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Carta de Opinião

terça-feira, 17 dezembro 2019 07:24

RESGATE – A minha escolha para o melhor de 2019

Escrevi esta crónica em dezembro de 2018. Mês em que o filme RESGATE fez a sua correção de cor, em Lisboa. Sete meses antes de estrear. Vimos o filme nos estúdios da Tobis, no Lumiar, para quem entende de cinema percebe a simbologia deste momento. O que escrevi não pode continuar na gaveta. 

 

Teria sido um ótimo spoiler. É o melhor que Moçambique levou ao Mundo em 2019. Podem acreditar. Já esteve em cinemas comerciais em Portugal, bateu o Rei Leão e foi presença assídua em festivais na Europa e em África. Agora lança o seu CD e streaming. 

 

Uma produção independente e a força de querer, de um grupo de pessoas que não desiste de sonhar, num país em que os velhos insistem em não nos deixar assumir um lugar merecido, suado e especializado, e quem vem de fora só quer sugar. O RESGATE já bazou! 

 

“Assim que entra a banda sonora dá um arrepio. Vêm memórias. Vem o presente. Vêm os dias quentes do nosso grande Maputo e a esperança que acompanha "Bruno" a caminho de casa. Ao sair da penitenciária ele quer resgatar a sua família e ser feliz. 

 

Esta podia ser a crónica de um filme normal e de uma realidade perfeita que queremos ver retratada nas telas de cinema.

 

Histórias de amor e finais felizes. O RESGATE não é isso, é muito mais. 

 

Tive a oportunidade de assistir a esta produção independente escrita por Mickey Fonseca e direção técnica de Pipas Forjaz. 

 

É um ato de coragem de um grupo de pessoas que arriscou. Um filme pensado com os pés no chão e que conta a história da minha geração. 

 

Uma geração que pertence a um dos países mais lindos do mundo que todos os dias se confunde com um ecossistema que nada tem a ver com a realidade do dia a dia de milhões de jovens que passam ao lado das "boas práticas" e da cooperação de Moçambique com o mundo. 

 

Homens e mulheres que já são pais e são filhos de uma independência que os torna dependentes da necessidade. RESGATE vem confirmar que o cinema feito em Moçambique e por moçambicanos já não contempla apenas os passeios longos e bucólicos na marginal, nem a linguagem poética e pós-colonial que agrada a gregos e a troianos e atrai financiamento para contar histórias que já não nos pertencem. 

 

Volto a reiterar que é o dia a dia, a vida das ruas de muitos homens com quem nos cruzamos no Estrela (mercado) quando vamos às compras ou recuperar uma peça do carro que de manhã já não acordou nele. 

 

É a vida daquela moça que nos vende cabelo e cruza a cidade de norte a sul para garantir a sua subsistência e a dos seus. É uma história de amor, também, onde duas almas se cruzam, se amam e acreditam num futuro melhor. 

 

Sol de pouca dura já que, como contava há pouco, assim que "Bruno" se vê em liberdade começam as tentações. O seu olhar terno esconde uma já vida anterior e assim que consegue chegar a Marracuene para reencontrar a sua mulher e a sua filha, tudo volta. Nesta ficção vive-se o minuto, mas não aquele minuto à espera que acabe e sim o viver do que vem a seguir. 

 

Filmado no grande Maputo e contemplando as zonas de Boane, Marracuene e Matola, RESGATE não é um filme da town e sim o epicentro de onde tudo se passa. Não é nos prédios altos do cimento que se luta pela sobrevivência, que se arranjam gones e que se perdem vidas. É numa periferia em crescimento que se sente o pulsar desta geração. 

 

No decorrer da trama acredito que Mickey tenha olhado para esta realidade e prestado a justa homenagem à Matola, esta cidade a oeste de Maputo. Cidade onde cresceu e que conhece com os olhos fechados e que serve de pano de fundo para expelir memórias adaptadas aos nossos dias. Aos cinemas que ia na infância.  

 

Depois de matar saudades da sua família, “Bruno” decide mudar de vida. O que ele não percebe é que não basta querer e é preciso poder. Refém do seu passado e com problemas que lhe atrasam o futuro o Mulato ou "Mullas" como lhe chamam os bradas regressa ao mundo do crime. 

 

Mesmo apesar de ter tentado procurar trabalho, a emergência de querer resoluções volta a arrastá-lo para aquilo que hoje em dia chamamos de DNA. O que ele acha que sabe fazer e se sente confortável. Crime. Aquela que podia ser a sua a mais fácil tarefa torna-se no seu maior problema. 

 

RESGATE aborda de forma nua e crua uma situação que parece não ter fim na vida real. Os raptos. Talvez por isso o crowdfunding para o filme tenha sido mais efetivo do que ser apoiado por marcas que não se querem associar ao maior tabu do país, mas que leva famílias de norte a sul ao desespero e são desembolsadas milionárias quantias em prol da liberdade! Antagónico, não é? 

 

"Bruno", o protagonista e ator de primeira viagem revela-se um especialista em atividades criminosas. Com o seu ar contrariado, doce e perdido acaba por se tornar a peça principal dos raptos, o que contrasta com o speed do seu amigo de infância que o resgata para o seu novo ou velho presente. 

 

Presente envenenado, já que a quadrilha que acompanha acaba por cometer erros de amador. À medida que a história se vai desenrolando na terra vermelha transporto-me para qualquer outra cidade europeia. Podia ser Paris e os seus arredores ou os Banlieues onde as oportunidades também são escassas e rapidamente a pressa pode ser fatal. 

 

É o que me agarra ao filme. Mickey Fonseca mostrou o seu país, mas saiu dele. Não almeja o perfil hollywoodesco, mas é filme para salas de cinema em todo o mundo.  A abordagem contemporânea e o slang/calão utilizado é local, mas o problema é global. Toca na ferida de uma globalização que não acompanha mentalidades. 

 

Os diálogos e os momentos de humor fazem-nos relaxar no meio da tensão e a nós, moçambicanos, faz-nos sentir em casa. Posso arriscar que todos, um dia, conhecemos ou tivemos contato com uma das personagens deste filme e que já nos questionámos o porquê da escolha desse caminho. 

 

A banda sonora pode ajudar a dar respostas, uma vez que foi produzida a dedo. Podemos chamar-lhe homemade. Detalhes que tornam RESGATE ainda mais especial. Juntam-se os temas de Azagaia, o rapper que coloca o Povo no Poder, pois é do Povo que se fala.”

 

Do tribunal distrital de Brooklyn, cidade de Nova Iorque, Estados Unidos da América, ficamos a saber, segundo a acusação americana, que Jean Boustani  um gestor sénior de uma empresa estrangeira relacionada com as ditas dívidas ocultas é um Robin Hood de avesso. Este ficou famoso por tirar dos ricos para dar aos pobres. Por sua vez, Boustani, entre outros, por ter sido acusado (e já absolvido) pelos americanos de tirar dos pobres (moçambicanos) para dar aos ricos de várias nacionalidades, incluindo a moçambicana. 
 
 
E o que Boustani tem a ver com a ajuda ao desenvolvimento (o apoio dos países ricos aos países pobres iniciado com o pós-independências, sobretudo de países africanos)? 
 
 
A luz e concluindo o que um antigo líder mundial (já falecido e creio de nacionalidade israelita) disse um dia e a propósito do que podemos apelidar de "bostanismo" -  subtrair dos pobres e dar aos ricos – o seu modus operandi é o mesmo da ajuda ao desenvolvimento. Segundo o tal líder esta ajuda consiste em tirar dos pobres dos países ricos e dar aos ricos/elites dos países pobres. E no circuito deste exercício sobressaem os “beltranos da vida" que pululam dos dois lados: o do doador e do doado. 
 
 
A literatura sobre a ajuda ao desenvolvimento atribui a esta mais fracassos do que sucessos e já passam mais de seis décadas. No mesmo trajecto se encontram as boas intenções de Boustani em ajudar Moçambique com o seu alegado projecto de protecção marítima. Por idêntico modus operandi e efeitos o Jean Boustani foi levado à barra do tribunal. E em relação aos protagonistas da ajuda ao desenvolvimento: quem ou a quem cabe leva-los à barra do tribunal?  
 
 
Certa vez, a respeito dos "beltranos da vida", num convívio de celebração - entre os beltranos do Norte e os do Sul – por ocasião do início de mais um projecto (taxa de sucesso) do apoio externo ao desenvolvimento, um dos "beltranos do Sul" tomou a palavra - em representação de um consórcio também regional e receptor da ajuda - para agradecer aos visitantes por mais uma "taxa de sucesso". Em seguida fez uma caracterização do circuito (exógeno e endógeno) do sistema da ajuda ao desenvolvimento, sobretudo como os protagonistas, de fora e de dentro, incluindo ele, tiravam proveito do que chamou de  "benesses do sistema" no lugar de males do sistema. 
 
 
E para fechar a sua intervenção pediu um "tchim-tchim” em nome de mais e mais projectos em benefício das comunidades mais carenciadas, acrescentando de que tais comunidades mandavam um abraço de eterna gratidão. No momento do brinde ainda clamou um suculento “Is a good system, comrades”, arrancando aplausos e gulosos goles dos homólogos, internos e externos, presentes na celebração.  
 
 
Por estes dias sinto este episódio nos olhares da pérola do índico e suponho que semelhante "tchim-tchim" tenha sido feito - algures e pelo mundo fora - a reboque da recente absolvição de Boustani. Ademais e para a História ficará registado a inquietação sobre quem foi absolvido em Brooklyn: o Boustani ou a bosta do sistema? 
quarta-feira, 11 dezembro 2019 12:41

Thsala... flagelada na janela da alma

Pode ser que ela tenha abdicado de viver, caso contrário não estaria a suicidar-se todos os dias com o veneno do seu próprio afastamento. Já não frequenta a sociedade, diferentemente de outros tempos, quando tudo dependia das suas vontades. Não tem coragem de sair de casa, para absorver a atmosfera espiritual proporcionada pelo contacto com as pessoas. Tem medo de rever ao espelho o rosto, por demais degradado pelo fumo e pela bebida de nunca acabar. Os dentes estão queimados pelo rapé que passou a mascar depois de todas derrotas, por isso tornou-se relutante em sorrir para os interlocutores que em algumas – poucas -  ocasiões a abordam no seu casulo, para matar a saudade de uma amiga muito doce. Porém, repugna estar no seu convívio. Está constantemente a cuspir uma saliva espessa que nos vai enojar. Mesmo assim, no meio daquela decomposição toda, Thsala mantém acesa a luz da sinceridade.

 

Há muito que não a via. Sentia tremendamente a falta de uma pessoa com quem podesse conversar sem tabus, e essa pessoa, numa cidade alagada de  preconceitos, é Thsala. Eu queria velejar com palavras espontâneas, esquecendo momentaneamente todas as quedas que tenho tido, e nenhuma outra pessoa podia me acolher para isso, que não fosse Thsala. Thsala é a própria escala diatónica, onde residem todas as notas para se compor uma belíssima canção de amor.

 

Fui para lá, sabendo de antenão que a minha amiga estava naquelas condições. Cheguei a pensar em passar por um botle store e pegar uma garrafa de qualquer coisa para ela, mas a minha consciência não me deixou. Quis levar a guitarra.... também nada! Guitarra para quê, se Thsala é o conservatório em si, onde terei à disposição todos os instrumentos! Então não levo nada, senão as garrafas vazias de oxigénio que trago dentro de mim. E voltarei de lá abastecido, com ar suficiente para voltar a voar e reocupar o espaço que me é reservado na órbita das minhas imaginações.

 

Thsala cuspiu para o lado, todo o tabaco molhado pela saliva, quando me viu entrar no seu espaçoso quintal, depois de pedir licença.  Senti náuseas, mas já não podia retroceder. Percebi o embaraço que lhe apossou. Inclinou-se, desajeitada,  para cobrir o cuspo com as mãos, também flageladas pelo tabaco, como os seus dentes. Ela não consegue olhar para mim porque sabe que naquele rosto já não há candura. Esvaiu-se completamente, para dar lugar às ruinas.

 

Fui buscar uma cadeira, e ao voltar vi a mulher compactando com os pés, o “aterro” que tinha feito com as mãos sobre o lago de saliva espessa e massa de tabaco. Ela continua a não olhar para mim, e sem falar para dizer seja o que for. E tudo isto é um sismo que cabe a mim desvanecer.

 

- Thsala, meu amor, vim te ver!

 

- Vens ver um farrapo?

 

Thsala voltou a cuspir. A boca segrega muita saliva, e ela, envergonhada, não tem como evitar aquilo.

 

- Desculpa, meu bem.

 

Levantou-se e disse que ia à casa de banho. A roupa que usa está lavada. Engomada. Os chinelos ainda estão no rítmo. Mas tudo isso vai-se diluir num corpo desmoronado, e se partirmos do princípio de que o rosto é um pouco a janela da alma, então Thsala entrou em última derrocada.

 

Fiquei um tempo interminável à espera que a minha amiga voltasse. Debalde! Quem veio é a empregada, para me dizer que Thsala não está bem. Pede desculpa.

 

- Ela disse para o senhor voltar outro dia.

Pedimos desculpas aos nossos utentes pelos inconvenientes .Desde  ontem, dia 10 de Dezembro, que os CFM paralisaram os comboios da MetroBus sem informação prévia. Nem sequer o Comando de Operações se dignou a atender o telefone. Naturalmente, usamos o Plano de Contingência para transportar os nossos utentes.

 

A Empresa CFM, uma das maiores empresas de Moçambique desde o tempo colonial, quer interromper os nossos sonhos de podermos ter uma mobilidade segura, de qualidade de nível internacional, segundo o  Banco Mundial. Os CFM querem que voltemos a circular nas estradas (N4) congestionadas, onde se morre todos os dias, justamente porque os comboios de carga de minerais não funcionam e os camiões de minerais têm que usar a estrada N4 causando pânico e luto. A sabotagem ao MetroBus não é exclusiva.  Lamentávelmente este é mais um exemplo da razão  de sermos empobrecidos, e continuaremos a ser,  independentemente do OIL&GAS, ou qualquer outra potencialidade económica.

 

Alguns dos nossos governantes de empresas públicas, apesar de títulos acadêmicos, salários  e benefícios de luxo, não compreendem os factores de desenvolvimento, agindo por impulso, como o caranguejo.

 

Agora que comemoramos o segundo aniversário da operação da MetroBus, os CFM concretizam o seu objectivo emocional de parar com o MetroBus, após inúmeros incidentes, negações, bloqueios, chantagens nas taxas e rendas, etc.

 

Os CFM, quando chamada argumentar, vai dizer :

 

1- A MetroBus deve a taxa de uso da linha: (É verdade que devemos 3 milhões de Mta e temos vindo a pagar; Porém, o Ministério dos  Transportes e Comunicações /FTC deve-nos dezenas de milhões de Meticais por serviços prestados e nós não bloqueamos os beneficiários, que por sinal são servidores públicos).

 

2- Vão dizer, falsamente, que não cumprimos as regras de Safety; (a MetroBus tem os standards internacionais de Safety e recursos humanos nacionais educados, treinados e supervisonados, no cumprimento das regras de Safety; aa quais serão públicadas para V. Excias conhecerem.

 

3-Não vão dizer, mas qiestionam-se, como pode uma empresa de moçambicanos do ramo rodoviário, com comboios usados, aproveitando recursos humanos passados à reserva pelos CFM e meia dúzia de engenheiros mecânicos da Escola Superior Náutica de Moçambique, produzir um serviço público de mobilidade intermodal de qualidade reconhecida pelos utentes e instituições nacionais e internacionais?

 

Mais do que nunca, Moçambique precisa de um dirigente nacionalista e inclusivo. Não podemos continuar a desperdiçar tempo e recursos dos cidadãos para alimentar egos.

 

Apesar da SIR nunca ter ganho um cêntimo com a MetroBus, sabemos que é um serviço de mobilidade que terá a sua sustentabilidade futura. E estamos confiantes que quem de direito saberá tomar as decisões convenientes.

 

“As derrotas são o caminho para sucesso"

 

Pedimos desculpas aos nossos utentes por não termos conseguido evitar mais esta sabotagem, entre muitas outras, que ao longo de 24 meses fomos contornando diariamente.

 

Acreditem que se somos moçambicanos vamos conseguir.

 

Bem hajam, pelos inúmeros apoios que temos recebidos,

 

A luta Continua

 

Amade Camal

quarta-feira, 11 dezembro 2019 05:52

Que se lixem

Matilde trabalha na cidade como empregada doméstica, vive num bairro de expansão que responde pelo nome Santa Isabel. Quando chega ao Zimpeto, às 19h37, não encontra transporte, salvo uma carrinha de caixa aberta denominada _my love_ que deixa-lhe no local onde a terra batida beija o asfalto da circular. Matilde caminha, apesar de saber que é perigoso durante a noite, mas não tem escolhas. Leva consigo fé em Deus e meia lata de leite para o filho de dois meses, cujo pai baldou-se para outro bairro e não quis assumir. Dois quilómetros a caminhar colocam-lhe olhos nos olhos com um grupo de delinquentes, que para lhe tiraram o celular, ofertado pela patroa, espetam-lhe uma faca gelada no pescoço. Incapaz de soltar um pio viu todos homens apossarem-se do seu corpo. Curiosamente, no local onde morreu Matilde, minutos antes de violada, a polícia trocou a detenção dos criminosos por 500 meticais. Matilde poderia ter sido salva se o centro de saúde, avaliado em 0,000000000000001% do valor correspondente à quantia partilhada nas dívidas ocultas, tivesse sido construído como prometido. Enquanto Matilde se esvaía em sangue tinha lugar uma festa onde se distribuíam ranges rovers, motas top de gama, casas incríveis e por aí em diante. No outro lado de Maputo um rapaz banha-se no rio, mas a sua pele começa a arder sem motivo aparente. Inocente Reginaldo não percebia que era vítima dos químicos duma fábrica de alumínio por conta do seu bay pass. A multinacional jamais se responsabilizou pelos danos. Os responsáveis pela fiscalização fizeram ouvidos moucos ao clamor popular. Eles criavam campanhas de responsabilidade social em grandes órgãos de mídia e nos jornais escrevia-se: um rapaz morreu afogado por entrar no rio ébrio. Somos um país incrivelmente despraparado para pobres e dói, imenso, quando um golpe lixa tudo. Não que o dinheiro fosse tornar a nossa vida menos miserável do que já era. Neste caso tornou as coisas bem piores. Antes das dívidas 100 dólares eram 3000 meticais. Hoje são 6000. Ficávamos duas vezes mais pobres e por essa razão é impossível ser imparcial no que diz respeito à responsabilização dos estrategas da nossa penúria. Por Matilde e Reginaldo e por todos que se abraçam no _my love_ com essa chuva que se lixem.

 

terça-feira, 10 dezembro 2019 06:50

Ukuvuyela* Zozibini Tunzi!

“Esta noite abriu-se uma porta e eu não podia estar mais grata por ser quem passou por ela. Que todas as meninas que presenciaram este momento acreditem para sempre no poder dos sonhos e vejam os seus rostos reflectidos no meu.”, Zozibini Tunzi

 

Esta semana temos mais uma razão para nos sentirmos abençoados por fazer parte desta Era. Pela História passar por nós e por podermos gritar ao Mundo que a estamos a viver. Este é o poder da comunicação e, também, das redes sociais. Hoje “meio mundo” se orgulhou da Vitória de Zozibini Tunzi! A sul-africana que foi eleita Miss Universo 2019.

 

Numa altura em que se fala e se exige representatividade em género, raça e número, principalmente no que toca a nós, mulheres, é sim um dia para celebrar. Aos 26 anos Zozibini é quarta mulher negra a ser eleita Miss Universo, em 68 edições do concurso. 68, tenho de repetir. Antes dela Janelle Commissiong, de Trindade e Tobago esperou 25 anos para ser eleita a mais bonita do Universo, em 1977. Seguiu-lhe a norte-americana Chelsi Smith, em 1995, e a angolana Leila Lopes em 2011. 

 

Se fizermos bem as contas, há uma diferença de mais de 20 anos nestas coroações. Se analisarmos um bocadinho mais a fundo talvez consigamos perceber que há um atraso na mentalidade de quem avalia ou decide quais são os standards de beleza do Universo.

 

O que começou por ser apenas um concurso criado na Califórnia, em 1952, pela empresa de vestuário Pacific Mills, passou a ser uma marca com uma licença que se renova anualmente. Neste evento estão envolvidos vários players do mercado mundial e muito dinheiro, também.

 

Não é de estranhar a invisibilidade da mulher negra num ecossistema em que quem dita são as marcas.

 

Mesmo assim, várias gerações foram passando e se esquecendo se havia mulheres negras a serem premiadas. Ser invisível é isso. É não existir. E a beleza, para além de outros fatores da sociedade é um assunto do foro muito íntimo.  Que temos receio em abordar.

 

Foi preciso as redes sociais serem mais um player, definido por nós – pela positiva – para que questões invisíveis começassem a ser visíveis. E acredito que a discussão e exposição inteligente tem sempre uma força maior.

 

Foi o que senti quando vi mais de dez vezes o discurso de Zozibini.

 

“Eu cresci num mundo onde uma mulher como eu, com o meu tipo de pele e cabelo, nunca foi considerada bonita. E acho que é hora de isso terminar hoje", disse a concorrente, na sua última mensagem antes do veredito final.

 

E afirmou-o bem. De facto, quando olho para trás e penso nos primeiros anos de adolescência, em Lisboa, lembro-me que sempre quis ter tranças compridas para os meus cabelos abanarem como os das minhas amigas. Fizeram-me a vontade. Claro que na altura nunca pensei que um dia ia escrever uma crónica a falar sobre isto e muito menos com o cabelo curto, semelhante ao de Zozi, é assim que vai ser o nickname dela para mim. E a ouvir Hugh Masekela. Estou mesmo feliz.

 

Zozi, para quem já ultrapassou as inseguranças impostas pelo mundo Ocidental, como tu, eu e outras mulheres de que tenho muito orgulho, e marcou um statement num concurso em que raras foram as mulheres negras que tiveram coragem de assumir o seu cabelo, a sua visão de combate ao racismo estrutural, já tinhas ganho pela tua frontalidade e segurança. I’m so proud of you girl.

 

Aos 26 anos és o futuro de mulher negra que quero ver, mais e mais representada. Ter ao meu lado. É em ti que me espelho, mesmo sabendo que faço a minha parte, precisamos de mais miúdas como tu. De mulheres que de facto se unem a outras mulheres por uma causa, a nossa. E não dividem para reinar. Com educação, assertividade e uma postura coerente com o presente. Nada de vitimização ou acerto de contas com o passado vindo de alguém que tinha um ano quando apartheid terminou.

 

Os teus pais só podem ser pessoas muito especiais por, apesar do que passaram, nunca terem passado aquilo, que hoje em dia, seriam inseguranças para ti.

 

"Liderança. É algo que falta a mulheres e mulheres jovens há muito tempo, não porque elas não a desejavam, mas por causa de como a sociedade rotulou como as mulheres deveriam ser". Há oito anos era apenas um concurso de beleza que elegia uma mulher negra. Hoje foi um concurso de beleza que deu voz a uma líder.

 

Khanimambo.

 

*Parabéns em Xhosa