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Carta de Opinião

terça-feira, 28 maio 2019 05:43

Carta do povo moçambicano à Fátima Mimbiri

O que nos faz acreditar em ti é o teu peito aberto permanentemente entregue às balas. Aos verdugos atentos à tua volta, prescrutando-te os pensamentos. E nós temos as baquetas preparadas para o rufar dos tambores, porque a certeza de que tu representas o amanhecer que ainda vem, assim nos diz. Se assim não fosse teríamos sabido. Sentiríamos isso nas palavras que dão luz à tua clarividência. À tua saga.

 

Há muito que esperávamos por uma mulher como tu, desafiando a fúria das orcas no meio da tempestade. E agora estás aqui sem  a menor possibilidade de retrocederes. Estás exposta sem escafandro para te protegeres do fogo que te cerca, e nós estamos debaixo da terrível ansiedade. Sem a menor capacidade de libertar o tigre da nossa revolta. O nosso tigre és tu, FátimaI. Aliás, a única coisa que podemos fazer é seguir-te.

 

Eles estão com medo de ti. Tremem em todo o ser quando falas e olhas para arrogância deles de frente. Dizendo-lhes sem vacilar que o tempo “ruge” na luta da juventude que tu representas. És o nosso instrumento de medida. Cada vez que apareces na televisão, a nossa esperança aumenta. Concentramo-nos todos diante dos ecrãs porque a Fátima Mimbiri vai falar.

 

És o nosso depósito de géneros. O nosso arauto que corre seguro ao encontro da luz, nestas trevas implantadas despois das armas que anunciavam a liberdade na epopeia das matas.  Recusas-te a ficar na popa deste imenso barco navegando à deriva no oceano Índico revolto. Estás na proa desmentindo todas as falácias. É a ti que cabe a descontrução das palavras dos manhosos, que urdem diariamente as naus do desespero para atravessarem o fosso que eles próprios construíram. E tu olhas para eles com desdém.

 

Na quinta-feira, na STV, só queremos ouvir a ti. Eles também ficam ansiosamente à espera desse dia. Sabem que o nosso combustível és tu. Tremem quando pensam em ti. Bóiam nas discussões que tentam manter contigo. E no lugar de serem eles a encurralar-te, tu é que os cercas com a rede de emalhar das tuas palavras. Lúcidas.

 

Esta carta é da lavra dos nossos sentimentos mais profundos. Representa a necessidade urgente de cura das nossas feridas dolorosas. E tu, Fátima, recebeste a missão de ser a nossa enfermeira. É a ti que recorreremos em todos os momentos para nos indicares o azimute que devemos seguir. E enquanto isso, continuaremos na longa espera com as orquídeas mais lindas para ti.  

segunda-feira, 27 maio 2019 07:44

Por onde andas, Kalungano?

Vêem-me essa pergunta a propósito da homenagem pelos 90 anos de Marcelino dos Santos - o nacionalista histórico e temido membro fundador da FRELIMO - celebrados no passado dia 20 de Maio de 2019. Na verdade, não sei bem a razão da pergunta. Também não sei a razão por que escrevo estas linhas. Estarei a homenageá-lo? Não sei!  

 

Na esteira da homenagem, e através dos diversos depoimentos e arquivos audiovisuais passados nos media, não me surpreende a dimensão da sua grandeza, mas fica sempre a interrogação ou a sede de se saber mais e cada vez mais sobre a trajectória política e cultural de Kalungano, Lilinho Micaia ou simplesmente Marcelino dos Santos. 

 

Venho contando em privado os “meus encontros” com Marcelino dos Santos. Agora, tomo este momento para partilhar parte de um desses encontros como meu singelo contributo pelas suas “noventas rosas vermelhas”, palavras de Óscar Monteiro, membro sénior da FRELIMO, no tributo que presta ao seu mentor, que acabo de ler no Jornal Notícias do dia natalício de Kalungano, e que utilizo, como empréstimo, com sua suposta permissão. 

 

Em meados de Dezembro de 2006 fui convocado para participar numa reunião na sede do Partido FRELIMO com Marcelino dos Santos. A convocatória era estendida a toda a equipe de trabalho que coordenou a realização em finais de Outubro de 2006 do primeiro evento do Fórum Social Moçambicano (FSMoç), um espaço alternativo e crítico de debate público organizado por um grupo de organizações da sociedade civil moçambicana. Confesso que, na altura, alguma carga de medo tomou conta de nós e que só foi aliviada por conta da proximidade com o pessoal encarregue de interagir connosco na preparação da reunião cuja agenda seria em torno do evento que organizámos.   

 

Para efeitos do presente texto, não me irei debruçar sobre o conteúdo dessa reunião (ficará para uma outra ocasião, assim como outros episódios dos “meus encontros” com Marcelino dos Santos). Vou apenas partilhar algumas situações ou momentos especiais que me marcaram, nessa reunião. Adianto já que foi muito interessante e que houve direito, por solicitação de Marcelino, a uma segunda rodada, uma semana depois, e a um convite para o pessoal do FSMoç capacitar/interagir com os quadros do partido, no âmbito dos propósitos do FSMoç, que para Marcelino dos Santos eram os mesmos que guiaram a fundação da FRELIMO e que conduziram a luta de libertação nacional.  

 

No dia programado (finais de Dezembro de 2006) e à hora marcada (9h) lá estávamos na sede da Frelimo. Qualquer coisa como estar na toca do lobo. Do lado da comitiva da Frelimo, chefiada por Marcelino dos Santos, prontificava o ora deputado Edson Macuacua, João Bias e Florentino Kassotche para citar alguns dos integrantes. Coube-me, na qualidade de Secretário Executivo, encabeçar a equipe que representava a estrutura de coordenação para a realização do FSMoç, e assinalo, também, as presenças de Ahmad Suca, Thomas Selemane e Silvestre Baessa, companheiros com notável contributo na elevação da cidadania no país.

 

Marcelino dos Santos tinha na mesa os documentos do FSMoç, destacando o Plano Nacional. Este estava excessivamente sublinhado e com diversas cores e anotações, evidenciando que o tinha lido, como também que vinha “chimoco”. Para a nossa satisfação, Marcelino começa a reunião elogiando a qualidade dos documentos, admitindo que não via há bom tempo algo parecido na pérola do Índico, o que o deixava contente, serenando os nossos corações e receios. Ele ainda perguntou se tínhamos lido os estatutos da fundação da FRELIMO, pois os nossos documentos tinham o mesmo espírito e que ele vislumbrava possíveis pontes que se podiam construir entre o Partido FRELIMO e o FSMoç. 

 

A reunião foi repetidamente interrompida por intervalos de telefonemas de e para Marcelino dos Santos, desculpando-se em seguida pelos transtornos. Por volta das 12 horas e quando pensávamos que se estava prestes a encerrar, mais um telefonema, e Marcelino termina a chamada dizendo ao interlocutor que só teria tempo no final da tarde, pois a reunião que estava a orientar se estenderia até às 16/17 horas. Felizmente não foi um susto para nós, pois conhecíamos a fama das demoradas reuniões da FRELIMO e com a particularidade de entrarem zangados e saírem sempre coesos e unidos.   

 

Num dos telefonemas, apercebemo-nos de que era o Presidente Guebuza ou alguém próximo a confirmar um encontro. Depois de desligar, Marcelino comentou que estava desapontado ou preocupado com a hostilização do Governo de Guebuza ao de Chissano, celebrizada na famosa expressão “combate ao deixa-andar”. Referiu, ainda, que tinha pedido um encontro, creio do Partido, pois era tempo para se pôr termo à situação que até embaraçava o Partido FRELIMO. Um tempinho depois, como se constatou: o combate ao deixa-andar saiu do discurso governamental. 

 

A dado momento, debruçando-se sobre a reacção do povo por qualquer insatisfação, Marcelino recordou as escaramuças na então Cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, depois da assinatura dos Acordos de Lusaka, em Setembro de 1974, entre a FRELIMO e o Governo Português, que selou o processo para a independência de Moçambique. Ele contou que alguns colonos foram assassinados com alguma barbárie numa revolta popular em resposta a atitudes de alguns sectores coloniais que estavam em contramão. Aproveitei a ocasião e informei que tinha um livro (que foi) escrito nesse período e que retravava, em parte, o que ele acabara de contar. Nesse instante, Marcelino olhou-me e franziu a testa como quem estivesse a desconfiar da veracidade do que tinha acabado de ouvir.   

 

Em outro momento, Marcelino dos Santos anotou que acabava de ler o livro “Memórias em Voo Rasante” de Jacinto Veloso, outro membro sénior da FRELIMO, lançado em 2006, e por coincidência eu e o Silvestre Baessa acrescentámos que também o tínhamos lido, por sinal, o mesmo exemplar. Da leitura do livro ou da conversa sobre o mesmo com Jacinto Veloso, Marcelino disse - embora os dois políticos fossem companheiros de jornadas há várias décadas - que se apercebeu de que um dos livros que influenciou o General Veloso foi o “Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora que, também para ele, é uma referência e contribuiu grandemente para a sua consciência política. 

 

Ainda sobre o livro de Zamora, Marcelino lamentou que nunca tenha visto o original e que apenas tenha lido fotocópias. Voltei a aproveitar o momento, e disse-lhe que eu tinha o original. Desta vez, interrompendo o gole de água, Marcelino dos Santos abriu mais os olhos, direccionando-me com intensidade. Em seguida, apontou-me o seu dedo indicador, e com o tom de voz mais ríspido e denotando um iminente sorriso exigiu veementemente: Eu quero ver a sua biblioteca! 

 

Cá por mim, pensei: Agora é que me lixei. Desde então, fiquei com uma promessa oculta de passar-lhe o original do “Processo Histórico” de Juan Zamora, e eu ficar com uma fotocópia! 

 

Por onde andas, Kalungano? Agora sei a razão da pergunta. De certeza que não lhe procuro para saldar a minha promessa oculta ou mostrar-lhe a minha biblioteca, mas apenas para beber mais do teu “Processo Histórico”. Acredito que não seja só do meu interesse. É um Imperativo Nacional. 

 

 Saravá, Lilinho Micaia! 

quarta-feira, 22 maio 2019 07:12

Matando Afonso Dhlakama pela segunda vez

Sobre DDR – Desarmamento, desmobilização e reintegração e o que mais se pode dizer acerca dele para salvar a segunda morte de Dhlakama.

 

Por: Egídio Vaz

 

Neste pequeno texto, aponto uma série de iniciativas com potencial de desbloquearem o embaraço em que nos encontramos. Uma iniciativa que pode ser levada a cabo pelo General Ossufo Momade, Presidente da Renamo; outra iniciativa que pode ser levada a cabo pelo Grupo de Contacto e ainda outra, que pode ser levada a cabo pelos 10 nomes (via rápida) e ainda outra de mobilização popular.

 

Ao que tudo indica, parece que o processo de desarmamento, desmobilização e reintegração das forças residuais da Renamo chegou a um impasse. Desde que há um mês a Renamo submeteu a lista de seus homens para integração na Polícia como núcleo inicial, o governo não reagiu. Aliás, reagiu, afirmando  que não tinha “a moral suficiente para incluir os homens já na reserva e outros na reforma ou desmobilizados, em detrimento daqueles que se encontram ainda nas fileiras da Renamo, aqueles pelo qual o diálogo com o falecido Dhlakama visava abranger” – palavras do Presidente Filipe Jacinto Nyusi, Presidente da República de Moçambique. “Os que fazem parte da lista já estiveram nas Forças Armadas de Defesa de Moçambique, uns passaram à reserva com subsídios de integração atribuídos e auferem salários ou pensões como outros seus colegas que são da proveniência do Governo”, Presidente Filipe Nyusi.

 

Aqui, dois aspectos realçam. Primeiro aspecto, o Presidente da República deixa muito claro que as pessoas pelo qual o diálogo com o falecido Dhlakama visava abranger não são os dez sugeridos pela nova liderança da Renamo, nomeadamente: Major-general Arlindo Maquivale

 

  1. Brigadeiro José Acácio
  2. Coronel Dionísio Saiene  
  3. Tenente-coronel Horácio Cavalete
  4. Tenente-coronel Jussa Hussene Jó
  5. Tenente-coronel Lindo dos Santos José
  6. Tenente-coronel José Fernando Armando
  7. Major Augusta Marimira
  8. Major Flora Mário de Barros
  9. Coronel Lakcen Laina

Essa declaração, tem dois suportes. O primeiro é de que todas conversas entre o falecido Presidente da Renamo e Presidente da República foram gravadas e, havendo necessidade, podem ser divulgadas. Nelas, o sentido de nomear representantes para a Polícia está claro bem como os nomes avançados ou no mínimo, a natureza dos indivíduos que deveriam fazer parte da lista inicial. O segundo suporte é o facto de a nova liderança da Renamo ter jurado de pés juntos não contrariar o rumo dos consensos alcançados entre o Presidente Nyusi e falecido Afonso Dhlakama. Para ser claro, a nova liderança da Renamo jurou não TRAIR a memória e legado de Afonso Dhlakama. Ora, felizmente, e pelo menos ao nível teórico, quem neste momento não está a trair a memória de Dhlakama é o Presidente Nyusi, ao recusar aceitar a integração de pessoas que não preenchem nem os requisitos formais muito menos os quesitos etários para os postos a que se propõem. Pior, nem eram essas, as pessoas pelo qual o diálogo com o falecido Dhlakama visava abranger.

 

Alegra-me, no entanto, constatar que sobre este ponto, nem a própria Renamo contesta ou desmente. O seu principal Porta-voz, Dr. José Manteigas apenas cinge-se em afirmar que à luz do Memorando de Entendimento, é prerrogativa da Renamo indicar os seus homens. Sem querer lhe desmentir ou retirar o mérito, julgo que SIM, a prerrogativa é da Renamo, mas ela DEVE conformar-se com o espírito e a letra dos termos do Memorando do Entendimento bem como o grupo-alvo sobre o qual o diálogo com o falecido Dhlakama visava abranger. Seguramente e a todos pontos de vista, não é esse grupo sobre o qual o diálogo com o falecido Dhlakama visava abranger.

 

Ora, que fazer para evitar a segunda morte de Afonso Dhlakama?

 

Essencialmente sugiro três iniciativas:

 

PRIMEIRA

 

O Presidente da Renamo deve compreender que neste momento está sendo alvo de manipulação por parte de alguns caudilhos de guerra instalados em Maputo, que tiram benefício da sua ausência física para continuar a debochar o seu próprio partido e a carcomer o poder de liderança DO SEU Presidente, Ossufo Momade. Fizeram o mesmo com falecido Dhlakama, encorajando-o a viver longe da família, sozinho e rodeado pelos mesmos homens cujas oportunidades de reinserção e enquadramento são hoje desviadas em benefício dos reformados e reservistas, situação juridicamente incompatível com qualquer possibilidade de reintegração pelo facto de estes já fazerem parte do Estado; reformados ou reservistas.

 

Efectivamente, o Genral Ossufo Momade não é o único Presidente da Renamo. Ele possui muitos Co-Presidentes que o ajudam a manter no caminho do impasse e da incerteza; longe da Paz e da concórdia e reconciliação com os moçambicanos, enquanto se apressam em assegurar os seus interesses.

 

Felizmente, existe uma boa experiência, caso Ossufo Momade queira romper com o cerco. Que o General Ossufo Momade aprenda com o Presidente Filipe Jacinto Nyusi que, contra todas expectativas; contra todos os riscos à sua vida; à socapa dos veto players da Frelimo, foi por mais de duas vezes a Gorongosa encontrar-se com Afonso Dhlakama e em consequência disso, logrou os progressos de que hoje somos todos usufrutuários.

 

O General Ossufo Momade tem o poder e controlo sobre o seu exército. Pode surpreender os caudilhos de guerra instalados em Maputo, enviando outra lista directamente ao Comandante-em-chefe das Forças de Defesa e Segurança, Presidente Filipe Jacinto Nyusi, para imediata integração e, ao mesmo tempo, anunciar a indicação de locais para o acantonamento das suas forças e ser ele próprio a liderar o processo.

 

Se quiser ser o inquestionável discípulo de Afonso Dhlakama, intérprete dos seus ideais e guardião da sua moral, a melhor saída consiste igualmente em evitar cair em erros por ele próprio cometidos. E um destes erros foi o de ter dado demasiado ouvidos aos mesmos que hoje o mantem nas grutas da Gorongosa. O que estou a dizer não é mentira. Tomem por exemplo, a velocidade com que os processos negociais e a consolidação da confiança entre Afonso Dhlakama e o Presidente Nyusi. Tal só foi possível a partir do momento em que os dois começaram a discutir os assuntos directamente. E foi daí que Afonso Dhlakama entendeu que em alguns temas e assuntos, estava a ser vítima de agendas egocêntricas de alguns mediadores e emissários. O arrojo de Afonso Dhlakama em flexibilizar alguns aspectos, a começar pela declaração da trégua militar sem fim não foi fruto do acaso ou de alguma distração. Foi resultado de alguma revelação e clareza sobre os mesmos, zelosamente mantidos longe do seu alcance pelos caudilhos de guerra que o queriam ver confinado nas serras para que continuassem a cuidar dos seus interesses.

 

SEGUNDA

 

No âmbito desse processo negocial, o chamado Grupo de Contacto também tem um papel a desempenhar. Integram o Grupo de Contacto sete personalidades, designadamente, os Embaixadores da Federação Suíça, dos Estados Unidos da América, da República Popular da China, do Reino da Noruega bem como o Alto-Comissário da República do Botswana, a Alta Comissária do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e o Chefe da Missão da União Europeia em Moçambique. O grupo tem, entre outras tarefas, prestar assistência financeira e técnica coordenada, bem como realizar outras tarefas indicadas nos seus Termos de Referência.

 

Da mesma forma que emitem comunicados elogiosos quando há progressos no processo de Paz ou quando o processo emperra, julgo ser oportuno que ele também se pronuncie e use das mesmas prerrogativas para persuadir a Renamo a rapidamente conformar-se com o espírito e letra do Memorando de Entendimento. E mais, parte dos países envolvidos no Grupo de Contacto são igualmente altos patrocinadores do processo eleitoral moçambicano. Seria um enorme malogro que esses vissem seus esforços gorados aos joelhos da Renamo, não conseguindo desmilitarizá-la antes das eleições de Outubro próximo. Por isso, também podem exercer a terceira via, influenciando um pequeno, porém, vibrante grupo de organizações da Sociedade Civil nacionais para que, também se mobilize em torno da paz, chamando à razão a Renamo, de modo a que ela se reconcilie com a verdade, com o espírito de Afonso Dhlakama.

 

Ora, para que tal seja possível, é preciso que estes países sejam comprometidos com a Paz dos moçambicanos, seja comprometido com o desenvolvimento de Moçambique e não comprometidos com agendas contraproducentes à agenda nacional. Eu estou convicto que eles estejam comprometidos com Moçambique. Caso contrário não iria apoiar.  

 

TERCEIRA

 

Os moçambicanos, que todos os dias clamam pela paz, precisam de melhor conhecer a narrativa deste processo para que também tomem parte do diálogo e das decisões. Agora, mais do que em qualquer outro momento, devem levantar a sua voz e estarem do lado da verdade e do que lhes mais interessa. Por causa disso, é importante que agucem a sua atenção e reajam aos primeiros sinais de manobras dilatórias.

 

O Presidente Filipe Nyusi, o governo e nós moçambicanos fizemos muito. O parlamento demonstrou que, quando o interesse nacional chama por eles, são capazes de acelerar o passo: aprovou-se uma revisão pontual da constituição, um pacote de descentralização e outros dispositivos associados para permitir o aprofundamento da democracia, da descentralização e da reconciliação nacional.

 

Agora o governo e parceiros estão de mãos atadas porque não podem ir desmobilizar a força o exército residual da Renamo, até porque não se conhece onde ele está; não se podem avançar com a integração de oficiais da Polícia da República de Moçambique, porque a Renamo quer meter os que já estão a beneficiar de regalias do estado desde 1992; não podem avançar com desmobilização, reintegração e ou reinserção social do exército residual pois para tal, é preciso que esse núcleo inicial da Renamo seja integrado.

 

É agora chegado o momento de a voz do povo fazer-se ouvir. O Presidente já se pronunciou três vezes sobre o mesmo assunto; a liderança da Renamo está já notificada sobre as incompatibilidades. O próprio Presidente conhece os visados de cara, pois foi também Ministro da Defesa entre 2008-2014.

 

Será que vamos deitar tudo abaixo por causa de 10 reformados? Será que eles próprios não podem ajudar o embaraço em que colocaram o Presidente da Renamo? Como? Surpreendendo-nos também com uma declaração à imprensa em que anunciam a sua retirada voluntária das candidaturas, para o bem da Paz, dos seus filhos, netos e pela salvaguarda da memória e visão de Afonso Dhlakama.

 

Neste pequeno texto, apontei uma série de iniciativas com potencial de desbloquear o embaraço em que nos encontramos. Uma iniciativa que pode ser levada a cabo pelo General Ossufo Momade, Presidente da Renamo; outra iniciativa que pode ser levada a cabo pelo Grupo de Contacto e ainda outra, que pode ser levada a cabo pelos 10 nomes (via rápida) e ainda outra de mobilização popular.

 

Cada uma dessas iniciativas, implementadas a eito ou individualmente tem o potencial de resultar em um grande passo rumo ao desencadear da seguinte fase do processo de DDR. 

terça-feira, 21 maio 2019 06:47

A tempestade que colhemos em Yaoundé

À memória de Matateu, que morreu sem nada nas mãos

 

Em 1983, quando Moçambique derrotou a selecção dos Camarões no Estádio da Machava, o mundo inteiro perguntou se aquilo era mesmo verdade. Os camaroneses eram os maiores da África, uma espécie de astros elegidos para reverberarem no tempo. Perante eles, todos sentiam-se como os israelitas diante de Golias na guerra dos filisteus. Tremiam e escondiam-se nas baixas e nas tocas e nas grutas. Agora quem são esses que ousam enfrentar um  monstro, e ainda por cima decepá-lo com a sua própria espada!?

 

Acabo de falar ao telefone com Sangare Okapi, e ele recorda-me um verso que me remete ao silêncio: não me aguarde, basta que penses em mim. Outro verso perturbador já o tinha ouvido de Fernando Manuel: agora vivo de sons. Na verdade, Fernando não tem outra escolha senão aceitar este futuro que já encara de frente, com palavras sem fim em formigueiro nas mãos trémulas queimadas pelo tabaco. Ele está apressado em lançar toda essa enxurrada depositada no sentimento mais profundo, porque o tempo que tem pela frente é inesperado.

 

Quando nasceu não sabia de nada, mas já estava escrito que tudo consumar-se-ia na pesada penumbra. Quer dizer, a cegueira, cansada de esperar na vigília furtiva iniciada no ventre da sua linda mãe, abateu-se – mais de seis décadas depois - com estrondo sobre um cronista que agora respira entre os sopés e os cumes. Sem saber exactamente o que pensam as pessoas à sua volta, porque não vê o rosto delas. E o rosto, segundo o poeta, é um pouco a janela da alma.

  

Estou sentado frente a frente com Fernando Manuel na sala do seu apartamento na Avenida Guerra Popular, em Maputo, onde vários charcos de mijo espalham-se por um município fedorento. Onde os cheiros nauseabundos são exaltados pelas canções repetidas no silêncio dos dementes desmazelados, que gozam a liberdade infindável oferecida pelas velhas acácias. E pela rebeldia dos meninos de rua que não sabem para onde vão. Nem de onde vêm os ventos frios que varrem seus ossos nas noites e nas madrugadas.

 

Há muito que não nos víamos, e ele nunca mais há-de me ver. Mesmo assim não me compadeço com o cego que está à minha frente, apesar de saber que estes olhos grandes jamais voltarão a vislumbrar a cor das manhãs. O que me arrepia porém é que o cronista parece escutar-me com esses mesmos globos oculares ora escurecidos. Já não é o mesmo homem que conheci, que saía a correr da Redacção para trazer a reportagem inadiável, posteriormente burilada com saber. Já não é aquele boémio incapaz de controlar a boca que ao mesmo tempo bebia e dava azo às bojardas que só ofendiam a quem não entendesse efectivamente os tecidos da vida.

 

Fernando Manuel agora é um personagem resignado perante todas as derrotas infligidas pelos desfiladeiros íngremes calcorreados um a um. Passa a vida a escutar Rádio e a ouvir música, como se isso fosse lhe devolver a pujança dos músculos. Qual! O que lhe sobra é alma. E as palavras que lhe alagam as mãos. Em turbilhão.

 

A nossa conversa rodopia em torno do eixo do passado. É o próprio Fernando Manuel quem assim o diz, lá para frente não há nada. Tudo começa daqui para trás. Ou da trás para aqui. Aqui é o limite. É aqui onde terminam todas as paródias. Pior quando não há vinho por sobre a mesa. A vida torna-se um muchém de sal insípido, como se transformou a mulher de Lote, libertada de Sodoma e Gomorra.

 

É isso: a iris do Fernando Manuel perturba-me. Parece inquirir-me.  E eu digo assim ao meu amigo, vou trazer-te um par de óculos escuros para esconderes esses olhos de águia em fúria, porque já não servem para nada. E ele responde-me assim, os olhos da águia são a tónica máxima da liberdade. Depois da águia não há outro animal. Ou seja, na audácia da águia está a audácia de Deus. 

Começamos, saudando a solidariedade internacional. Da parte das Nações Unidas, de suas agências no campo ou de grandes ONG’s, a ajuda não demorou a chegar ao Zimbabwe, Malawi e, especialmente, a Moçambique, devastado pelo Ciclone IDAI, em Março passado. Mas, enquanto um novo Ciclone Tropical, Kenneth, atingiu, novamente, a costa oriental de África, com uma intensidade um pouco menor (previa-se que a intensidade fosse maior, mas enfraqueceu ao aproximar-se à costa), não podemos deixar de notar uma parcela de culpa em toda esta solidariedade.

 

Moçambique está de joelhos. Atingido pelo que está sendo considerado o pior ciclone do hemisfério sul, viu sua segunda maior cidade, Beira, praticamente apagada do mapa. E como as tempestades tropicais não conhecem fronteiras, IDAI também causou mortes no Zimbabwe e no Malawi. Mais de mil pessoas morreram e dois milhões foram afetadas, sendo 1,8 milhões só, em Moçambique. Os danos causados pelas inundações e rajadas de vento custarão à região mais de US$ 2 bilhões, segundo o Banco Mundial.

 

Para os pesquisadores, não há dúvida de que a alternância de episódios ciclónicos e de secas que atingiu a região, nos últimos anos, está diretamente ligada às grandes variações de temperatura resultantes das mudanças climáticas. A ironia é que Moçambique e os seus países vizinhos produzem apenas uma pequena fração das emissões mundiais de dióxido de carbono. África é o continente menos responsável pelo aquecimento global: apenas 3,8 por cento das emissões de gases responsáveis pelo efeito de estufa, contra 23 por cento da China, 19 por cento dos Estados Unidos e 13 por cento da União Europeia.

 

A cidade de Beira não é um caso isolado. Secas prolongadas, inundações repetidas, diminuição dos rendimentos agrícolas, acesso cada vez mais limitado à água: o aquecimento global já mostra os seus efeitos em África. E estas catástrofes naturais aumentam o risco de insegurança alimentar e de crises sanitárias. Basta olhar para os casos de cólera que surgiram, em Moçambique, após a passagem do IDAI e do Kenneth.

 

Nas zonas rurais, a sobrevivência está em jogo com o desaparecimento de culturas inteiras. As populações urbanas também estão na linha de frente. As elevadas taxas de natalidade e o êxodo rural fazem com que 86 das 100 cidades com crescimento mais rápido no mundo estejam em África. E que pelo menos 79 delas – incluindo 15 capitais – estejam enfrentando riscos extremos devido às mudanças climáticas, de acordo com a consultoria de riscos Verisk Maplecroft.

 

Além disso, as catástrofes naturais acentuam a pobreza e a desigualdade e alimentam os conflitos. A pobreza extrema continua a aumentar em África Subsaariana, ao contrário de todas as outras regiões do mundo. Se nada for feito, a região poderá ser responsável por 90 por cento das pessoas que vivem com menos de US$ 1,9 por dia até 2050, alerta o Banco Mundial. A infra-estrutura pública e os mecanismos de resposta às catástrofes são insuficientes e inadequados. Os 13,2 milhões de habitantes de Kinshasa (capital da República Democrática do Congo), por exemplo, têm sido regularmente afetados por inundações.

 

Para estarem mais bem preparados, é urgente que os estados africanos disponham de mais recursos. É certo que a cobrança de impostos melhorou no continente, passando de 13,1 por cento, em 2000, para 18,2 por cento, em 2016, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Este valor, porém, permanece muito abaixo das médias da América Latina (22,7 por cento) ou dos países da OCDE (34,3 por cento). Mesmo quando não são corruptos, os governos não dispõem dos recursos necessários para se contrapor às estratégias cada vez mais sofisticadas e agressivas das multinacionais para evitar os impostos. África perde entre 30 e 60 bilhões de dólares por ano, segundo estimativas muito conservadoras da Comissão Econômica para África das Nações Unidas e da União Africana. Isto é muito mais do que o montante da ajuda internacional.

 

Em todo o mundo, as pessoas estão chocadas com os escândalos fiscais expostos por investigações governamentais e de outras entidades. Nos Estados Unidos, por exemplo, um relatório recente revelou que 60, das 500 empresas mais lucrativas do país, incluindo Amazon, Netflix e General Motors, não pagaram impostos, em 2018, apesar de um lucro acumulado de US$ 79 bilhões. O impacto nas finanças públicas é ainda mais preocupante em África, onde os impostos sobre as empresas representam 15,3 por cento das receitas públicas, contra apenas 9 por cento nos países ricos.

 

Após anos de silêncio, a OCDE admitiu recentemente a necessidade de questionar o sistema que permite que as empresas declarem os seus lucros onde quiserem, a fim de se beneficiarem, legalmente, de taxas de imposto muito baixas ou mesmo nulas em paraísos fiscais. Esta é uma mudança, pela qual temos lutado há anos no âmbito da Comissão Independente para a Reforma da Taxação Corporativa Internacional (ICRICT). Os países ricos agora estão também sob pressão do Fundo Monetário Internacional e da ONU, que, nos últimos meses, apelaram a uma revisão dos mecanismos de tributação internacional.

 

Este é um primeiro passo na direção certa, mas é urgente que os países em desenvolvimento participem activamente no desenvolvimento de novas normas fiscais. O continente africano tem sido a primeira a sofrer com as mudanças climáticas, para as quais contribuiu apenas marginalmente. É tempo de se fazer ouvir a sua voz para que ela possa arrecadar os recursos que lhe permitirão lutar contra os seus efeitos e preparar melhor as suas populações.

 

Léonce Ndikumana é Professor de Economia e Diretor do Programa de Política de Desenvolvimento Africano no Instituto de Pesquisa em Economia Política (PERI) da Universidade de Massachusetts em Amherst, e membro da Comissão Independente para a Reforma da Taxação Corporativa Internacional (ICRICT).