Epa, meu irmão…
Bem gostaria, de lá onde Mr. Bow se encontra a comemorar sua vitória, trazer as palavras mais santificadas possíveis; ungidas de fé e baptizadas de uma completa dose messiânica de solidariedade. Gostaria, mas pelo rufar dos tambores alheios na tua noite de fogueira faltam-me quaisquer resquícios de palavras. Toma apenas esta: relaxa.
Suponho não estar a dizer nada, mas parte lá do fundo – mais que qualquer poço, nem o vácuo de todo o mundo cabe. Imagina só dali da Major General Cândido Mondlane? Sai-me das profundezas do eu este “segura-te” ou “aguenta-te”, se quisermos cambiar o seu sinônimo.
Não tenho muito a segredar-te, meu mano. Também, se inventasse palavras a tua dor, mais do que das famílias enlutadas, seria abismal, sem mais nós por amarrar. Talvez, aqueles jornalistas não ganhassem uma Conferência de Imprensa, mas chutos e pontapés. Por isso, não vou me atrever a sacudir o silêncio da tua dor: relaxa.
Mano, eles no fundo não sabem que a principal família de luto é a tua. Tu estás “irritavelmente” morto como aquelas pessoas que se foram. Estás na mesma dose de sumiço. Eles, coitados, isso não calculam pois te vêem “gymado”. Pensam, lamentavelmente, que estás a sair do ginásio. Que estás junto daquelas pessoas ao encontro do Altíssimo não notam. Que forças tens tu para viver, mano? Que garras tens tu para realizar outro espectáculo? Ainda haviam mais crianças sedentas daquele “sonho molhado” e principalmente daquele grito agudo e mais (in)esperado do planeta (achas que não?): o “yeeeh nigaaaa, beng entretenimenti folaifi”. Mesmo assim, anulaste o segundo dia: colocaste um basta naquela brincadeira mais querida pelas crianças, que, podes crer, na noite de sábado, os mal intencionados destruíram.
Destruíram a brincadeira mas antes destruíram a ti e a tua família. Vi-te eu, com os meus próprios olhos. Mas já não eras tu. Estavas tão acabado, à semelhança dos perecidos. Os teus músculos continuam entre a tua pele e ossos, mas já nem músculos são. É que a grande família é a tua que se despediu naquele frenesim que se repete, sempre, a 1 de Junho de cada ano, desde que descobriste o jackpot. A tua família são todas aquelas crianças que inundaram aquele pedaço da Costa do Sol. Embora só sobrasse costa, o sol foi a primeira criatura a morrer.
Naquela valeta, empurrados, ainda excitados pelo “sonho molhado” tu também entravas, às cambalhotas. As fontes mentem: não entraram ali nove pessoas. São 10 contando contigo. Isso eles não sabem, nem a SERNIC chegará as verdadeiras conclusões. Por isso, irmão: relaxa.
Hoje, eles nem tem um pingo de solidariedade para contigo. Acusam-te até das desgraças nas suas vidas, como se fosses o mentor da má educação e da falta de cultura; do desrespeito institucionalizado pelos direitos das crianças e da falta de afecto que muitos pais exibem nas redes sociais.
Relaxa, mano Bang.
Olhe-os apenas e junta-te a mim nas pequenas questões: és tu culpado se as crianças só escutam houses e pandzas pornográficas no lugar de músicas puramente infantis? És tu o culpado se os pais não sabem em que parque colocarem seus filhos a 1 de Junho e o teu evento é única companhia de diversão? Não, mano Bang. Vem cá, tenho mais que questionar. Fica aqui: és tu mesmo que soltaste as crianças, desgovernadas, de Patrice Lumumba, Matendene, Khobe, a pé, até Aqua Park? És mesmo tu que algemaste os pais e a força escorraçaste-os até aquele recinto mortífero? Nananinanão! Eles quiseram, por isso, como te digo: relaxa.
Nunca te vi assim sabe, irmão. Nem pareces tu aquele que aparece dançando com todo o vigor, ultimamente, em vídeos clipes. Não pareces… Ou eles nunca gostaram da Bang Entretenimento (não a empresa, mas aquela febre de há 10 anos), dos espectáculos Time de Sonhos com angolanos escolhidos minuciosamente, do recente Projecto Âncora e, já agora, da Lizha Só Festas. Talvez, não. Este é um pretexto, se calhar, para te cortarem as pernas, que há muito conhecem o caminho do sucesso. O tecido empresarial anda bem gasto (como se de roupa chinesa se tratasse), por isso ninguém se dá por satisfeito quando o outro encontra nas crianças sua solução financeira. Logo, isso é mais “djelass” que outra coisa, por isso, confia em mim – respira e inspira: relaxa!
Não minimizo as mortes. Mas olho para a outra “morte”, a sexta. Esta é a tua. Se calhar a pior: o mais terrível é morrer respirando, andando, falando… um morto-vivo é de uma tortura sem dimensão.
Relaxa, mano Bang.
Não precisa andar em recados contra os teus amigos, acusando-os de perseguição. Sinceramente não precisas… fala com a tua advogada, por sinal também cantora. Ela sabe como organizar as “unhas”, aliás, as coisas. Não te metas nisto. Sei sim que estás a ser cutucado. E esta foi uma vara bem cumprida: cinco pessoas? Mas ela (a advogada) tem os truques de como resolver isto.
E digo-te mais: os seguranças traíram-te, irmão. Aqueles sujeitos só se empenham na hora da entrada, onde há boladas de bilhetes. Soube que o número extrapolou. Sabes, aqueles é que são os culpados. Como tu irias controlar isso: contar um a um? Na hora da saída não há bolada. Ninguém paga para sair, muito pelo contrário. Por isso os seguranças devem ter deixado as pessoas pisarem-se como bem quisessem. Estavam já a degustar do dinheiro que te roubaram ao aumentar gente fora das tuas contas. Isso eu não vi, é mesmo uma grave especulação. Mas tu sabes que houve um momento da minha vida que eu só andava em espectáculos e conheço bem esses corredores.
Nesse instante, julgo eu, estavas no camarim a celebrar com uma moet chandon de primeira linha, junto com os teus putos. Para ti o show já tinha terminado. Estavas a relaxar. Como saberias que já era hora do sangue actuar?
Cá para os meus botões não tens culpa nenhuma, mas se fores responsabilizado, o mais provável, arque com as consequências. Mas depois, por favor não me desaponte, pegue na mão da mana Lizha e suma do mapa. Leva junto a tua filha, o trauma deve ter sido pior para ela: saber que os seus irmãos morreram na festa dela não é de se esquecer com um sorvete. Vá onde quiseres, sobrará com certeza dinheiro para isso. Mas atenção, tem de ser bem longe. Fica lá o tempo que precisares, até renasceres. Infelizmente os outros não irão voltar contigo, mas pelo menos terão servido de lição para que a criança não seja um mero instrumento de satisfação financeira.
Quando voltares… ah, voltas em dívida: os que compraram o bilhete do segundo dia, permita-lhes ouvirem um contador de estórias, um xithokozelo, uma música de Fernando Luís ou dos Panda e os Caricas (já que a febre de importação é tanta). Qualquer coisa, mano, só diminua aquelas manas com ceroulas e minissaias.
Mas, por favor, trata disso depois. Por enquanto relaxa. Nem este texto não te escuses a comentar, até porque é parte das tentativas de te derrubar.
Relaxa, mano Bang.
A Itália aderiu à zona do euro em 1999, com o primeiro-ministro Massimo d'Alema do partido "Esquerda Democrática". Essa participação fatídica, que implicou a completa perda da política monetária independente, é sem dúvida a principal causa do decepcionante desempenho da economia italiana.
O PIB do país atualmente está em EUR 1,75 trilhão de euros e suas taxas de crescimento são extremamente anêmicas, atingindo apenas 0,9%. O Produto Interno Bruto (PIB) real per capita, segundo cálculos confiáveis, aumentou no período 1969-1998, em que o país teve sua moeda nacional, a lira, em 104%, enquanto no período 1999-2016, onde o país já havia adotado o euro, caiu 0,75%. Por outro lado, no período 1999-2016, o PIB real per capita da Alemanha cresceu 26,1%, tornando os cidadãos daquele país os mais beneficiados entre as principais economias da zona do euro.
A Itália, ao mesmo tempo, tem a terceira maior dívida estatal do mundo, depois dos EUA e do Japão, e, portanto, seu resgate é impossível, já que excede as capacidades dos estados europeus. A dívida do país, como porcentagem do PIB, atualmente é de 132% e em números absolutos de 2,336 trilhões de euros, enquanto em 1999 era de 109,7%. Então, pode-se notar facilmente um aumento significativo.
Ao mesmo tempo, desde 1999, o íngreme declive da Itália em termos de desenvolvimento havia começado. A Fiat deixou de dominar o mercado automobilístico europeu e o país perdeu sua posição de liderança como produtor de eletrodomésticos brancos. Muitas fábricas foram fechadas e várias grandes empresas foram transferidas para outros países. Milhões, além disso, as pequenas e médias empresas, que foi baseado na desvalorização periódica da moeda, para compensar as insuficiências do sistema econômico italiano, não podiam mais competir fora da fronteira italiana. Quais são essas inadequações? Problemas do mercado de trabalho, baixo investimento público e privado em desenvolvimento e pesquisa, alta burocracia governamental, sistema judiciário disfuncional, caro e lento, altos níveis de corrupção e evasão fiscal etc.
O desemprego é de cerca de 11% da força de trabalho, o quarto mais alto da União Europeia depois da Grécia, Espanha e Chipre. Ao mesmo tempo, o desemprego entre os jovens entre os 15 e os 24 anos, que, segundo as últimas estatísticas do Instituto Estatístico de Istat, representa uma percentagem muito elevada de 30,8%, reflecte de forma clara a profunda crise económica e social. que varre como um furacão o país mediterrâneo do sul europeu.
A pobreza atingiu o seu nível mais elevado desde 2005. O último relatório do Istat registou 5 milhões de pessoas em pobreza absoluta em 2017. Numa base percentual, 6,9% dos agregados familiares italianos vivem na pobreza absoluta, ou seja numa situação em que não é possível cobrir a despesa mínima mensal para a aquisição de uma cesta de bens e serviços que, no contexto italiano e para uma família com certas características, é considerada necessária para um padrão de vida mínimo aceitável.
Ao mesmo tempo, a Itália tem a maioria das agências bancárias por habitante em toda a Europa, que também são caracterizadas por um modelo de negócio errado, sobrevivendo apenas com juros e empréstimos corporativos. Assim, dado que as taxas de juros na zona do euro são zero, os bancos operam com perdas, tendo acumulado inseguranças (empréstimos vermelhos) que atualmente chegam a cerca de 260 bilhões de euros (15% do PIB italiano), dos quais muito se perde.
A economia italiana, a terceira maior na união monetária mal concebida, parece-me esquematicamente, com um cavalo cansado, carregado de dívidas e empréstimos vermelhos, que respira com dificuldade na subida, cheia de pedras e poças, da zona euro, que é um incrível sistema rígido, um espaço entupido de ferros para 19 países diferentes em produtividade, inflação, balança comercial e progresso tecnológico.
Portanto, deve ser entendido que a zona do euro é nada mais do que um campo de interesses conflitantes entre os países membros que a compõem. Assim, o que é de grande interesse para a Itália não é interesse em qualquer caso para a Alemanha. No entanto, a reconciliação de interesses ao longo dos anos da moeda comum revelou-se impossível. Isto é porque a Alemanha como a primeira potência econômica conseguiu dominar e governar, usando o euro para seu benefício, enquanto ao mesmo tempo os outros países, em vez de resistir e até colidir, se curvando e obedecendo.
No entanto, o custo de adiar a saída da Itália da zona do euro - que até agora evitou pelo menos um aparente temor do sistema político italiano por quaisquer efeitos negativos da saída - acabará por ser muito maior do que o custo da ruptura o início da crise econômica.
Α primeira decisão do governo de coalizão do Movimento 5 estrelas M5S e Lega, formado em maio de 2018, de apresentar um orçamento para 2019 com um déficit de 2,4% do PIB foi claramente na direção certa, porque é mais importante o reforço a economia italiana pelo fortalecimento da demanda interna, bem como a prosperidade do povo italiano, e não as rígidas regulamentações fiscais de Bruxelas impostas pela Alemanha e que não permitem isso.
A Itália deve finalmente deixar de recuar para os comandos de Berlim e temer a ruptura com a zona do euro alemã, porque é capaz de retornar à lira e assim recuperar sua soberania política, econômica e institucional. Apesar dos problemas atuais, ainda tem a segunda maior indústria da área do euro, depois da Alemanha e a quinta maior do mundo, com participação de 19% no PIB do país. A Itália produz desde aviões, carros, armas, sistemas eletrônicos até perfumes, sapatos e roupas. A Itália também precisa de energia, que é petróleo barato e gás barato, o que não tem. Mas poderia garantir petróleo de sua antiga colônia, a Líbia, e gás da Gazprom. Assim, com baixos custos de produção e uma moeda nacional flexível, ela se tornaria extremamente competitiva.
Em suma, a Itália, navegando como um barco abalado no turbulento mar da zona do euro, onde sopram fortes ventos, afundará matematicamente se sua liderança política não tomar, enquanto ainda for o tempo, a decisão inovadora e dinâmica de retornar a sua moeda nacional.
Por: Nando Menete/Assis Macaé
Num texto recente (Por onde andas, Kalungano?) partilhei excertos de momentos interessantes de uma reunião com o poeta e político Marcelino dos Santos. Hoje, vou partilhar fragmentos de um dia - e outras circunstâncias – na companhia de José Craveirinha (ou Mário Vieira, José Cravo, JC, Abílio Cossa, Jesuíno Cravo e José G.Vetrinha), o nosso poeta-mor, falecido a 6 de Fevereiro de 2003. Um pequeno gesto para celebrar a data (28 de Maio de 2019) do seu nonagésimo sétimo aniversário natalício.
Para iniciar, uns parênteses: Sempre soube quem era Marcelino dos Santos, a pessoa e a figura pública. O mesmo não era com José Craveirinha: Via-o (pessoa) na cidade e não me passava pela cabeça ou não tinha a certeza de que era o nosso poeta-mor (figura pública).
Nos anos 80, ainda infanto-juvenil, tive os primeiros “contactos” com José Craveirinha em sessões espontâneas e caseiras de êxtase cultural. Nessas memoráveis sessões – composta por uma mescla de gerações de familiares e amigos - cada um mostrava o seu arcaboiço cultural e até científico. A declamação de poemas emblemáticos de José Craveirinha e de outros poetas, antigos e actuais da altura, era o auge das sessões e que nos deixava aos prantos, quiçá pelos dias cinzentos da época. À luz do tempo, e então em vésperas da democracia dos nossos dias, essas sessões foram, para os participantes, os primeiros acordes do associativismo e exercício livre de cidadania. E Craveirinha fez parte dessa aurora, um processo que – até hoje - se vai consolidando, entre sucessos e retrocessos.
Era frequente avista-lo – sempre de boina preta- no bairro da Mafalala quando a malta da “Zona dos Bombeiros” – a que eu pertencia – se deslocava ao famoso bairro para afazeres recreativos (jogar e assistir futebol) e turísticos (assistir sessões de canto, música e dança). A boina preta – sua marca - fez parte da indumentária identitária da “zona dos bombeiros”. Suspeito que tenha sido uma imitação do “style” de Craveirinha.
Outras vezes, no trajecto de ida e volta à Mafalala, cruzávamos com Craveirinha, no portão ou nas redondezas de sua casa, na zona da Munhuana. Desses momentos, retenho o seu ar urbano e contemplativo tal “caçador de clicks” para os seus poemas. Tenho dito, em brincadeira, que eu vi poemas de Craveirinha a serem feitos. Se não, pelo menos presenciei a safra dos ingredientes.
Um outro local de avistamento era no Grupo Desportivo de Maputo, seu clube de coração. Neste clube, e como todos sabem, calculo, Craveirinha, em tempos idos, foi um atleta ecléctico e até à morte adepto ferrenho. Ele era uma presença assídua nas instalações do Desportivo quer a acompanhar treinos e competições, quer em singelas cavaqueiras. Certo dia – o que inspira o título deste texto - realizou-se um torneio interno da escola de minibásquete do Desportivo. A minha equipa (Bola ao Cesto) foi uma das finalistas. Os jogos decorriam de manhã e a tarde e José Craveirinha presenciou-os desde a fase de grupos até a final.
Quando terminou o Jogo da final, Craveirinha veio ter comigo. Puxou-me para um canto e lá fez as habituais perguntas de adultos. Após o aturado inquérito passou para a sessão de conselhos, na verdade onde ele queria chegar. Entre outras coisas, recordo que me aconselhou a não só “chutar” - eu só apostava em lançamentos à distância e certeiros (risos) - mas que devia procurar e soltar mais a bola, aproximar e “brigar feio” no garrafão. Estava a ouvir Craveirinha pela milésima primeira vez. As outras mil foram nas sessões culturais dos nossos primeiros “contactos”.
“Faça isso, rapaz!”. Assim despediu-me Craveirinha. Depois de um “Tá bom, tio!” fui a casa e num ápice - já noite - voltei para assistir ao jogo dos seniores. Era o habitual duelo dos eternos rivais e vizinhos: Desportivo vs Maxaquene. À entrada do pavilhão do Desportivo, pelo portão lateral direito e no compasso para ver alguém conhecido ou localizar um bom lugar disponível, deparo-me com uma mão levantada. Era o meu “conselheiro” a sinalizar que tinha um para mim. José Craveirinha estava sentado na dobra da bancada e mais acima. Aproximei e ele afastou-se, abrindo uma brecha entre ele e um seu amigo. Sentei-me, bem apertadinho, entre os dois e pouco depois a partida iniciou.
O jogo não corria bem para o Desportivo e uma vaga de apupos era direccionada ao treinador, António Azevedo. A dada altura, o amigo de José Craveirinha levanta-se e toca a chamar nomes ao treinador, terminando com um sonoro “seu careca!”. Em seguida, o ilustre amigo de Craveirinha - enquanto procurava encaixar devidamente a bunda na bancada, tal era a enchente no pavilhão - veio-lhe à consciência, perdida por alguns instantes, que José Craveirinha (sempre sereno e tranquilo) também era careca.
Ultrapassado o tempo suficiente de espera, já composto e comportado, o amigo de Craveirinha desculpou-se e desprendeu um melódico: “Oh! Zé Craveirinha, tu és diferente. És um careca intelectual!”. No momento caiu-me a ficha. Afinal o meu “conselheiro” era nada mais nada menos que José João Craveirinha, o poeta-mor e nacionalista moçambicano.
Anos depois, numa entrevista, a propósito da sua “galardoação” com o Prémio Camões (1991), o mais prestigiante da literatura em língua portuguesa, Craveirinha lamentou que o valor monetário do prémio encontrou-lhe a “dobrar a esquina”, aludindo, creio, à idade que lhe fugia.
Infelizmente, nunca mais estive “cara-a-cara” com o poeta-mor e meu “conselheiro”, José Craveirinha. Acho que pesou o facto de eu ter passado para o outro lado da fronteira (Maxaquene) poucos dias depois do jogo a que assistimos, sentados, na dobra da bancada - à direita - do Pavilhão do Desportivo. Saravá, Mário Vieira!
Ele olhou para mim, aflito, como se me conhecesse. Eu estava atrasado nesse dia (minto, quase todos), por isso não lhe dei ouvidos quando num tom agudo vibrou:
- Psiu!, coloca-me ali.
Enquanto andava, apressadamente, descompassado, uma perna duas vezes a frente da outra, como que a pular galhos, voltei-me para trás a fim de testemunhar o tal lugar que o coitado ansiava se ver colocado. Vi, não fui contado: era uma verdadeira guerra matinal. Segundo contou o fulano há muito aquele cruzamento é palco de combate entre as tropas ferrenhas do General Alexandre dos Santos e egoístas do Major General Carlos Mondlane. Quase que nunca alcançam consensos. Já houve, inclusive – segundo conta – bombardeamentos e algo pior, sobretudo àquela hora: entre às seis e quase perto das sete horas.
Olhei para o sujeito, com um ar sarcástico, mas o meu pescoço declinou quando notei que jamais o alcançaria as fuças e, claro, temendo represálias disse apenas aos meus botões algo que ele exigiu ouvir sem reservas. Aí que chutei:
- Como dois generais terão mesmo que se entender? Como se faz isso, ora? – Já nem parecia estar carregado de pressa, deixei a trouxa da urgência cair ali mesmo, sem medir a gravidade, e olhei para onde a minha vista chegava no sujeito e descarreguei: - onde viste tu, em que parte do Globo, Generais baixarem a guarda. Viste como foi titânica a luta entre Guebuza e Dhlakama – zombei – aquilo é de gurus, gajos com patência, esses não dão tréguas.
Inclinado, quase a torcer a coluna para fixar seus olhos de três cores no meu metro e setenta, ouvia espevitado: - ah!... – retorquiu. Ganhei pujança: - com Chissano, um diplomata, não foi assim. Até o mecânico provou ser bom de lábia e tolerância. Já o tenente-general conhece as palavras da guerra: espingardas e granadas.
- Verdade… - consentiu, com um ar maculado.
Voltei a olhar para aquele rebuliço entre as tropas dos dois generais. Nós os civis, para atravessarmos aquele cruzamento precisamos, antes, orar. Alguns clamam a Deus, outros aos seus ancestrais para poder se verem noutra margem. Aquilo é um verdadeiro atentado à saúde do peão, que incansavelmente contribui para as contas do Estado com o seu sacrificado imposto. Mas, na hora de ir quer ao serviço ou à escola – pelo menos naquela parcela de Maputo não sabe dizer se vai chegar são noutra margem da estrada.
As balas passam mais depressa que o próprio vento. Atravessam o ar até assustar as folhas e os pássaros. Não há qualquer tranquilidade. Há, até, umas lombas por ali, uma espécie de barreira para as balas, mas de nada servem. Tanto as tropas de Carlos Mondlane (também conhecidas como Dona Alice) ou de Alexandre dos Santos (para quem vai às Mahotas) ficam entontecidas e muitos desconhecem as regras de trânsito naquele lugar. E que regras valem para gente que só pensa no seu próprio umbigo!?...
O mais grave nota-se quando os alunos querem se fazer a escola. Esperam horas a fio para poder ter a outra margem nos sapatos. E nos dias de testes ou exames? Os meninos ignoram os projéteis a eles apontados como se de criminosos se tratassem e tomam o trajecto que lhes é merecido ao encontro do futuro. Aí, uma manada de berros – à buzinadelas – fustiga a paz da manhã.
Vezes há que o trânsito é cortado, pois houve tombos, raspagens e outras infelicidades. E nem um polícia, aquele que acho que o meu bom amigo me confunde, está para apaziguar os ânimos.
Pensei tudo isso olhando para aquela lufa-lufa. E pensei mais: o maldito Simango, aquele que veio com esta boa ideia de alargar a cidade, criando vias de acesso e de escape, não pensou nestes dois generais astutos que não dão trégua mesmo quando já é depois das quinze? Claro que não pensou, resolvi-me. Como não pensou numa data de obrigações: eliminar de vez a lixeira de Hulene, que por sinal a Major General Carlos Mondlane dá para lá, ou terminar aquela estrada que vai dar a Praça dos Combatentes saindo da família Guebuza, no Albazine, ou mesmo retirar os vendedores ambulantes à sério [como tenta o fazer o economista (agora) de volta onde não deveria ter saído] e não colocando cães raivosos nos nacos dos nossos irmãos.
Ele (o meu bom Simango) não sabia mesmo que esta história de cruzar dois Generais não ia terminar com um final feliz? Um professor de Português que se preze (como ele) desconhece os desfechos dos enredos? Ah, sei: julgou que aquela rampazinha, tranquila, pudesse travar a sede das tropas belicistas em chegar ao centro da cidade à horas. Quanta ingenuidade!
- Hei! – cutucou-me o homem nas alturas.
Dei por mim o atraso já se tinha acelerado. O que vou responder a este coitado?, indaguei-me. Passo apenas por um cidadão inconformado, não tenho quaisquer truques de ali o deixar. Vi, de repente, um carro a piscar a minha esquerda. Reconheci aquele uniforme e lá fui abrir a porta pesada. Bem que queria o ter ajudado, mas a minha boleia não podia esperar eu inventar truques. Prometi resolver o seu desejo. Antes da viatura partir, embora as rodas já semeassem covas nos pavês, perguntei: - qual é o teu nome, amigo?
- Porquê? – já irritado.
- Hei-de falar com alguns amigos do Município. Tenho lá um tipo na Comunicação, também é escritor , quem sabe possa mexer algum pausinho.
Ficou cabisbaixo. Como se o Município não lhe confiasse esperança. Mas quando notou que já me distanciava, gritou com todas as letras, até seus três olhos acenderam ao mesmo tempo:
- Semáforo.
O que nos faz acreditar em ti é o teu peito aberto permanentemente entregue às balas. Aos verdugos atentos à tua volta, prescrutando-te os pensamentos. E nós temos as baquetas preparadas para o rufar dos tambores, porque a certeza de que tu representas o amanhecer que ainda vem, assim nos diz. Se assim não fosse teríamos sabido. Sentiríamos isso nas palavras que dão luz à tua clarividência. À tua saga.
Há muito que esperávamos por uma mulher como tu, desafiando a fúria das orcas no meio da tempestade. E agora estás aqui sem a menor possibilidade de retrocederes. Estás exposta sem escafandro para te protegeres do fogo que te cerca, e nós estamos debaixo da terrível ansiedade. Sem a menor capacidade de libertar o tigre da nossa revolta. O nosso tigre és tu, FátimaI. Aliás, a única coisa que podemos fazer é seguir-te.
Eles estão com medo de ti. Tremem em todo o ser quando falas e olhas para arrogância deles de frente. Dizendo-lhes sem vacilar que o tempo “ruge” na luta da juventude que tu representas. És o nosso instrumento de medida. Cada vez que apareces na televisão, a nossa esperança aumenta. Concentramo-nos todos diante dos ecrãs porque a Fátima Mimbiri vai falar.
És o nosso depósito de géneros. O nosso arauto que corre seguro ao encontro da luz, nestas trevas implantadas despois das armas que anunciavam a liberdade na epopeia das matas. Recusas-te a ficar na popa deste imenso barco navegando à deriva no oceano Índico revolto. Estás na proa desmentindo todas as falácias. É a ti que cabe a descontrução das palavras dos manhosos, que urdem diariamente as naus do desespero para atravessarem o fosso que eles próprios construíram. E tu olhas para eles com desdém.
Na quinta-feira, na STV, só queremos ouvir a ti. Eles também ficam ansiosamente à espera desse dia. Sabem que o nosso combustível és tu. Tremem quando pensam em ti. Bóiam nas discussões que tentam manter contigo. E no lugar de serem eles a encurralar-te, tu é que os cercas com a rede de emalhar das tuas palavras. Lúcidas.
Esta carta é da lavra dos nossos sentimentos mais profundos. Representa a necessidade urgente de cura das nossas feridas dolorosas. E tu, Fátima, recebeste a missão de ser a nossa enfermeira. É a ti que recorreremos em todos os momentos para nos indicares o azimute que devemos seguir. E enquanto isso, continuaremos na longa espera com as orquídeas mais lindas para ti.
Vêem-me essa pergunta a propósito da homenagem pelos 90 anos de Marcelino dos Santos - o nacionalista histórico e temido membro fundador da FRELIMO - celebrados no passado dia 20 de Maio de 2019. Na verdade, não sei bem a razão da pergunta. Também não sei a razão por que escrevo estas linhas. Estarei a homenageá-lo? Não sei!
Na esteira da homenagem, e através dos diversos depoimentos e arquivos audiovisuais passados nos media, não me surpreende a dimensão da sua grandeza, mas fica sempre a interrogação ou a sede de se saber mais e cada vez mais sobre a trajectória política e cultural de Kalungano, Lilinho Micaia ou simplesmente Marcelino dos Santos.
Venho contando em privado os “meus encontros” com Marcelino dos Santos. Agora, tomo este momento para partilhar parte de um desses encontros como meu singelo contributo pelas suas “noventas rosas vermelhas”, palavras de Óscar Monteiro, membro sénior da FRELIMO, no tributo que presta ao seu mentor, que acabo de ler no Jornal Notícias do dia natalício de Kalungano, e que utilizo, como empréstimo, com sua suposta permissão.
Em meados de Dezembro de 2006 fui convocado para participar numa reunião na sede do Partido FRELIMO com Marcelino dos Santos. A convocatória era estendida a toda a equipe de trabalho que coordenou a realização em finais de Outubro de 2006 do primeiro evento do Fórum Social Moçambicano (FSMoç), um espaço alternativo e crítico de debate público organizado por um grupo de organizações da sociedade civil moçambicana. Confesso que, na altura, alguma carga de medo tomou conta de nós e que só foi aliviada por conta da proximidade com o pessoal encarregue de interagir connosco na preparação da reunião cuja agenda seria em torno do evento que organizámos.
Para efeitos do presente texto, não me irei debruçar sobre o conteúdo dessa reunião (ficará para uma outra ocasião, assim como outros episódios dos “meus encontros” com Marcelino dos Santos). Vou apenas partilhar algumas situações ou momentos especiais que me marcaram, nessa reunião. Adianto já que foi muito interessante e que houve direito, por solicitação de Marcelino, a uma segunda rodada, uma semana depois, e a um convite para o pessoal do FSMoç capacitar/interagir com os quadros do partido, no âmbito dos propósitos do FSMoç, que para Marcelino dos Santos eram os mesmos que guiaram a fundação da FRELIMO e que conduziram a luta de libertação nacional.
No dia programado (finais de Dezembro de 2006) e à hora marcada (9h) lá estávamos na sede da Frelimo. Qualquer coisa como estar na toca do lobo. Do lado da comitiva da Frelimo, chefiada por Marcelino dos Santos, prontificava o ora deputado Edson Macuacua, João Bias e Florentino Kassotche para citar alguns dos integrantes. Coube-me, na qualidade de Secretário Executivo, encabeçar a equipe que representava a estrutura de coordenação para a realização do FSMoç, e assinalo, também, as presenças de Ahmad Suca, Thomas Selemane e Silvestre Baessa, companheiros com notável contributo na elevação da cidadania no país.
Marcelino dos Santos tinha na mesa os documentos do FSMoç, destacando o Plano Nacional. Este estava excessivamente sublinhado e com diversas cores e anotações, evidenciando que o tinha lido, como também que vinha “chimoco”. Para a nossa satisfação, Marcelino começa a reunião elogiando a qualidade dos documentos, admitindo que não via há bom tempo algo parecido na pérola do Índico, o que o deixava contente, serenando os nossos corações e receios. Ele ainda perguntou se tínhamos lido os estatutos da fundação da FRELIMO, pois os nossos documentos tinham o mesmo espírito e que ele vislumbrava possíveis pontes que se podiam construir entre o Partido FRELIMO e o FSMoç.
A reunião foi repetidamente interrompida por intervalos de telefonemas de e para Marcelino dos Santos, desculpando-se em seguida pelos transtornos. Por volta das 12 horas e quando pensávamos que se estava prestes a encerrar, mais um telefonema, e Marcelino termina a chamada dizendo ao interlocutor que só teria tempo no final da tarde, pois a reunião que estava a orientar se estenderia até às 16/17 horas. Felizmente não foi um susto para nós, pois conhecíamos a fama das demoradas reuniões da FRELIMO e com a particularidade de entrarem zangados e saírem sempre coesos e unidos.
Num dos telefonemas, apercebemo-nos de que era o Presidente Guebuza ou alguém próximo a confirmar um encontro. Depois de desligar, Marcelino comentou que estava desapontado ou preocupado com a hostilização do Governo de Guebuza ao de Chissano, celebrizada na famosa expressão “combate ao deixa-andar”. Referiu, ainda, que tinha pedido um encontro, creio do Partido, pois era tempo para se pôr termo à situação que até embaraçava o Partido FRELIMO. Um tempinho depois, como se constatou: o combate ao deixa-andar saiu do discurso governamental.
A dado momento, debruçando-se sobre a reacção do povo por qualquer insatisfação, Marcelino recordou as escaramuças na então Cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, depois da assinatura dos Acordos de Lusaka, em Setembro de 1974, entre a FRELIMO e o Governo Português, que selou o processo para a independência de Moçambique. Ele contou que alguns colonos foram assassinados com alguma barbárie numa revolta popular em resposta a atitudes de alguns sectores coloniais que estavam em contramão. Aproveitei a ocasião e informei que tinha um livro (que foi) escrito nesse período e que retravava, em parte, o que ele acabara de contar. Nesse instante, Marcelino olhou-me e franziu a testa como quem estivesse a desconfiar da veracidade do que tinha acabado de ouvir.
Em outro momento, Marcelino dos Santos anotou que acabava de ler o livro “Memórias em Voo Rasante” de Jacinto Veloso, outro membro sénior da FRELIMO, lançado em 2006, e por coincidência eu e o Silvestre Baessa acrescentámos que também o tínhamos lido, por sinal, o mesmo exemplar. Da leitura do livro ou da conversa sobre o mesmo com Jacinto Veloso, Marcelino disse - embora os dois políticos fossem companheiros de jornadas há várias décadas - que se apercebeu de que um dos livros que influenciou o General Veloso foi o “Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora que, também para ele, é uma referência e contribuiu grandemente para a sua consciência política.
Ainda sobre o livro de Zamora, Marcelino lamentou que nunca tenha visto o original e que apenas tenha lido fotocópias. Voltei a aproveitar o momento, e disse-lhe que eu tinha o original. Desta vez, interrompendo o gole de água, Marcelino dos Santos abriu mais os olhos, direccionando-me com intensidade. Em seguida, apontou-me o seu dedo indicador, e com o tom de voz mais ríspido e denotando um iminente sorriso exigiu veementemente: Eu quero ver a sua biblioteca!
Cá por mim, pensei: Agora é que me lixei. Desde então, fiquei com uma promessa oculta de passar-lhe o original do “Processo Histórico” de Juan Zamora, e eu ficar com uma fotocópia!
Por onde andas, Kalungano? Agora sei a razão da pergunta. De certeza que não lhe procuro para saldar a minha promessa oculta ou mostrar-lhe a minha biblioteca, mas apenas para beber mais do teu “Processo Histórico”. Acredito que não seja só do meu interesse. É um Imperativo Nacional.
Saravá, Lilinho Micaia!