal, referente a despenalização ou não  da eutanásia.

 

Tenho dito, em privado, que graças a  manifesta incapacidade do Governo em melhorar a qualidade das estradas que o nível de sinistralidade não é maior e a população moçambicana não é inferior aos  actuais  28 milhões. A tal  incapacidade ainda concorre para desestimular a compra de automóvel, contribuindo assim para um ambiente são quanto a poluição atmosférica. De per si, isto já seria o suficiente - barata e ao alcance dos moçambicanos – para se apostar como uma fórmula/estratégia rumo ao desenvolvimento sustentável. As Nações Unidas agradeceriam imenso por este contributo imensurável do país ao mundo.

 

Mas, infelizmente,  fora melhor denominação, esse não é o entendimento. Do debate nacional sobre a sinistralidade, emergem várias soluções que recaem sobre a (i) fiscalização, a (ii) infra-estrutura e o (iii) comportamento humano. A primeira, porque à troco de alguma cifra o regulador deixa passar  o infractor (automobilista). A segunda, porque a melhoria não previra um separador físico entre os dois sentidos. A terceira, porque o automobilista se fez à estrada embriagado e o peão  sem respeitar as regras ou os pontos de travessia.

 

Dito isto, pergunto: haverá algum interesse para que assim continue? No mínimo e pelo resultado (elevada sinistralidade), a contínua insistência governamental na melhoria das estradas nacionais alimentam severas desconfianças em relação aos reais interesses do Governo. Em tese, e perante os factos, o  Governo aposta os parcos recursos dos contribuintes na  criação de  condições para o luto das famílias dos próprios contribuintes.  Um assunto para perguntar: ajudar o outro a  morrer, não será  um crime?

 

Pelos vistos não é crime. E aqui entra o debate sobre a eutanásia em Portugal. Dele, retive o essencial -  através da  seguinte frase:  “O suicídio não é um crime em nenhum país. Parece-me um pouco ridículo que seja crime ajudar alguém a fazer uma coisa que não é crime.” (Philip Haig Nitschke, activista pela morte assistida ao jornal português expresso do dia 20 de Fevereiro corrente). Neste sentido, e extrapolando para a realidade moçambicana,  quem se faz à estrada ao volante e embriagado ou que não cumpra as regras de travessia é um suicida. E o suicídio em Moçambique também não é crime, tanto para quem o cometa e por arrasto, para quem o ajude nessa empreitada trágica.

 

Todavia, e perante a insistência governamental em aprovar e executar anualmente um Orçamento de Estado que aposte e priorize a melhoria das estadas,  não me admira que um dia, os defensores dos direitos humanos processem o Estado por reiterada  tentativa de genocídio.

sexta-feira, 28 fevereiro 2020 09:03

Ecos do 14 de Fevereiro: a ameaça do florista

O 14 de Fevereiro, o dia dos namorados,  já passou, mas as suas incidências ainda se fazem sentir por estas bandas da capital da Pérola do Índico. Desta vez  por conta de um florista que ameaçara um  seu cliente assíduo da data em apreço e de outras ocasionais. A ameaça: executar uma acção extra-legal ou judicial contra o seu cliente, a quem acusa de ser um  devasso social.

 

O histórico: no dia 14, desloquei-me ao estabelecimento do  florista para os devidos efeitos. No local deparei-me com  um alvoroço total. Pela primeira vez, e diante do citado cliente, o solícito florista se recusava a vendê-lo  as habituais flores bem como a respectiva entrega às destinatárias.  O alvoroço recheou toda a hora do almoço, período das rosadas visitas do cliente assíduo . A desordem foi tanta a ponto do florista fechar o estabelecimento.

 

Em pouco tempo da minha estadia no local deu para perceber a querela: o florista queria dar um “BASTA” ao modo de vida de “Don Juan” do seu cliente. Isto depois de quase duas décadas   de préstimos inestimáveis e a ponto de se sentir cúmplice e abusivamente usado pelo histórico cliente.  Este, todos estes anos, recorrera aos serviços do florista para presentear a sua  “Rosa”  (o jeito carinhoso que ele trata a mulher) e a toda prole  da sua concubinagem, que até não lhe caía mal na imagem de bem sucedido. Aliás, e ao que parece, um direito constitucional que o florista não se importava em auxiliar o seu cliente na sua materialização. Isto  foi até ao passado dia 14 de Fevereiro. O dia em que a nova concubina a ser presenteada -  passando  a pertencer ao harém do seu cliente - era a  filha caçula do florista. Não havia nenhuma dúvida, pois o endereço do cartão das flores  era o da casa do florista. 

 

No auge do alvoroço, fui um dos convidados - pelo florista - a ver as provas que  sustentavam a acusação. Até então nunca vira um arquivo metodicamente organizado. Uma sistematização comparável só a da Alemanha dos tempos do III Reich. Cada concubina tinha a sua ficha, contendo  os dados pessoais e outro tipo de informações adicionais. Em cada ficha os anexos de fotos, vídeos,  gravações áudio dos pedidos das flores e a de indicação do nome e endereço das destinatárias,  as cópias dos cartões que acompanhavam as flores e por ai em diante.

 

O passado securitário do florista foi uma vantagem na organização meticulosa do arquivo.  E desta vez, um outro tipo de vantagem do seu passado securitário, amiúde, e a par da abertura de um processo judicial,  era por ele avocado.  À margem do bate-boca, e a propósito da querela “florista vs assíduo cliente”,  o  recente debate em torno da penalização da invasão a privacidade quase que resvalava em pancadaria entre os restantes clientes.

 

Infelizmente e por razões de compromissos inadiáveis, tive que deixar  o estabelecimento num momento de impasse quanto ao desfecho da querela, sobretudo,  à luz do debate sobre a penalização  ou não da invasão de privacidade. Haviam dois grupos. Um que defendia o florista, reforçando o argumento (a coesão e paz social)  em torno da  acusação: o cliente assíduo  é de facto (e gravata) um devasso social. E o outro grupo que defendia o cliente, acusando o florista de devassa da vida privada. Quid Juris?

 

Enquanto deixava o estabelecimento e para relaxar a briga  liguei o auricular e na rádio tocava uma música brasileira. Era a música de  Jorge Aragão,  mas cantada por Emílio Santiago. Estava no fim e dizia: “Malandro! /Só peço favor/De que tenhas cuidado/As coisas não andam/Tão bem pro teu lado/Assim você mata/A Rosinha de dor...”