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Carta de Opinião

terça-feira, 12 março 2019 13:24

Aprofundar a democracia na escola moçambicana

“Hoje estou aqui/ entre mártires e traidores/ entre bandidos e inocentes/ entre hipócritas e fariseus” (Vera Duarte, Esta canção desesperada)

 

Apaixonei-me à primeira vista pelo livro Repensar o Estado: para uma social-democracia da inovação logo que o vi, entre tantos, na prateleira de uma livraria, em Bragança, finais do ano passado. Comprei-o e passou a ser meu fiel companheiro de viagem e cabeceira.

 

A edição que tenho em mãos sai sob chancela da Círculo de Leitores, da autoria de Aghion, P. & Roulet, A. (2012), economistas franceses, tradução de Francisco Telhado, do original Repenser l’État: poer une social-démocratie de l’innovation (Éditions du Seuil et La République des Idées, 2011).

 

O livro que, em traços gerais, delineia “os contornos de um Estado repensado: Estado investidor, Estado regulador, Estado garante do contrato social e da democracia” (p.145) tem quatro capítulos, sendo o quarto Aprofundar a democracia (pp. 117-143). É nele que me baseio para tecer estas pequenas notas.

 

Não sendo cientista social, muito menos economista, este acto emana do exercício da cidadania, como os seus próprios autores testemunham, “a liberdade de consciência e de expressão, o confronto das ideias, a possibilidade de um debate contraditório, de pôr em causa um regime, ou até mesmo de derrubá-lo, fazem parte integrante da dignidade humana” (p.117).

 

O capítulo Aprofundar a democracia tem como principal linha de força a possibilidade de medição da democracia, assente, por sua vez, na democracia como indicador de crescimento, da liberdade, da criatividade e da corrupção. Nestes nós, a meu ver, podem tirar-se importantes lições para a escola moçambicana (uso o termo escola no sentido de educação), embora a reflexão original se refira aos países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), em especial a França.

 

Para atender às necessidades urgentes da nossa escola (nossa porque também faço parte dela, no dia-a-dia, na sala de aulas), entabulamos às premissas do capítulo em recensão, a liberdade, a criatividade e os valores morais que se querem cultivados em Moçambique. Alias, parecem esses fazer um entrosamento com a linha urdida por Aghion & Roulet.

 

Ao debruçar-se sobre a liberdade, Aghion & Roulet (2012:122) apontam “é um facto que as grandes invenções não se coadunam com o autoritarismo e a hierarquia” e parece essas práticas amararem a nossa escola ao marasmo a que se encontra. Como exemplo, os autores partilham:

 

Se Larry Page e Sergey Brin, estudantes em Stanford, puderam desenvolver conjuntamente, no âmbito do seu doutoramento, o que viria a ser o Google, foi porque tiveram toda a liberdade para escolher a pista que desejavam explorar e não receberam ordens dos seus «superiores» relativamente a escolha do tema da sua tese.

(Aghion & Roulet, 2012:123-124)

O autoritarismo e a hierarquia empurraram a nossa escola para o círculo do yes man: só a ideia do chefe vinga, só o chefe sabe, o chefe sabe tudo, só o chefe fala, o chefe fala tudo. Na nossa escola quem sabe ou fala mais que o chefe sofre sevícias. Reina, na nossa escola, o culto do silêncio.

 

O aluno da nossa escola não só não sabe ler e escrever, isso é de menos. O aluno da nossa escola é ensinado a ter medo do professor, a dizer o que o professor quer ouvir, a dizer direitinho ao pé da letra do apontamento. O aluno da nossa escola deve vestir-se bem e não superior ao professor, deve fazer a barba, o cabelo e as unhas, igual ao que o “regulamento” manda. Experimente furar a orelha!

 

O aluno da nossa escola é um mero reprodutor que não foi ensinado a transformar uma frase activa em passiva, a inverter o sujeito do objecto, a usar da recursividade proposta por N. Chomsky, porque o professor não disse assim. Da noite ao dia, estamos a formar autênticas multiplicadoras, caixas de ressonância, quando bem formadas.

 

O professor da nossa escola não fala em reuniões, não aponta erros e nem sabe dizer o que pensa em grupos de whatsapp institucionais com medo de não ser promovido ou ser despromovido.

 

A nossa escola devia ser o laboratório de ideias. Mas as ideias só nascem em espírito e ambiente livres: livres da burocracia excessiva, livres dos lambe-botas, livres dos chefes pro-adulação, livres da censura, livres do medo.

 

A nossa escola transformou-se em centro de imitação, “pelo contrário, nos setores de ponta, o crescimento das empresas baseia-se na inovação «na fronteira», que implica delegar pelo menos parte do poder decisório, de maneira a estimular a criatividade no seio da empresa” (Aghion & Roulet, 2012:124).

 

A criatividade só é possível onde não se tem medo de errar, onde não se tem medo de experimentar novas coisas, novos métodos, novas técnicas, na fronteira entre a realidade e a loucura. Este espaço parece cada vez mais longe da escola moçambicana.

 

A gritante falta de valores morais na sociedade moçambicana é, em grande medida, produto da nossa escola. Numa escola aonde a democracia não está aprofundada não se pode praticar os valores da tolerância, da escuta, do respeito, da cedência, do perdão, do amor ao próximo, da paz. E, em última instância, nesse ambiente não se pode exaltar a pátria.

 

A nossa escola inverteu os paradigmas: transformou nacionalistas em gatunos, dirigentes em corruptos. A mudança desse quadro, tal como Aghion & Roulet (2012:118) sugerem para uma economia de crescimento, parece estar no aprofundamento da democracia na nossa escola. E isto passa por: (i) um maior grau de democracia e descentralização na gestão da nossa escola – que, por sua vez, propicia a criatividade e o aparecimento de novos paradigmas; (ii) um sistema político mais democrático e menos corrupto, onde os lóbis exercem menos influência sobre os gestores da escola – o que dá lugar à inovação; e (iii) evitar comportamentos de favoritismo ou de clientelismo – o que impede que a escola seja tomada por interesses da casta dos gestores a base de favores e apetências pessoais.

 

Para fortalecer esse quadro de uma democracia aprofundada, para o qual a escola joga um fator determinante, Aghion & Roulet (2012:129) sugerem que os meios de comunicação social sejam suficientemente independentes para apontar o dedo a práticas políticas duvidosas ou abusivas e que se criem instituições adequadas e dotadas de meios suficientes para avaliar as políticas públicas de forma sistemática, independente e rigorosa.

 

Enfim, parece aprofundar a democracia na escola moçambicana ser o passo para o povo tomar o poder.

___________________________

[1] Linguista, escritor e docente.

 

terça-feira, 12 março 2019 10:18

O lugar do eu e do outro na cidadania

A todas e a todos, permitam-me que expresse a minha felicidade por estar aqui na Universidade Lusófona do Porto, para fazer parte da mesa redonda sobre o ‘Associativismo e Cidadania’, na companhia da Cecília Gonçalves, Fátima Cordeiro, do João Russo, do Joaquim Guedes, e do Alberto Magassela.   

 

Ainda no espírito de 8 de Março, é com muito gosto que me dirijo às raparigas, jovens e mulheres, presentes nesta sala.

 

Antes de começar, permitam-me, de igual modo, agradecer a Índico Associação Cívica de Moçambique, em Portugal, pelo convite.  

 

Como nota prévia, devo confessar que o convite que recebi com muito gosto para ‘cogitar’ sobre ‘Associativismo e Cidadania’ no contexto global é desafiante pois o meu ‘raciocínio’ melhor funciona na lógica local, glocal e global. Todavia, o termo desafiante faz parte de um leque de palavras que se tornaram ‘corriqueiras’ no contexto moçambicano. Espero saber fluir nesta globalidade multi e pluricultural.

 

Falar de associativismo e cidadania, ou melhor, o que no nosso ‘dialecto’ seria o jargão “activismo”, faz parte da característica ‘social’ do ‘eu’ que pensa no outro, um ‘eu’ que não se dilui na relação com o outro, mas sim que se fortalece e se humaniza cada vez mais na companhia do outro. Para o contexto ‘local’ português, diria: um ‘eu’ que busca aprender e fortalecer com o ‘eu’ multicultural.

 

A cultura que o activismo, ou se preferirem, que o associativismo e cidadania devem evocar, é a cultura das entrelinhas dos artefactos, a cultura implícita nas capulanas, uma cultura mental imbuída de abertura e aceitação do outro.

 

Cultura não como uma condição acrítica ou condição pré-lógica, cultura não como polarização. Mas cultura como terapia, cultura como superação, cultura como o bem-estar e bem-ser, cultura como status quo na ciência, cultura como ética, cultura como empatia, cultura como alteridade e cultura como glocalidade.

 

Actualmente esta temática ganha mais relevância na condição de movimentos sociais, pois hoje, ao que mais se assiste, infelizmente, é o fenómeno do nossismo, isto é, a lógica nós e outros, ou estás comigo ou estás contra mim. Simplificando, vivemos hoje numa época em que se legitimam, de maneira estrutural, as várias formas de intolerância e violência (simbólica) face ao ‘estranho’, ao ‘viente’, ao ‘diferente’. Pois, para uns, a narrativa actual sobre a cidadania pode ser um campo de aberturas analíticas e, para outros, pode ser um campo fechado, linear e sem esperança.

 

Quando estes dois não comunicam, não procuram uma forma de entendimento, entram para um status quo nocivo que levaria a pontes quebradas, onde, de um lado, tens o eu e do outro lado bem distante tens o outro que pensa de forma diferente e, consequentemente, é visto como o eterno outro a ‘abater’, o que seria o nossimos

 

O triângulo euismo, outrismo e o nossismos faz parte das formas (ins)conscientes da fobia pelo diferente, criando assim várias nuances do nossismo, a saber:

 

  • Nossismo comunicativo como uma forma que ganha espaço na significação da nossa narrativa onde os ciber-intelectuais com recurso a popularidade e populismo criam ‘fábricas mágicas’ de pós-verdades;
  • Nossismo identitário como forma de marcar território, representa uma outra nuance da perigosidade da relação eu e outro. Os temas actuais na nossa narrativa ‘digital’ giram à volta da identidade tribal, regional e, quiçá, por voltas gemas, ou moçambicanos de primeira e os moçambicanos de segunda, ou, europeus e emigrantes/refugiados. Esta forma linear e fechada de ver e mergulhar no ethos do país funciona para legitimar as diferenças (formas excludentes) no lugar da tão sofrida e bem conseguida narrativa: ‘unidade nacional’;
  • Nossismo cultural como o status quo, o nossismo cultural faz parte de um ethos inflexível, que legitima os grupos através da cultura, o que seria cultura para o país bilionário culturalmente?
  • Nossismo político é elevação e legitimação da intolerância no seio dos grupos, dos movimentos e dos partidos políticos, podem ser assumidas como uma forma de violência simbólica, sem mencionar aqui as várias nuances e dimensões da violência associada a este ethos. No lugar de perceber o outro, no lugar de comunicar com outro, o encarramos como sendo um inimigo por abater do espaço político, no lugar de uma co-habitação política, num contexto de liberdades individuais e colectivas.

Nós produzimos inconscientemente estas formas de ‘medo’ perante ao desconhecimento, que não precisa ser necessariamente físico, pois, muitas vezes, ele está na dimensão mental, cultural e ideológica.  

 

Os discursos dos governantes, dos políticos e dos activistas estão cheios de narrativas acerca da cidadania activa, mas, no final do dia, trata-se de uma cidadania formal ou informal? A zona de conforto está na narrativa da cidadania formal, legislada, aquela que fica bem na fotografia, pois tem um ‘rosto’.

 

A cidadania informal irrompe do quotidiano, não conhece ‘as leis e as regras’, não tem ‘rosto’, a cidadania informal é rica pelo anonimato, ela é elástica e flexível. Isso faz dela vítima da sua própria condição.  

 

Cidadania é saber ser, saber estar e saber viver com os outros, ou seja, estar online pelo lugar do eu e pelo lugar do outro.

 

Cidadania pressupõe o eu social, o outro, o grupo, a relação intergrupal que deve ser alimentada pela relação intra-pessoal.

 

  • Cidadania é saber estar em grupo.
  • Cidadania é saber comunicar e saber ouvir.
  • Cidadania e associativismo são formas sociais estruturais de participação activa

O eu e o outro pressupõem uma comunicação ética e empática, enquanto categorias das nossas relações grupais, pois só somos eu e eles porque existe uma relação com o outro, mas, o que acontece quando não temos a ética e empatia em nome da cidadania?  

 

Riscos ou desafios que devem ser evitados em nome da ‘cidadania’, em nome do ‘associativismo’ e em nome do ‘activismo’, a saber:

 

  • O activismo deve evitar diluir-se nas questões éticas;
  • Evitar perder a empatia e alteridade;
  • Não perder a capacidade bonita de saber ouvir e escutar;
  • Evitar diluir-se na política, ou seja, ‘fazer política’ em nome do activismo e dos ‘outros’;
  • Evitar ser eleitoralista;
  • Evitar substituir o outro, pois, sem o outro, seria possível ser activista?

Obrigada a todas e a todos

segunda-feira, 11 março 2019 06:01

Para quê ficar grávida?

Mulher barriguda que vai ter menino

 

qual o destino que ele vai ter?

 

Que será ele quando crescer?

 

Haverá guerra ainda?

 

Tomara que não!

 

                                    (“Secos e molhados”, grupo musical brasileiro)

 

É uma mulher madura, que apesar disso já não acredita na vida. É céptica. Talvez realista. Houve tempos em que no seu horizonte tudo o que acontecia igualava-se à aurora. As próprias palavras que lhe saíam da boca eram o cacimbo em si, que molhava o capim dando-lhe frescura. Renovação. Levava tempo para responder às perguntas, como os sábios. Acima de tudo deixava-se orientar pela fé de que todos nós fomos feitos para viver em paz e em liberdade. Nascemos para a felicidade. Mas hoje ela é a antítese de todas as suas crenças de outrora. Já não tem esperança. Pior, não tem dúvida de que caminhamos em direcção à Hades.

 

Estamos sentados frente a frente na esplanada do Hotel Inhambane, lugar onde tenho frequentado com alguma relutância, e ela não se cansa de tamborilar com os dedos no tampo da mesa para dar ênfase às concisas frases compostas com pausa. Aliás o tamborilar é mesmo para isso: dar pausa às palavras. Deus já disse, meu caro, tudo o que vier do ventre da mulher será amaldiçoado, mas ao que parece, até hoje ainda não percebemos essa parábola. Continuamos a inocular catervas e catervas de filhos para depois serem assados na fornalha que nós próprios activamos.

 

Raci traça um futuro sombrio, e diz mesmo que o que nos espera não pode ser outra coisa senão o bréu. Se eu fosse essas jovens que andam por aí, sonhando com a nascente, recusar-me-ia a engravidar. Engravidar para quê se os filhos já saem doentes dos nossos ventres? Alguma vez já tinhas ouvido dizer que as crinças vêm cancerígenas do útero da mãe? Aonde é que ouviste isso? Não assusta? Não mete medo? Come on, meu!

 

Estamos sentados frente a frente, eu e a Raci. Ela bebe Whisky em doses excessivas, e eu sinto-me confortável com a água que vou consumindo enquanto escuto os discursos de alguém que, quanto mais vai bebendo, mais lúcido vai ficando. Escuta bem, meu caro: Jesus disse assim à Nicodemus, tu e esses para quem estás a falar, não entrareis no Reino dos Céus enquanto não aceitares nascer de novo. Nicodemus não percebeu logo à primeira, procurou Jesus de noite, o Qual voltou a dizer-lhe a mesma coisa.

 

A mulher que está à minha frente bebendo whisky sem parar perguntou-me se tinha entendido o que ela havia me dito. Eu não lhe respondi. Pois é: o problema é que ninguém está preocupado com o badalo que anuncia incansavelmente a descida da Espada, nem as mulheres como eu, que engravidam e desejam fazer filhos mesmo sabendo que são seropositivas. O quê isso!? O pior é que alguém ao mais alto nível da governação encoraja esse pecado de saber que pode sair uma criança infectada para sempre. Uma criança que virá à terra para padecer, por culpa da nossa insanidade.

 

Estamos na esplanada do Hotel Inhambane há mais de duas horas e eu devo ter dito apenas duas ou três palavras. Ela é que fala. Com clareza, como agora depois de entornar mais um duplo: até os homens, muitos deles, acreditam que por terem sido circuncisados, estão protegidos contra o virus do HIV. Eu não se essa percepção constitui a verdade. Mas alguém quer lhes incutir isso. Ou seja, quando vêm nos dizer que os riscos de um homem circuncisado são menores, querem nos dizer o quê?

 

DHABUNO MUTHABWA, que significa ‘vocês agora estão a piorar’; é uma nobre expressão que se tornou popular (particularmente) nos homens no contexto das eleições autárquicas de 2013 e presidenciais de 2014, perante um cenário em que as mulheres apareciam como candidatas a ‘cabeçaa de lista’, na linguagem actual, à presidência ao Concelho Autárquico de Mocuba.

 

Uma vez que no contexto moçambicano as ‘capulanas’ ainda continuam a representar e simbolizar as mulheres, e as ‘calças’ os homens nas dinâmicas dos espaços privados, públicos e políticos, perante este cenário ‘estranho’ de surgimento de candidatas a ‘lógica’ das calças criou uma representação política para descrever este fenómeno que os assustará (reacção ao medo), ou seja, a expressão DHABUNO MUTHABWA, naquele caso, ‘vocês ‘mulheres’ agora estão a piorar’.

 

Sob o lema “Queremos Viver Sem Medo: Por um Moçambique Livre de Violência Sexual”, no âmbito da marcha alusiva ao Dia Internacional da Mulher, 08 de Março, uma data que internacionalmente é vivida e sentida com muita emoção e consciência, na qual mulheres e ‘homens’ “exaltam”, a partir de marchas simbólicas, as suas agendas em prol de um Moçambique cada vez mais justo e inclusivo para TODAS e todos, por um lado, e por outro lado repudiam todas as formas de MANHAZOS ‘vergonhas’ que afectam o bem-ser e o bem-estar das MULHERES.

 

 Porém, o cérebro nem sempre reage como o previsto, ou seja, por vezes quando dizemos ‘sim’, o cérebro subentende ‘não’, e vice-versa. Pode ter sido com base nesta lógica natural de inversão e de entrelinhas que surgiu o ‘medo’ por parte das “calças”, pelo ‘medo’ que surge através do/a  partir do lema proposto pelas “capulanas”, criando assim cogumelos de medo e mal-estar. Mas aqui, este fenómeno de ‘medo do medo’ terá dupla ‘polarização’, ou seja, por representar uma forma de MANHAZO ‘vergonha’ pelo medo das multidões e, sobretudo, porque desta vez o DHABUNO MUTHABWA tem um sentudo inverso, não surge a partir das “calças” para as “capalunas”, mas sim das “capulanas” para as “calças”, isto significa: vocês ‘homens’ agora estão a piorar’. Porquê a polarização dos movimentos sociais e cívicos, das multidões, das marchas, das manifestações?   O porquê do medo do poder das multidões? Têm medo das mulheres? Pode o Estado controlar as multidões? Os políticos gostam das multidões? Temos medo das multidões? Estaremos perante a ‘repressão’ e os ‘silêncios’ como escola, como instrução ou como status quo?   Por que perdemos tempo com os mensageiros e não com a mensagem?Acreditamos na racionalidade individual e na irracionalidade colectiva? Acreditamos na consciência individual e na inconsciência colectiva? Como Moçambique percebe as multidões: políticas, sociais, culturais, económicas ou emancipatórias?

 

Cronologicamente, as narrativas sobre as multidões estão associadas ao mito de loucura (Mackay, 1841), da irracionalidade (Le Bon, 1895), dos acríticos, da negatividade, das acções impulsivas, da libertação do inconsciente , da percepção de que os indivíduos nos grupos são  hipnotizados pelos líderes. Nos grupos, o racional seria o líder, e os demais meros seguidores. Consequentente, são vistos como sendo os inimigos do poder e da política e, quiçá, da economia, ou seja, teorias que visavam combater e negativar o eu social (grupal) como algo positivo, defendendo o indivíduo racional na condição de individualidade, e o indivíduo irracional na condição societal, ou seja, o processo de desendividualização.  

 

Estas teorias dos finais do século XIX sobre as multidões foram e ainda são impactantes nos mudus operandi dos séculos XX e XXI. Influenciam os políticos, os governos, e legitimam certas formas de ‘silenciamento’ com recurso às forças estatais. Pois, para os seguidores desta teoria as pessoas são manipuladas nas e pelas multidões, a saber: Quando estão nas multidões, os indivíduos tornam-se menos civilizados, comportam se com base nos instintos;  A pertença a uma multidão dá a sensação de anonimato, ou seja, no grupo perde-se a noção do medo e das  consequências dos actos; As pessoas se preocupam menos com as consequências morais;  Têm a sensação de serem  invencíveis; Nasmultidões, todos actos são contagiosos de forma irracional e instintiva; O contágio é dogmático; Nas multidões, as pessoas se sacrificam pelos interesses da maioria; A demagogia faz parte das multidões, ou seja, existe uma fígura demagoga inquestionável com poder de hipnotizar os demais; As ideias superficiais são usadas como “cavalos de batalha” nas revoluções;  Quando se está no grupo coloca se de lado a identidade e age-se como membro do grupo (desindivilualização);  Nos grupos os ‘homens não agem de forma racional e não usam suas ideias’, os líderes são tidos como os grandes “cérebros”; As multidões são vistas como uma religião.

 

É importante perceber a lógica do mito das multidões como madness, pois é assim que ainda funcioam certas lógicas políticas e governamentais na sua relação com as multidões, ou seja, ‘vigiar e punir’. Porém, existem teorias contemporâneas que podem estar a fazer falta a lógica política na sua governamentabilidade.

 

Os indivíduos nas multidões deixam de ser passivos e irracionais, e passam a racionais e conscientes. O comportamento das multidões é resultado dos comportamentos intra e inter-grupal, com as seguintes nuances:As identidades individuais são reforçadas nos grupos; As minorias activas podem com o tempo se transformar em maiorias impactantes; O poder reside no contacto entre as identidades grupais nas multidões; O anonimato desaparece, surge uma identidade assumida e reconhecida; Multidão como bem, como racional e sobretudo como um acto consciente de CIDADANIA; O mito da loucura dá lugar a narrativa de participacao activa societal; Quando persiste a lógica do mito da loucura como sinónimo de multidão, o problema não reside na multidão, mas sim na pessoa e no sistema que não percebe o significado das identidades intra e inter-grupais. Para tanto deve se procurar melhor entendimento, evitanto assim o mal-estar desnecessário e as narrativas da pós-verdade.

 

Se não for tratado, o medo pelas multidões pode gerar violências e mal-estar. Pois o povo, as massas, os grupos, não devem ser vistos ou pensados como o ‘outro’. É importante evitar ao máximo ser intolerante e os nossismos contra estes grupos. No lugar de nossismo deve surgir uma razoabilidade racional pautada na tolerância e na cultura de diálogo. Como?  Racionalidade cultural na capacidade de saber ouvir a lingaguem das multidões; No lugar de olhar as multidões como inimigas, procurar evitar bias e preconceitos, e pautar pela diálogo; Procurar encontrar a bondade e o belo no outro, no lugar da desconfiança;  Procurar perceber que as sociedades são dinâmicas e não perder a caravana do entendimento actual; As demandas actuais evocam respostas actuais; Evitar provocar as multidões das mulheres, pois de forma quantitativa, elas são qualitativamente a diferença, ou seja, elas podem fazer toda a diferença ‘racional’;” No lugar de concebê-las como “inimigas”, a estratégia seria colocá-las como parceiras na marcha da desenvoltura de Moçambique.”

 

DHABUNO MUTHABWA, ou seja, vocês ‘homens’ agora estão a piorar’.

 

Para toda MULHER moçambicana, em especial a mulher zambeziana, votos de uma marcha consciente em prol de uma sociedade tacitamente justa.  

sexta-feira, 08 março 2019 06:43

Os mal-criados que nós parimos

 

 

-- CREDELEC não devia ser mais cara que rancho de pobre ---

 

["Afinal, meu senhor, quanto é para você não me cortar a energia e não me multar, uma vez que flagrou-me roubando energia? Estou a pedir, senhor! Vou dar refresco mesmo"]

 

A relação Povo-Estado, na qual a esse "Estado" é emprestado o Poder pelo mesmo povo, compara-se à situação Filho-Pais. A distinção, disciplina e carácter (ou não) de uma criança denuncia a qualidade de educação que o Pai tem ou deixa a criança reter. Por isso, clichês similares a "esta criança não presta", ou "criança, tu és mal-criada", são severamente combatidos em contextos de sociedades mais conscientes sobre a dicotomia Pai-Educação vs Filho-Educação. Nenhuma criança no mundo nasce indisciplinada, burra, agressiva, conflituosa, etc. Ela será tudo aquilo que os meios onde estiver inserida a moldarem, e nisso os Pais é que são os principais e, às vezes, únicos responsáveis. Claro que há algumas predisposições genéticas. Se, por exemplo, numa mesma família há criança mais clara, menos alta, muito cabeluda, etc., é então natural que algumas predisposições psico-genéticas ocorram também, como é o caso de se ser mais falador, menos enérgico, mais simpático, muito disponível, etc., mas nada disso castra a influência, quiçá positiva, de uma boa educação dos seus Pais. 

 

É consensual que o maior simbolismo de educação que os Pais devem aos seus dependentes fosse o Exemplo. Descascando, não adianta berrar p'ra criança procurando oprimir as tendências, actos de violência ou antissociais para com outras crianças, se a relação entre os Pais dentro de casa e em toda a sua interacção é de constante conflito, discussões, violência doméstica, etc. - Filho de Peixe, Peixinho É -... Portanto, Pais responsáveis primem pelo exemplo: Poucas palavras, muitos actos. É como, religiosamente, se enuncia: P'ra Deus, não adianta estar-se lá todos os dias no Culto se as obras são iguais às dos "mundanos"... Voltando aos Pais, não adianta tentar convencer aos filhos dizendo que não podem comprar uma pasta ou caderno, melhorar a ementa nutricional em casa para ele estudar e viver melhor, alegando exiguidade financeira, se sempre a Mãe está com extensões novas, unhas de gel reabilitadas, sapatos novos e "muitos programas com grandes amigas". Um filho aceita estar roto na rua, na escola, com amigos, se o seu Pai estiver igualmente roto. É isto que dá consistência à educação. É de EXEMPLOS como esses que famílias extremamente pobres conseguem criar GRANDES HOMENS E MULHERES, pois os filhos, com todos os desafios a eles adstritos, submetem-se à educação, liderança e autoridade dos seus Pais "engordados" pelo exemplo desses pais... 

 

Este "EXEMPLO" de que falo é um dos actos concretos mais notáveis de uma "transparência" na gestão familiar. Filhos que crescem dando-se bem, no fim enchem a boca e falam bem dos seus Pais, pois durante todo o seu crescimento "sentiram" uma autoridade executada desse jeito, com Transparência, Humildade e Supra-Dedicação de seus Pais para com eles. 

 

Com uma sociedade não acontece diferente. Um povo facilmente se submete aos projectos do executivo que o lidera, se o exemplo for a nota sonante. A relação Povo-Estado devia, numa sociedade normal, basear-se na confiança, comprometimento, respeito, que o "Estado", na pessoa de quem foi confiando essa honra de governar, sempre pré-existir a TRANSPARÊNCIA, produzida pelo EXEMPLO, pela dedicação à causa e respeito por aqueles que esperaram do governante os "comandos" justos para a sua vida.

 

Quem hoje pode "confiar" que esta subida do preço da energia eléctrica é justa, e que todos devem contribuir sacrificando tudo, pois os ganhos serão para a totalidade dos moçambicanos, se nunca houve TRANSPARÊNCIA na articulação de preços de energia eléctrica; se não há coerência em actos de governação (com enfoque na preservação da integridade do povo)? Já me explico sobre coerência, e a seguir volto à questão da transparência. É indescritível que o mesmo sujeito que se senta todos os anos nas reuniões da Consertação Social, assumindo-se como guardião dos Povo, ou então o visionário do equilíbrio entre as facções, esteja "hoje" sistematicamente a escamotear o poder de compra do seu cidadão, do Povo que o confiou. É incoerência, sendo representante do Estado, dizer ao agente económico privado: "não suba os preços", mas "cresça os salários mínimos", e por trás subir os preços dos produtos ou itens estratégicos para a economia das pessoas, como é o caso da energia eléctrica. 

 

A energia eléctrica é um bem necessário e transversal. Subir a energia promoverá a subida de outros preços, pois a sua produção está relacionada com a electricidade. E energia eléctrica, dentro da família, representa um elemento central de subsistência: crianças precisam de energia eléctrica para fazer TPC, para engomar a roupa. Os pais precisam para ligar o congelador e conservar a lâmina de carapau que é a única "comida de prestígio" que podem garantir aos seus filhos. Portanto, a energia eléctrica não é um produto de luxo, passível de ser preterido na economia familiar. Então, não se compreende que o mesmo Estado (na pessoa do Governo) que sabe que o salário mínimo é de 6.250,00Mt esteja a aprovar subidas de preços da energia eléctrica ao ponto de significar mais de 70% do orçamento familiar. Quais são as opções que se deixam para essas pessoas? Resposta: "talvez roubar a energia que já é delas, porque Cahora Bassa é delas, e ir gerindo (com jogatanas de subornos) as inspecções dos agentes da EDM ou sucumbir, e tornar-se pessoas mais pobres do que já eram"...

 

A questão da TRANSPARÊNCIA na articulação de preços da energia elétrica devia traduzir-se pela apresentação do projecto que "existe", mostrando como "pagar mais pela energia vai beneficiar mais e melhor", facto que nunca ocorreu. A inexistência de um propósito claro nestas subidas só se agudiza pelo facto de as mesmas terem sido feitas num período muito curto, e nos momentos em que devia ter ido exactamente no sentido contrário. É que de 2015 à 2019 houve um agravamento de cerca de 80% no preço da energia eléctrica (em 2015 uma família poderia gastar 400Mt ao mês pela sua energia e hoje, com os mesmos 400 só fica cerca de 7 dias), deixando claro que a EDM não tem estratégia consolidada, de facto, que integre por exemplo: investimento no alargamento da base dos clientes, segmentação e diversificação de serviços, a não ser pura e simplesmente equilibrar seus balanços aravés do aumento das receitas obtidas com o pagamento feito estritamente por aqueles clientes que eles já têm.

 

Este é o meio caminho para a destruição de uma sociedade, com enfraquecimento da sua sustentabilidade familiar. Energia eléctrica, num mês, não devia ser mais cara que fazer rancho de pobre. As consequências serão devastadoras. A rebelião não será por violência, mas por sabotagem. Moçambicanos tornar-se-ão mal criados por isto. Ninguém os segurará, pois o espelho deles, que é o Estado, não demonstra "preocupação, carinho, dedicação, exemplo e transparência" nas suas acções. Por outro lado, existem os passivos. Com estes, será por cedência (há quem não luta mais), e assim a falência ou morte de várias famílias moçambicanas.

 

Um Estado responsável, jamais faria isso a quem o confiou... Jamais...

domingo, 03 março 2019 19:18

Julião Mathumbu

 Mathumbu vem do bitonga. Traduzido para a língua portuguesa ficaria redes de arrasto usadas  pelos pescadores. Julião ganhou o sobrenome por ser reconhecido como indivíduo de força extraordinária. Bruta.  Capaz de realizar sozinho um trabalho reservado à dez pescadores. Homem de poucas palavras, Julião Mathumbu entornava goela abaixo um garrafão de cinco litros de sura à gargalo, sem parar um único segundo para respirar.  

 

Regozijava-se pelas mãos que tinha, rijas como pedra. Dizia para todos, se eu te der uma bofetada, a Polícia vai pensar que foste agredido por um ferro. Mas hoje ele já não fala disso, são os outros que repetem com as palavras as façanhas de outrora, quando Mathumbu era um orango-tango. Com  músculos bem distribuídos, num corpo sempre pronto a exercer as tarefas dos sáurios.

 

Julião Mathumbu já não bebe. Já não tem aquela energia. Não mostra as mãos agora sem calos. Limpas. Leves como de uma criança. As pernas já não suportam aquele corpo enorme. Vacila quando se move, como um leão exausto. Velho. A voz roufenha fala para dentro. Não sai. Perdeu a vontade de viver. Os seus amigos dos tempos trazem-lhe o peixe que ele não come. Estou cansado disso, diz o homem  sentado na sua eterna cadeira de cordas de sisal. Sem qualquer expressão no rosto. Frio.

 

A mulher morreu há cinco anos e a vida para este personagem perdeu o sal. A casa modesta que construiu com o suor da pesca é o único elemento da sua vida que se mantém de pé. É o seu orgulho. Nunca teve filhos. Quem dava sentido à sua existência era a mulher e os amigos. A mulher já não está e os amigos não bastam. Bebe um pouco, Mathumbu! Para quê?

 

Um jovem artesão esculpiu um enorme peixe em madeira de mafurreira e levou a escultura para casa de Julião Mathumbu. Queria ter o privilégio e a honra de deixar algo importante para o ídolo de muitos na zona. Uma prenda que vai trazer alegria ao homem. É para quê, isso? É uma recordação dos seus tempos, mais velho! Quem te disse que eu quero me recordar dos meus tempos? Tira isso daqui, faxavor. Se gostas de mim não me traz essas coisas e nem me fales dos tempos que  vivi com muita alegria.

 

Julião Mathumbu está obsoleto. No corpo e na alma. Os amigos visitam-lhe cada vez mais pouco. Sofrem quando vêm um homem a descer devagar para o precipício. Em silêncio. Sem olhar para trás e lembrar as glórias. Vividas com intensidade no mar e na terra. É uma pessoa afável. Sempre foi. O seu corpo de brutamontes jamais teve algo a ver com o coração. Grande. Onde cabem todos os que agora lhe engrandecem. Mesmo não estando com ele nas paródias que ainda acontecem depois das fainas intermináveis.

 

As gargalhadas de Julião Mathumbu, ora vibrantes, desvaneceram. Passa maior parte do tempo com a cabeça pendida para o peito. Parece um condenado à espera da guilhotina e sua descida vertiginosa para lhe decepar a cabeça. Na verdade ele pode estar à espera do golpe final. Porque pelo que parece, a morte de Julião Mathumbu está cansada de esperar.