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Carta de Opinião

segunda-feira, 10 junho 2019 06:33

O dossiê da paz demanda Roberto Carlos*

O processo da paz em Moçambique – em prelo mais um acordo até ao próximo mês de Agosto - é um dossiê que me trás à memória (i) um pronunciamento de Samora Machel, primeiro presidente da República de Moçambique, salvo erro na recepção do Corpo Diplomático por ocasião das festas de um fim de ano na década 80; e (ii) um depoimento de uma cidadã brasileira de cinquenta anos, em 2009, falando à media, nas celebrações do quinquagésimo aniversário de carreira de Roberto Carlos (RC), o rei da música brasileira.  

 

Samora Machel, no seu discurso, debruçando sobre a guerra que assolava o país, disse: “com os Bandidos Armados só o diálogo das armas”. Uma mensagem - que em tempos de esperança pelo novo ano – não foi, certamente, das melhores para um povo que se encontrava exausto com o tipo de diálogo sentenciado. Felizmente, uns tempos depois, a abordagem de hostilização - que era mútua entre os antagonistas - foi alterada por uma de proximidade, resultando no Acordo Geral de Paz (AGP), em 1992, embora, desde então, o acordo passe por constante inquirição em cada pleito eleitoral.  

 

A cidadã brasileira referiu que RC é parte da sua família havia quatro gerações. Ela contou que os pais começaram a namorar e casaram ao som da música de RC. No dia em que a mãe se preparava para ir ter o parto, ouvia, na rádio, RC. O mesmo aconteceu com ela: casou com o namorado e RC foi o “culpado” desde o início. Ela engravidou (não me recordo que tenha culpado o suspeito de sempre) e com a mãe, a caminho da maternidade - para o nascimento da filha e neta, respectivamente – no táxi que as levava, tocava RC. A depoente terminou, contando que nos cinquenta anos de carreira de RC, a neta - igualmente com ligações aos versos do rei – já era mãe e ela, uma felicíssima bisavó. 

 

Em 2042, pressinto o depoimento de um casal de moçambicanos, numa reunião de alto nível das Nações Unidas por ocasião dos 50 anos do AGP (aproveite e confira qual será/seria a sua idade), em mais um esforço da Comunidade Internacional pela paz e reconciliação nacional no país. Um extracto: 

 

“Somos moçambicanos e ambos com 67 anos. Nascemos em 1975, ano da independência do país, conquistada depois de 10 anos de guerra colonial (…). No dia 4 de Outubro de 1992, nasceu a nossa primeira filha. Nesta data foi assinado, aqui em Roma, e nesta mesma sala, o AGP que pós fim a uma guerra de 16 anos. E volvidos 22 anos, foi assinado o Acordo de Cessação de Hostilidades (o que se esperava que fosse o da Paz Efectiva) e na data, 5 de Setembro de 2014, nasceu o nosso primeiro neto. Passados cinco anos, em 2019, veio ao mundo o nosso segundo neto, exactamente no dia de mais um acordo, o da Paz Definitiva (…)”. 

 

Agora, cada um de nós pode continuar a intervenção. Eu rezo para que o casal não tenha que continuar nos termos que se seguem: 

 

“Caríssimos representantes dos povos do mundo. Depois da assinatura da Paz Definitiva (2019) foram, sucessivamente, assinados a Paz Verdadeira (2024), a Paz Real (2029), o AGP II (2034), a Paz Realmente Efectiva (2039) e hoje, 04 de Outubro de 2042, Bodas de Ouro do AGP I, no lugar da celebração, o início de mais uma acção para um outro acordo, o da Paz Realmente Definitiva, antes das eleições de 2044”  

 

No “show” comemorativo das cinco décadas de carreira, no Estádio Maracanã, as quatro gerações da família da brasileira se encantaram ao ouvirem o rei – ao vivo e a cores – a cantar as músicas dos indeléveis momentos de amor, paz e felicidade. Infelizmente, os anos e as gerações da independência do país se resumem dentro do quadro da lógica do “diálogo das armas” e do intercalado e intricado “diálogo dos acordos de paz”. Este, nem por isso bélico, mas tão exausto quanto o primeiro.  

 

O que tudo o que foi dito tem a ver com o título deste texto? É simples. Temo que o dossiê da paz em Moçambique – um dossiê inacabado (e por encadernar e arquivar) – se arraste, nas mesmas condições, por mais quatro ou mais gerações de moçambicanos. Por uma mudança – da actual situação sombria para uma de amor, paz e felicidade – urge (e apelo) a magia das canções de Roberto Carlos no processo de pacificação e reconciliação nacional. 

 

A findar, realmente a findar, creio que um bom ponto de partida, “à nossa e numa boa maneira”, passa por colocar os antagonistas do eterno diálogo - um para o outro e olhos nos olhos - a cantarem o clássico de Roberto Carlos: Como é grande o meu amor por você! 

terça-feira, 04 junho 2019 06:29

Quo vadis, Alice Mabota?

Chegou à um outeiro, ofegante, molhada de suor, esgotada pelas palavras,  e largou as armas  e todas as mochilas cheias de esperança. Tinha ainda pela  frente montes e montanhas firmes  para subir, mas  tremeu nas bases,  entregando-se, por conseguinte, ao escorrer do coração. Levantou várias vezes a cabeça para libertar a respiração.  Em vão!  Tentou cantar canções antigas dos machanganas em revolta, com o intuíto de ostracizar as nuvens que lhe adensavam o espírito... também nada! A voz saía gutural. Sufocada pelas poeiras levantadas em redemoínho.

 

Alice Mabota vacilou.  Agora sente nas mãos o vazio deixado pelas rolas, que partiram rumo aos mesmos céus que ela almejava para todos. Caíram as bandeiras que içava nas noites intermináveis, ao som da gargalhada das hienas. E se essas bandeiras não caíram em definitivo, então fazem falta as mãos da Alice, para juntos reiventarmos as melodias que vimos cantando desde as matas. Desde esse tempo em que atravessávamos os rios escoltados pelas feras aquáticas.

 

Agora só lhe sobram – para gáudio dos donos de tudo isto -  as lembranças de um tempo fresco  que ainda nos sustenta em colectivo. Ainda lhe ouvimos aqui e acolá, falando, porém sem a verve que lhe erguia para os pedestais do povo. Ela  continua, mesmo assim, a mesma. Ouvindo em sua casa sem se cansar, as músicas de Xidiminguana, para o ciúme do marido.

 

Mas  nós estamos aqui para dar o testemunho em todos os tribunais. Levantar-nos-emos diante dos juízes para dizer que sim, que conhecemos esta mulher que gesticulava,  tenaz, nas praças. Que desdenhava os polícias armados,  acompanhados de cães melhor alimentados que o povo. Diremos  à todos os magistrados que sim, que é esta a mulher que sempre vos enfrentou sem medo. Desprezando-vos na vossa incompetência. Na vossas condescndência ao poder. Diremos que sim, que é ela que vos apelava no sentido de virem para o lado da razão. Diremos isso, sim. Sem medo também. Como ela. Quando esgrimia. Em doses de avassalar.

 

Pode ser que sim, que Alice Mabota tenha sido encostada às cordas, neste combate da selva que está no último round, mas  nós cotinuaremos a ovacionar à volta do mesmo ring, agora ocupado por outra mulher. Alice caíu por sobre as pedras, com as quais ia construíndo o seu país, porém o sangue dela recusa-se a coagular. Ainda goteja como a própria luz que está prestes a gotejar nas nossas casas. Estamos no limbo da efectiavação dos vaticínios da mulher que, embora fragilizada nos fundamentos, não foi vencida.

terça-feira, 04 junho 2019 06:23

Relaxa, mano Bang

Epa, meu irmão…

 

Bem gostaria, de lá onde Mr. Bow se encontra a comemorar sua vitória, trazer as palavras mais santificadas possíveis; ungidas de fé e baptizadas de uma completa dose messiânica de solidariedade. Gostaria, mas pelo rufar dos tambores alheios na tua noite de fogueira faltam-me quaisquer resquícios de palavras. Toma apenas esta: relaxa.

 

Suponho não estar a dizer nada, mas parte lá do fundo – mais que qualquer poço, nem o vácuo de todo o mundo cabe. Imagina só dali da Major General Cândido Mondlane? Sai-me das profundezas do eu este “segura-te” ou “aguenta-te”, se quisermos cambiar o seu sinônimo.

 

Não tenho muito a segredar-te, meu mano. Também, se inventasse palavras a tua dor, mais do que das famílias enlutadas, seria abismal, sem mais nós por amarrar. Talvez, aqueles jornalistas não ganhassem uma Conferência de Imprensa, mas chutos e pontapés. Por isso, não vou me atrever a sacudir o silêncio da tua dor: relaxa.

 

Mano, eles no fundo não sabem que a principal família de luto é a tua. Tu estás “irritavelmente” morto como aquelas pessoas que se foram. Estás na mesma dose de sumiço. Eles, coitados, isso não calculam pois te vêem “gymado”. Pensam, lamentavelmente, que estás a sair do ginásio. Que estás junto daquelas pessoas ao encontro do Altíssimo não notam. Que forças tens tu para viver, mano? Que garras tens tu para realizar outro espectáculo? Ainda haviam mais crianças sedentas daquele “sonho molhado” e principalmente daquele grito agudo e mais (in)esperado do planeta (achas que não?): o “yeeeh nigaaaa, beng entretenimenti folaifi”. Mesmo assim, anulaste o segundo dia: colocaste um basta naquela brincadeira mais querida pelas crianças, que, podes crer, na noite de sábado, os mal intencionados destruíram.

 

Destruíram a brincadeira mas antes destruíram a ti e a tua família. Vi-te eu, com os meus próprios olhos. Mas já não eras tu. Estavas tão acabado, à semelhança dos perecidos. Os teus músculos continuam entre a tua pele e ossos, mas já nem músculos são. É que a grande família é a tua que se despediu naquele frenesim que se repete, sempre, a 1 de Junho de cada ano, desde que descobriste o jackpot. A tua família são todas aquelas crianças que inundaram aquele pedaço da Costa do Sol. Embora só sobrasse costa, o sol foi a primeira criatura a morrer.

 

Naquela valeta, empurrados, ainda excitados pelo “sonho molhado” tu também entravas, às cambalhotas. As fontes mentem: não entraram ali nove pessoas. São 10 contando contigo. Isso eles não sabem, nem a SERNIC chegará as verdadeiras conclusões. Por isso, irmão: relaxa.

 

Hoje, eles nem tem um pingo de solidariedade para contigo. Acusam-te até das desgraças nas suas vidas, como se fosses o mentor da má educação e da falta de cultura; do desrespeito institucionalizado pelos direitos das crianças e da falta de afecto que muitos pais exibem nas redes sociais.

 

Relaxa, mano Bang.

 

Olhe-os apenas e junta-te a mim nas pequenas questões: és tu culpado se as crianças só escutam houses e pandzas pornográficas no lugar de músicas puramente infantis? És tu o culpado se os pais não sabem em que parque colocarem seus filhos a 1 de Junho e o teu evento é única companhia de diversão? Não, mano Bang. Vem cá, tenho mais que questionar. Fica aqui: és tu mesmo que soltaste as crianças, desgovernadas, de Patrice Lumumba, Matendene, Khobe, a pé, até Aqua Park? És mesmo tu que algemaste os pais e a força escorraçaste-os até aquele recinto mortífero? Nananinanão! Eles quiseram, por isso, como te digo: relaxa.

 

Nunca te vi assim sabe, irmão. Nem pareces tu aquele que aparece dançando com todo o vigor, ultimamente, em vídeos clipes. Não pareces… Ou eles nunca gostaram da Bang Entretenimento (não a empresa, mas aquela febre de há 10 anos), dos espectáculos Time de Sonhos com angolanos escolhidos minuciosamente, do recente Projecto Âncora e, já agora, da Lizha Só Festas. Talvez, não. Este é um pretexto, se calhar, para te cortarem as pernas, que há muito conhecem o caminho do sucesso. O tecido empresarial anda bem gasto (como se de roupa chinesa se tratasse), por isso ninguém se dá por satisfeito quando o outro encontra nas crianças sua solução financeira. Logo, isso é mais “djelass” que outra coisa, por isso, confia em mim – respira e inspira: relaxa!

 

Não minimizo as mortes. Mas olho para a outra “morte”, a sexta. Esta é a tua. Se calhar a pior: o mais terrível é morrer respirando, andando, falando… um morto-vivo é de uma tortura sem dimensão.

 

Relaxa, mano Bang.

 

Não precisa andar em recados contra os teus amigos, acusando-os de perseguição. Sinceramente não precisas… fala com a tua advogada, por sinal também cantora. Ela sabe como organizar as “unhas”, aliás, as coisas. Não te metas nisto. Sei sim que estás a ser cutucado. E esta foi uma vara bem cumprida: cinco pessoas? Mas ela (a advogada) tem os truques de como resolver isto.

 

E digo-te mais: os seguranças traíram-te, irmão. Aqueles sujeitos só se empenham na hora da entrada, onde há boladas de bilhetes. Soube que o número extrapolou. Sabes, aqueles é que são os culpados. Como tu irias controlar isso: contar um a um? Na hora da saída não há bolada. Ninguém paga para sair, muito pelo contrário. Por isso os seguranças devem ter deixado as pessoas pisarem-se como bem quisessem. Estavam já a degustar do dinheiro que te roubaram ao aumentar gente fora das tuas contas. Isso eu não vi, é mesmo uma grave especulação. Mas tu sabes que houve um momento da minha vida que eu só andava em espectáculos e conheço bem esses corredores.

 

Nesse instante, julgo eu, estavas no camarim a celebrar com uma moet chandon de primeira linha, junto com os teus putos. Para ti o show já tinha terminado. Estavas a relaxar. Como saberias que já era hora do sangue actuar?

 

Cá para os meus botões não  tens culpa nenhuma, mas se fores responsabilizado, o mais provável, arque com as consequências. Mas depois, por favor não me desaponte, pegue na mão da mana Lizha e suma do mapa. Leva junto a tua filha, o trauma deve ter sido pior para ela: saber que os seus irmãos morreram na festa dela não é de se esquecer com um sorvete. Vá onde quiseres, sobrará com certeza dinheiro para isso. Mas atenção, tem de ser bem longe. Fica lá o tempo que precisares, até renasceres. Infelizmente os outros não irão voltar contigo, mas pelo menos terão servido de lição para que a criança não seja um mero instrumento de satisfação financeira.

 

Quando voltares… ah, voltas em dívida: os que compraram o bilhete do segundo dia, permita-lhes ouvirem um contador de estórias, um xithokozelo, uma música de Fernando Luís ou dos Panda e os Caricas (já que a febre de importação é tanta). Qualquer coisa, mano, só diminua aquelas manas com ceroulas e minissaias.

 

Mas, por favor, trata disso depois. Por enquanto relaxa. Nem este texto não te escuses a comentar, até porque é parte das tentativas de te derrubar.

 

Relaxa, mano Bang.

segunda-feira, 03 junho 2019 08:40

Itália no turbilhão do euro

A Itália aderiu à zona do euro em 1999, com o primeiro-ministro Massimo d'Alema do partido "Esquerda Democrática". Essa participação fatídica, que implicou a completa perda da política monetária independente, é sem dúvida a principal causa do decepcionante desempenho da economia italiana.

 

O PIB do país atualmente está em EUR 1,75 trilhão de euros e suas taxas de crescimento são extremamente anêmicas, atingindo apenas 0,9%. O Produto Interno Bruto (PIB) real per capita, segundo cálculos confiáveis, aumentou no período 1969-1998, em que o país teve sua moeda nacional, a lira, em 104%, enquanto no período 1999-2016, onde o país já havia adotado o euro, caiu 0,75%. Por outro lado, no período 1999-2016, o PIB real per capita da Alemanha cresceu 26,1%, tornando os cidadãos daquele país os mais beneficiados entre as principais economias da zona do euro.

 

A Itália, ao mesmo tempo, tem a terceira maior dívida estatal do mundo, depois dos EUA e do Japão, e, portanto, seu resgate é impossível, já que excede as capacidades dos estados europeus. A dívida do país, como porcentagem do PIB, atualmente é de 132% e em números absolutos de 2,336 trilhões de euros, enquanto em 1999 era de 109,7%. Então, pode-se notar facilmente um aumento significativo.

 

Ao mesmo tempo, desde 1999, o íngreme declive da Itália em termos de desenvolvimento havia começado. A Fiat deixou de dominar o mercado automobilístico europeu e o país perdeu sua posição de liderança como produtor de eletrodomésticos brancos. Muitas fábricas foram fechadas e várias grandes empresas foram transferidas para outros países. Milhões, além disso, as pequenas e médias empresas, que foi baseado na desvalorização periódica da moeda, para compensar as insuficiências do sistema econômico italiano, não podiam mais competir fora da fronteira italiana. Quais são essas inadequações? Problemas do mercado de trabalho, baixo investimento público e privado em desenvolvimento e pesquisa, alta burocracia governamental, sistema judiciário disfuncional, caro e lento, altos níveis de corrupção e evasão fiscal etc.

 

O desemprego é de cerca de 11% da força de trabalho, o quarto mais alto da União Europeia depois da Grécia, Espanha e Chipre. Ao mesmo tempo, o desemprego entre os jovens entre os 15 e os 24 anos, que, segundo as últimas estatísticas do Instituto Estatístico de Istat, representa uma percentagem muito elevada de 30,8%, reflecte de forma clara a profunda crise económica e social. que varre como um furacão o país mediterrâneo do sul europeu.

 

A pobreza atingiu o seu nível mais elevado desde 2005. O último relatório do Istat registou 5 milhões de pessoas em pobreza absoluta em 2017. Numa base percentual, 6,9% dos agregados familiares italianos vivem na pobreza absoluta, ou seja numa situação em que não é possível cobrir a despesa mínima mensal para a aquisição de uma cesta de bens e serviços que, no contexto italiano e para uma família com certas características, é considerada necessária para um padrão de vida mínimo aceitável.

 

Ao mesmo tempo, a Itália tem a maioria das agências bancárias por habitante em toda a Europa, que também são caracterizadas por um modelo de negócio errado, sobrevivendo apenas com juros e empréstimos corporativos. Assim, dado que as taxas de juros na zona do euro são zero, os bancos operam com perdas, tendo acumulado inseguranças (empréstimos vermelhos) que atualmente chegam a cerca de 260 bilhões de euros (15% do PIB italiano), dos quais muito se perde.

 

A economia italiana, a terceira maior na união monetária mal concebida, parece-me esquematicamente, com um cavalo cansado, carregado de dívidas e empréstimos vermelhos, que respira com dificuldade na subida, cheia de pedras e poças, da zona euro, que é um incrível sistema rígido, um espaço entupido de ferros para 19 países diferentes em produtividade, inflação, balança comercial e progresso tecnológico.

 

Portanto, deve ser entendido que a zona do euro é nada mais do que um campo de interesses conflitantes entre os países membros que a compõem. Assim, o que é de grande interesse para a Itália não é interesse em qualquer caso para a Alemanha. No entanto, a reconciliação de interesses ao longo dos anos da moeda comum revelou-se impossível. Isto é porque a Alemanha como a primeira potência econômica conseguiu dominar e governar, usando o euro para seu benefício, enquanto ao mesmo tempo os outros países, em vez de resistir e até colidir, se curvando e obedecendo.

 

No entanto, o custo de adiar a saída da Itália da zona do euro - que até agora evitou pelo menos um aparente temor do sistema político italiano por quaisquer efeitos negativos da saída - acabará por ser muito maior do que o custo da ruptura o início da crise econômica.

 

Α primeira decisão do governo de coalizão do Movimento 5 estrelas M5S e Lega, formado em maio de 2018, de apresentar um orçamento para 2019 com um déficit de 2,4% do PIB foi claramente na direção certa, porque é mais importante o reforço a economia italiana pelo fortalecimento da demanda interna, bem como a prosperidade do povo italiano, e não as rígidas regulamentações fiscais de Bruxelas impostas pela Alemanha e que não permitem isso.

 

A Itália deve finalmente deixar de recuar para os comandos de Berlim e temer a ruptura com a zona do euro alemã, porque é capaz de retornar à lira e assim recuperar sua soberania política, econômica e institucional. Apesar dos problemas atuais, ainda tem a segunda maior indústria da área do euro, depois da Alemanha e a quinta maior do mundo, com participação de 19% no PIB do país. A Itália produz desde aviões, carros, armas, sistemas eletrônicos até perfumes, sapatos e roupas. A Itália também precisa de energia, que é petróleo barato e gás barato, o que não tem. Mas poderia garantir petróleo de sua antiga colônia, a Líbia, e gás da Gazprom. Assim, com baixos custos de produção e uma moeda nacional flexível, ela se tornaria extremamente competitiva.

 

Em suma, a Itália, navegando como um barco abalado no turbulento mar da zona do euro, onde sopram fortes ventos, afundará matematicamente se sua liderança política não tomar, enquanto ainda for o tempo, a decisão inovadora e dinâmica de retornar a sua moeda nacional.

segunda-feira, 03 junho 2019 06:15

Um dia com Craveirinha

Por: Nando Menete/Assis Macaé 

 

Num texto recente (Por onde andas, Kalungano?) partilhei excertos de momentos interessantes de uma reunião com o poeta e político Marcelino dos Santos. Hoje, vou partilhar fragmentos de um dia - e outras circunstâncias – na companhia de José Craveirinha (ou Mário Vieira, José Cravo, JC, Abílio Cossa, Jesuíno Cravo e José G.Vetrinha), o nosso poeta-mor, falecido a 6 de Fevereiro de 2003. Um pequeno gesto para celebrar a data (28 de Maio de 2019) do seu nonagésimo sétimo aniversário natalício.    

 

Para iniciar, uns parênteses: Sempre soube quem era Marcelino dos Santos, a pessoa e a figura pública. O mesmo não era com José Craveirinha: Via-o (pessoa) na cidade e não me passava pela cabeça ou não tinha a certeza de que era o nosso poeta-mor (figura pública). 

 

Nos anos 80, ainda infanto-juvenil, tive os primeiros “contactos” com José Craveirinha em sessões espontâneas e caseiras de êxtase cultural. Nessas memoráveis sessões – composta por uma mescla de gerações de familiares e amigos - cada um mostrava o seu arcaboiço cultural e até científico. A declamação de poemas emblemáticos de José Craveirinha e de outros poetas, antigos e actuais da altura, era o auge das sessões e que nos deixava aos prantos, quiçá pelos dias cinzentos da época. À luz do tempo, e então em vésperas da democracia dos nossos dias, essas sessões foram, para os participantes, os primeiros acordes do associativismo e exercício livre de cidadania. E Craveirinha fez parte dessa aurora, um processo que – até hoje - se vai consolidando, entre sucessos e retrocessos. 

 

Era frequente avista-lo – sempre de boina preta- no bairro da Mafalala quando a malta da “Zona dos Bombeiros” – a que eu pertencia – se deslocava ao famoso bairro para afazeres recreativos (jogar e assistir futebol) e turísticos (assistir sessões de canto, música e dança). A boina preta – sua marca - fez parte da indumentária identitária da “zona dos bombeiros”. Suspeito que tenha sido uma imitação do “style” de Craveirinha. 

 

Outras vezes, no trajecto de ida e volta à Mafalala, cruzávamos com Craveirinha, no portão ou nas redondezas de sua casa, na zona da Munhuana. Desses momentos, retenho o seu ar urbano e contemplativo tal “caçador de clicks” para os seus poemas. Tenho dito, em brincadeira, que eu vi poemas de Craveirinha a serem feitos. Se não, pelo menos presenciei a safra dos ingredientes. 

 

Um outro local de avistamento era no Grupo Desportivo de Maputo, seu clube de coração. Neste clube, e como todos sabem, calculo, Craveirinha, em tempos idos, foi um atleta ecléctico e até à morte adepto ferrenho. Ele era uma presença assídua nas instalações do Desportivo quer a acompanhar treinos e competições, quer em singelas cavaqueiras. Certo dia – o que inspira o título deste texto - realizou-se um torneio interno da escola de minibásquete do Desportivo. A minha equipa (Bola ao Cesto) foi uma das finalistas. Os jogos decorriam de manhã e a tarde e José Craveirinha presenciou-os desde a fase de grupos até a final.  

 

Quando terminou o Jogo da final, Craveirinha veio ter comigo. Puxou-me para um canto e lá fez as habituais perguntas de adultos. Após o aturado inquérito passou para a sessão de conselhos, na verdade onde ele queria chegar. Entre outras coisas, recordo que me aconselhou a não só “chutar” - eu só apostava em lançamentos à distância e certeiros (risos) - mas que devia procurar e soltar mais a bola, aproximar e “brigar feio” no garrafão. Estava a ouvir Craveirinha pela milésima primeira vez. As outras mil foram nas sessões culturais dos nossos primeiros “contactos”. 

   

“Faça isso, rapaz!”. Assim despediu-me Craveirinha. Depois de um “Tá bom, tio!” fui a casa e num ápice - já noite - voltei para assistir ao jogo dos seniores. Era o habitual duelo dos eternos rivais e vizinhos: Desportivo vs Maxaquene. À entrada do pavilhão do Desportivo, pelo portão lateral direito e no compasso para ver alguém conhecido ou localizar um bom lugar disponível, deparo-me com uma mão levantada. Era o meu “conselheiro” a sinalizar que tinha um para mim. José Craveirinha estava sentado na dobra da bancada e mais acima. Aproximei e ele afastou-se, abrindo uma brecha entre ele e um seu amigo. Sentei-me, bem apertadinho, entre os dois e pouco depois a partida iniciou. 

 

O jogo não corria bem para o Desportivo e uma vaga de apupos era direccionada ao treinador, António Azevedo. A dada altura, o amigo de José Craveirinha levanta-se e toca a chamar nomes ao treinador, terminando com um sonoro “seu careca!”. Em seguida, o ilustre amigo de Craveirinha - enquanto procurava encaixar devidamente a bunda na bancada, tal era a enchente no pavilhão - veio-lhe à consciência, perdida por alguns instantes, que José Craveirinha (sempre sereno e tranquilo) também era careca. 

 

Ultrapassado o tempo suficiente de espera, já composto e comportado, o amigo de Craveirinha desculpou-se e desprendeu um melódico: “Oh! Zé Craveirinha, tu és diferente. És um careca intelectual!”. No momento caiu-me a ficha. Afinal o meu “conselheiro” era nada mais nada menos que José João Craveirinha, o poeta-mor e nacionalista moçambicano. 

 

Anos depois, numa entrevista, a propósito da sua “galardoação” com o Prémio Camões (1991), o mais prestigiante da literatura em língua portuguesa, Craveirinha lamentou que o valor monetário do prémio encontrou-lhe a “dobrar a esquina”, aludindo, creio, à idade que lhe fugia. 

 

Infelizmente, nunca mais estive “cara-a-cara” com o poeta-mor e meu “conselheiro”, José Craveirinha. Acho que pesou o facto de eu ter passado para o outro lado da fronteira (Maxaquene) poucos dias depois do jogo a que assistimos, sentados, na dobra da bancada - à direita - do Pavilhão do Desportivo. Saravá, Mário Vieira! 

quinta-feira, 30 maio 2019 09:44

Psiu, coloca-me ali. Faz favor…

Ele olhou para mim, aflito, como se me conhecesse. Eu estava atrasado nesse dia (minto, quase todos), por isso não lhe dei ouvidos quando num tom agudo vibrou:

 

- Psiu!, coloca-me ali.

 

Enquanto andava, apressadamente, descompassado, uma perna duas vezes a frente da outra, como que a pular galhos, voltei-me para trás a fim de testemunhar o tal lugar que o coitado ansiava se ver colocado. Vi, não fui contado: era uma verdadeira guerra matinal. Segundo contou o fulano há muito aquele cruzamento é palco de combate entre as tropas ferrenhas do General Alexandre dos Santos e egoístas do Major General Carlos Mondlane. Quase que nunca alcançam consensos. Já houve, inclusive – segundo conta – bombardeamentos e algo pior, sobretudo àquela hora: entre às seis e quase perto das sete horas.

 

Olhei para o sujeito, com um ar sarcástico, mas o meu pescoço declinou quando notei que jamais o alcançaria as fuças e, claro, temendo represálias disse apenas aos meus botões algo que ele exigiu ouvir sem reservas. Aí que chutei:

 

- Como dois generais terão mesmo que se entender? Como se faz isso, ora? – Já nem parecia estar carregado de pressa, deixei a trouxa da urgência cair ali mesmo, sem medir a gravidade, e olhei para onde a minha vista chegava no sujeito e descarreguei: - onde viste tu, em que parte do Globo, Generais baixarem a guarda. Viste como foi titânica a luta entre Guebuza e Dhlakama – zombei – aquilo é de gurus, gajos com patência, esses não dão tréguas.

 

Inclinado, quase a torcer a coluna para fixar seus olhos de três cores no meu metro e setenta, ouvia espevitado: - ah!... – retorquiu. Ganhei pujança: - com Chissano, um diplomata, não foi assim. Até o mecânico provou ser bom de lábia e tolerância. Já o tenente-general conhece as palavras da guerra: espingardas e granadas.

 

- Verdade… - consentiu, com um ar maculado.

 

Voltei a olhar para aquele rebuliço entre as tropas dos dois generais. Nós os civis, para atravessarmos aquele cruzamento precisamos, antes, orar. Alguns clamam a Deus, outros aos seus ancestrais para poder se verem noutra margem. Aquilo é um verdadeiro atentado à saúde do peão, que incansavelmente contribui para as contas do Estado com o seu sacrificado imposto. Mas, na hora de ir quer ao serviço ou à escola – pelo menos naquela parcela de Maputo não sabe dizer se vai chegar são noutra margem da estrada.

 

As balas passam mais depressa que o próprio vento. Atravessam o ar até assustar as folhas e os pássaros. Não há qualquer tranquilidade. Há, até, umas lombas por ali, uma espécie de barreira para as balas, mas de nada servem. Tanto as tropas de Carlos Mondlane (também conhecidas como Dona Alice) ou de Alexandre dos Santos (para quem vai às Mahotas) ficam entontecidas e muitos desconhecem as regras de trânsito naquele lugar. E que regras valem para gente que só pensa no seu próprio umbigo!?...

 

O mais grave nota-se quando os alunos querem se fazer a escola. Esperam horas a fio para poder ter a outra margem nos sapatos. E nos dias de testes ou exames? Os meninos ignoram os projéteis a eles apontados como se de criminosos se tratassem e tomam o trajecto que lhes é merecido ao encontro do futuro. Aí, uma manada de berros – à buzinadelas –  fustiga a paz da manhã.

 

Vezes há que o trânsito é cortado, pois houve tombos, raspagens e outras infelicidades. E nem um polícia, aquele que acho que o meu bom amigo me confunde, está para apaziguar os ânimos.

 

Pensei tudo isso olhando para aquela lufa-lufa. E pensei mais: o maldito Simango, aquele que veio com esta boa ideia de alargar a cidade, criando vias de acesso e de escape, não pensou nestes dois generais astutos que não dão trégua mesmo quando já é depois das quinze? Claro que não pensou, resolvi-me. Como não pensou numa data de obrigações: eliminar de vez a lixeira de Hulene, que por sinal a Major General Carlos Mondlane dá para lá, ou terminar aquela estrada que vai dar a Praça dos Combatentes saindo da família Guebuza, no Albazine, ou mesmo retirar os vendedores ambulantes à sério [como tenta o fazer o economista (agora) de volta onde não deveria ter saído] e não colocando cães raivosos nos nacos dos nossos irmãos.

 

Ele (o meu bom Simango) não sabia mesmo que esta história de cruzar dois Generais não ia terminar com um final feliz? Um professor de Português que se preze (como ele) desconhece os desfechos dos enredos? Ah, sei: julgou que aquela rampazinha, tranquila, pudesse travar a sede das tropas belicistas em chegar ao centro da cidade à horas. Quanta ingenuidade!

 

- Hei! – cutucou-me o homem nas alturas.

 

Dei por mim o atraso já se tinha acelerado. O que vou responder a este coitado?, indaguei-me. Passo apenas por um cidadão inconformado, não tenho quaisquer truques de ali o deixar. Vi, de repente, um carro a piscar a minha esquerda. Reconheci aquele uniforme e lá fui abrir a porta pesada. Bem que queria o ter ajudado, mas a minha boleia não podia esperar eu inventar truques. Prometi resolver o seu desejo. Antes da viatura partir, embora as rodas já semeassem covas nos pavês, perguntei: - qual é o teu nome, amigo?

 

- Porquê? – já irritado.

 

- Hei-de falar com alguns amigos do Município. Tenho lá um tipo na Comunicação, também é escritor , quem sabe possa mexer algum pausinho.

 

Ficou cabisbaixo. Como se o Município não lhe confiasse esperança. Mas quando notou que já me distanciava, gritou com todas as letras, até seus três olhos acenderam ao mesmo tempo:

 

- Semáforo.