Um dos sinais citadinos de que a “sexta chegou” é o movimento de pessoas - na sua maioria da terceira idade - pelas lojas da cidade em busca de doações, vulgo esmola. Há uns anos e numa dessas sextas fui interpelado por uma “cota-mendiga” que já era uma familiar de vista e de tantas sextas anteriores. Um dos “doadores” dela era um estabelecimento nas proximidades do meu domicílio na altura. Nesse dia e de tanto calor eu estava sentado no degrau que dá acesso ao portão de casa à sombra de uma acácia (que deus a tenha) danificada por “manuelinos” (os que bebem num bar e de nome próximo). Falando nestes e pelos danos ambientais só favorável a uma “taxa-acácia” no preço de cada unidade de álcool. O valor seria usado na reposição de árvores pela cidade. Acredito que Maputo voltaria a ser a cidade das acácias.
Voltando ao que contava: a velha aproximou e cumprimentou-me de forma amável e sorridente. Em seguida pediu uma garrafa de água gelada para levar. Perante o meu semblante de dúvida a cota estrategicamente reforçou o sorriso. Não resisti e num ápice respondi ao pedido. Depois de sorver o primeiro gole da água agradeceu e seguiu com a rotina.
Por algum motivo fiquei algum tempo sem botar a vista nela. Até que numa outra sexta de intenso calor sucede o mesmo cenário que contei acima. Tentei fingir que não lhe tinha visto. Mas já era tarde. Desta vez e para a minha surpresa a cota não me pediu uma garrafa de água. Apenas pediu um singelo abraço de amizade. Depois do fraterno abraço a cota pergunta olhos nos olhos: “lembras de mim? “Respondi que sim acenando a cabeça. Nesse instante reparei que ela lacrimejava. Enquanto ela limpava o rosto – denunciando certo constrangimento por estar aos prantos - voltou a agradecer a garrafa de água que lhe havia oferecido da última vez em que nos avistamos. “Deus lhe abençoe, meu filho”. Assim despediu a cota, deixando-me sem chão.
Por estes dias tenho recordado deste episódio. Razões não faltam: tenho visto tanto mendigo à solta na rua. É uma azáfama diária de mendigos-extraordinários de todas as cores, idades e extracto social. Não são tão diferentes dos habituais das sextas-feiras, os mendigos- ordinários. O que lhes diferencia é o tamanho e implicações do pedido. Os mendigos-ordinários suplicam por uma fatia de pão para aguentarem a sexta-feira. Os mendigos-extraordinários imploram para que o pão seja de borla durante cinco anos.
Desde 1994 - ano das primeiras eleições multipartidárias em Moçambique – que é sempre assim de cinco em cinco anos. E no próximo dia 15 de Outubro corrente será o mesmo: ficar na bicha para escolheres a quem vais pagar o mata-bicho durante cinco anos. Em 2024 eles voltarão e o refrão será o pão de sempre. Por estas alturas eleitorais tenho saudades da nobreza da “cota- mendiga”.
Aqui a Estrada Nacional Número Um (EN1), bifurca. Estende um ramal que nos leva ao sossego inultrapassável da cidade de Inhambane. Continuando, porém, na sua longitude, a escoar o caudaloso e ininterrupto tráfego comadado pelos camiões de grande tonelagem, que vão, aos poucos e poucos, danificando a base que suporta o asfalto.
Estou sentado na varanda da antinga estalagem de Lindela, respirando o ar que sai de dentro do edifícício cheirando a bafio. Sinal claro de que aquilo que já foi o local de acohimento para os passantes exaustos, hoje é um mamarracho. Não há sinal a indicar-nos vida pelo menos nos próximos tempos, já que o azimute mudou para o Santo António, um restaurante-pensão que tomou conta da história local.
Percorri trinta e dois quilómetros da cidade onde moro para ver um amigo que vai a Malema. Ele vai passar por aqui daqui a pouco, vindo de Maputo, e nesse momento a ansiedade de revê-lo vai esmorrecer no profundo abraço que vai-se materializar entre nós. Há muito que não nos vemos. E enquanto ele não chega, estou neste lugar sentado tendo como cadeira um bidon de plástico, de vinte e cinco litros, usado antes para acondicionar óleo alimentar.
São dez horas. O meu amigo volta a ligar e diz com entusiasmo, estou a passar Inharrime, brada! Inharrime é aqui perto. São vinte minutos de carro, mas como o homem que vai ao volante inspira-se no brasileiro Emerson Fittiplad, que venceu o Campeonato Mundial da Formula 1 e o Indianapolis, quinhentas e duas vezes cada, pode chegar antes de cinco minutos. Com ele tudo é possível.
Tenho medo de auriculares. Usei abusivamente os auscultadores, em som alto, quando era locutor da Rádio Moçambique, e o resultado é que rebentaram-me o ouvido do lado esquerdo. Agora priorizo o som da natureza. A música dos pássaros. Do vento. A sinfonia das chuvas e trovoadas. É por isso que estou aqui a mercê de todos os sons. Dos camiões que passam e descarregam o estrangulador...... brrrrrrrrrrrrrrrrrrooooooooooooooooooo!
Nem parece que estou aqui sozinho. Há uma companhia intensa. Calorosa. Todos que vão passando perto, saúdam-me vocalizando um bondia, ou acenando com a mão, ou ainda meneando a cabeça, e eu retribuo com rigozijo. Esqueço-me que estou sentado por sobre um bidon de plástico, de 25 litros, oco por dentro. Sem nada. A sensação que me habita o interior é leve. Quanto mais não fosse, estou a espera do meu brada.
Dez minutos depois da chamada feita em Inharrime, vejo um espampanante Crysler 300 deslizando suavemente na estrada, e logo a seguir saíndo para estacionar, um pouco afastado do local onde estou. É ele!
Nunca imaginei que viesse numa viatura tão fora do comum, mas com o meu brada, como já o disse, tudo é possível. Levantei-me e fui ao seu encontro a correr, como uma criança. Ele também, quando me viu, saíu do carro e veio na minha direcção, como uma criança solta, que vai saltar para o peito da mãe ou para os braços do pai.
Apertamo-nos. Unimo-nos. Juntamo-nos. E ficamos sem palavras.
Perguntei-lhei o que ia fazer em Malema.
- Vou ver minha mãe, vamos juntos, brada.
Cresci com a mensagem de que pedir demissão é um acto fora dos costumes africanos. Entre portas, amiúde oiço que a figura de pedido de demissão embarcou com os portugueses quando estes partiram em massa no contexto do processo de independência de Moçambique. Talvez por aqui a explicação da razão do alarido social e do destaque noticioso das vezes em que um pedido de demissão é feito por um compatriota. Foi assim com o recente pedido de Rosário Fernandes do cargo de presidente do Instituo Nacional de Estatísticas (INE). E deste pedido não vou falar, mas de outros (três) que conheço. Confesso que tenho dificuldades de encontrar cinco exemplos. Apenas encontro quatro pedidos: os três que abaixo partilho e o do Rosário Fernandes.
Um meu chefe de turma foi o protagonista do primeiro pedido de demissão que acompanhei na vida. Corria a segunda metade dos anos oitenta e em tempos de partido único. O segundo foi nos anos noventa e em tempos de democracia multipartidária. O pedido foi de Brazão Mazula que pedira demissão do cargo de reitor da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). O terceiro foi em 2018. Desta vez por uma protagonista de palmo e meio e das funções de chefe-adjunta de uma turma da 4ª classe.
O primeiro pedido: em plena reunião de turma (7ªclasse), uma quarta-feira, o chefe de turma pediu a palavra no início da reunião. Se não me engano foi um ponto de ordem. O director de turma, um dos professores, consentiu e perante a sua estupefacção ouviu um categórico “Peço demissão, Senhor Director!”. Em seguida o chefe de turma fundamentou a sua decisão na usurpação de competências, sobretudo as adstritas ao controle do lanche que era fornecido pela cantina. Acontecia que os colegas mais velhos, na maioria bi-repetentes, utilizando artimanhas e ameaças, desviavam o lanche e faziam a respectiva distribuição baseada em critérios femininos (gratuitamente) e desportivos (preço bonificado).
O segundo pedido: no contexto de uma greve de estudantes bolseiros da UEM, o reitor Brazão Mazula sacudiu a pressão pondo o seu cargo à disposição. Salvo melhor informação, o então presidente moçambicano (Joaquim Chissano) não anuiu. De todas as maneiras, creio que este foi o primeiro pedido de demissão depois da independência. Se não, no mínimo, acredito que tenha sido o primeiro na era multipartidária. Sublinho que me refiro aos pedidos de demissão de cargos públicos e que tenham sido veiculados pela imprensa.
O terceiro pedido: conforme dito foi o de uma menina de palmo e meio e aluna da 4ª classe. Na habitual reunião semestral de pais e encarregados de educação o director de turma partilhou o pedido e explicou que a demissionária deixou o cargo de chefe-adjunta, alegando que o cargo não tinha nenhuma utilidade. Em defesa da sua decisão a petiz apontou que o colega e chefe de turma concentrava, abusava e tinha funções em excesso, não delegava nenhuma das funções, não faltava, não atrasava e nem adoecia. Foi o máximo. Da reunião ficaram lições e sinais de esperança e vitalidade para a democracia moçambicana.
Por coincidência o primeiro pedido de demissão foi no ano anterior (1987) à vinda do Papa João Paulo II (1988) ao país e o terceiro pedido no ano anterior (2018) à vinda do Papa Francisco (2019). Depois da visita de João Paulo II foi necessário passar oito anos para presenciar um outro pedido de demissão (o segundo). Espero e havendo circunstâncias – no mínimo as que ditaram as três demissões e a do Rosário Fernandes (a quarta) - que eu não tenha que aguardar outros oito anos para ouvir o próximo pedido de demissão. E assim não será por obra de Rosário Fernandes que tratou de contrariar os dados, apresentando a sua demissão no mesmo ano da visita do Papa Francisco. O próximo?
PS. Perante circunstâncias que suscitem um pedido de demissão e tal não aconteça a comissão de ética devia agir. No mínimo o visado que fosse notificado sobre as lesões causadas à saúde pública e na própria dignidade do visado, seus colegas, família e amigos por tamanha e vergonhosa falta de atitude e brio profissional. Que o visado não espere pela acção da comissão de ética e nem que lhe seja recordado o nobre exemplo da menina de palmo e meio, chefe-adjunta de uma turma da 4ª classe, em circunstâncias análogas, incluindo as de outros pedidos. Não faltam exemplos para o quinto pedido de demissão. Por enquanto: Atenção a chamada!
No dia em que tudo isto aconteceu voltávamos de Tete, eu e o meu pai, depois de umas férias agradáveis passadas em Tsangano, alí no limite com o Malawi. A princípio a ideia era esventrarmos a terra de Khamuzu Banda, para depois reentrarmos em Moçambique por via da província da Zambézia, onde nos esperavam arrebantantes paisagens da natureza. Mas o plano mudou quando nos disseram que no Malawi chovia torrencialmente há dois dias. Pegamos no mesmo caminho que nos levara até ao lugar das imensas pradarias e colinas, e fruta fresca e comida de não acabar. Agora de regresso à Maputo, onde eu nasci, contrariamente ao meu pai que é nyandja dali.
Para além de viajarmos num carro confortável, um BT-50 dupla cabine em boas condições, a maior sensação de segurança que me vai dentro, vem do facto de o meu pai ser um condutor responsável. Ele respeita a estrada e os seus sinais, mas sobretudo respeita-me a mim, por isso evita criar condições em que eu possa ser assustada por qualquer manobra imprudente. Não que ele ande a quarenta ou sessenta. Não! Mas também nunca passa dos 120, pelo menos quando está comigo.
Saímos de Tsangano muito cedo. Podiamos ter saído mais cedo ainda, mas era necessário esperar que o nevoeiro desvanecesse para termos visibilidade plena. E quando chegamos a Tete, meu pai propôs que fizessemos uma curta paragem para um café. Fomos ao Almadia, ali na margem sul do rio Zambeze de onde, enquanto degustavamos do pequeno almoço, aproveitavamos a ocasião para contemplar a ponte que é um especáculo vista daqui.
Meu pai bebeu uma grande chávena de café e uma sandes de queijo, e eu imitei-o, embora ele sempre me diga, cuidado com o café!
Retomamos a estrada por volta das nove, despedindo-nos de Tete, uma cidade agreste cercada de montanhas de pedra. Vi Kalowera do lado direito, já à saída, com o bairro Kanongola do lado esquerdo, e entreguei-me, absorta, àquela paisagem que deixava para trás. Foi nesse momento de pensamentos que meu meu pai, sem olhar para mim, disse-me assim, aperta o cinto, meu passarinho. Ele gosta de me tratar assim. Sou o passarinho dele. Uma menina amada.
À entrada de Katandiga, minha mãe ligou de Londres onde estava a fazer o doutoramento em Antropologia. Ligou para o celular do meu pai, e o meu pai deu-me sinal com a cabeça para que eu atendesse. Peguei no telefone mas não falei sequer uma palavra. Um monstruoso camião, que vinha em sentido contrário ao nosso, perdeu repentinamente a direcção e veio para a nossa faixa. Meu pai ainda tentou fazer um milagre para fugir do mastondonte enquanto eu gritava chamando pela minha mãe: mãeeeeeeeeeeeee!!!!!!!!! O nosso carro foi a tempo de evitar o choque frontal, mas capotou logo a seguir, e depois disto não me lembro de mais nada.
Despertei no Hospital quinze dias depois numa cama ortopédica, e o meu pai estava ali, agora com a minha mãe que teve de abandonar os estudos por conta do que nos aconteceu, a mim e ao meu pai. Que não sofreu no acidente. Os dois estavam ali, olhando-me com comiseração e perguntei, o que é que está acontecer, mãe? Eles debruçaram-se sobre mim, chorando e molhando meu corpo com as lágrimas. E eu percebi rapidamente tudo. Não foram necessárias muitas palavras. Estava paraplégica. Para sempre. Mas continuo a ser uma mulher. Que ainda vai voar, mesmo sem poder mexer as patas. Escangalhadas. Para sempre.
Há dias acompanhei - num dos canais de televisão da praça - uma reportagem sobre o elevado custo (160.00Mts) da portagem da ponte “Maputo - KaTembe”. O mote foi uma petição de residentes da Katembe, sobretudo de potenciais automobilistas/utentes frequentes da ponte. A reclamação-mor era a redução do valor da portagem para um nível comportável e semelhante ao valor (35.00Mts) da portagem da Matola. Outra reclamação recaia sobre os riscos da alternativa usada: estacionar os carros (sem nenhuma segurança) nas proximidades da portagem e viajar de transporte público/chapa (excesso tempo de espera e condições de viagem).
Por onde alinho? Pela manutenção ou redução do valor praticado na portagem da ponte? Em benefício de mudanças na mobilidade (redução de congestionamento) e na saúde pública (redução da poluição do ar e sonora) alinho do lado que não estimule o uso de carros particulares. Dito de outro modo: alinho por políticas/medidas que restrinjam a circulação de carros particulares na cidade. E para o caso o valor da portagem funciona como meio de restrição.
Também alinho por tais políticas/medidas por uma questão de justiça/democracia: os carros particulares ocupam a maior parte do espaço público (circulação e estacionamento) e transportam menos pessoas em detrimento de outros modos (transporte colectivo, pedonal e bicicleta) que ocupam menos espaço urbano e são responsáveis pela maioria das deslocações dos cidadãos. Logo: reduzir a circulação de carros particulares (reclama a minoria) melhora a mobilidade dos restantes modos de transporte (aplaude a maioria) e ainda melhora a saúde pública (beneficia a todos).
Neste contexto e nas actuais (péssimas) condições de mobilidade em Maputo o foco da solução é óbvio: transporte colectivo, pedonal e de bicicleta. E uma aposta na qualidade e articulação/integração destes modos devia ser a base do conteúdo de campanhas de advocacia e da própria resposta do estado, autarquias e do sector privado. Felizmente e na área metropolitana de Maputo já existem sinais encorajadores nesse sentido (Agência Metropolitana de Transportes de Maputo e o projecto Metrobus do Grupo Sir Motors).
No mesmo sentido - para o caso em apreço da petição em marcha - a melhoria das condições da alternativa usada para a travessia da “Ponte Maputo – KaTembe” - estacionar o carro e apanhar o transporte colectivo - devia ser o foco da petição dos potenciais automobilistas/utentes frequentes da ponte. O que vale atravessar a ponte no seu (confortável) veículo - mesmo que seja grátis - e ficar parado/engarrafado nos acessos da mesma?
PS (i). Trouxe à mesa este assunto como contributo e antevisão do debate no quadro da campanha eleitoral que se avizinha. A mobilidade urbana será de certeza um dos temas de destaque. O que os partidos esperam fazer nesta área? Como fazer? Os custos e fontes de financiamento? Não faço ideia. E por esta razão: antes de confiar (o voto) confira (o manifesto). O provérbio “confie, mas confira” é russo e foi mundialmente cunhado por Ronald Reagan, 40º presidente norte-americano (mandato 1981-1989). Assim devia ter sido no processo de concepção e construção da ponte “Maputo-Katembe”. O presente pode estar envenenado.
A nossa amizade é inabalável. Conquistamos – eu e ele – ao longo do percurso de mais de meio século que dura a nossa relação, a liberdade de nos dirigirmos um ao outro sem reservas, com honestidade. Foi nessa condição que, cansado de ver o meu amigo caminhando impotente para o pricipício, já no fim da linha, balançando ao titmo de uma carcaça inútil, falei-lhe aquilo que penso, sem filtar as palavras. Eu disse-lhe assim, meu irmão, estás um trapo de merda.
Pior do que tumefacto, o rosto daquele que em tempos parecia O.J.Sinpson correndo com a bola ao encontro da luz, está lívido. Arrepia olhar para ele, sobretudo nas manhãs, antes de começar a cavalgada que o vai transformar em esterco. Treme de cima a baixo e não consegue suster o olhar em seja o que for. Os lábios estão gretados, numa boca que esconde o bolor repugnante que se aloja por sobre as gengivas, onde estão embutidas duas filas de dentes completamete queimados pelo tabaco.
A mulher, embora continue ao seu lado suportando um cadáver que pode ser enterrado daqui a pouco sem glória, não pode fazer mais nada senão preparar as lautosas refeições que mesmo assim Chico não come, e lavar a roupa para disfarçar o corpo de um homem que é diariamente enxovalhado pelo álcool. Chico não tem peladar. O único sabor que conhece e do álcool e do fumo. Chico é a antítese de pessoa. Aliás eu disse-lhe isso várias vezes para ver se as minhas palavras serviriam para alguma coisa. Nada!
Ainda nem o sol ganhou plenitude e o meu amigo já está na segunda dessas “garrafinhas” que têm levado muitos jovens a esquizofrenia. Se calhar o meu amigo também está aí. Ele padece. Vê-se nos olhos esbugalhados, constantemente feridos pelo fumo que espantosamente ainda não lhe provocou a catarata. Mas o sofrimento do Chico, agora que já está em “órbita”, é disfarçado pelo vozeirão à Barry White, cantando canções dos americanos, tipo Memphis Slim. Canta e conta histórias inacreditáveis. Desconhecidas. Levita como os cosmonautas. E provavelmente isso é que lhe vai ajudar a descer o desfiladeiro.
Cada vez que falo com o meu amigo no sentido de ele vir para este lado, o meu amigo ri-se de mim às gargalhadas, abrindo desmesuradamente a bocarra repugnante. Voltei a dizer-lhe que era um trapo de merda e ele, serenamente, disse-me que eu não sabia o que estava a dizer. Pode ser verdade. Mas gosto dele, isso é que importa, e já percebi que também eu, como a sua delicada e dedicada esposa, não posso fazer nada, senão assistir à marcha de um homem que vai a execução sem capuz. Aliás vai encapuzado pelo álcool que lhe dá prazer nesta caminhada fatídica.