Director: Marcelo Mosse

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Carta de Opinião

quinta-feira, 28 março 2019 13:13

SEXO AUTO-ENFRAQUECIDO

-- País onde mulher é objecto decorativo é Nação condenada --

 

Quando foi dito "Por detrás de um grande homem está uma grande mulher", a moçambicana, acredito eu, auto-excluíu-se. Quando alguém aferiu que "o futuro de Moçambique está nas mãos dos jovens" deve ter sabido antes que a rapariga não quis essa responsabilidade que, no entender delas, é só dos rapazes. Conheço outros ditos e teorias importantes como o da ONU, através das suas agências, que acredita estar mais garantido o futuro da população (porque toda ela inicia na criança) quando se educa e privilegia. Mas a ONU deve ter auscultado as meninas moçambicanas, e elas pediram para não se preocuparem com elas. Não querem ser educadas.

segunda-feira, 25 março 2019 05:52

Manjedoura dos abutres

João Lourenço, Presidente de Angola, exemplo invejável de toda a África, inesperado pela atitude de colocar o seu país acima de quaisquer interesses pessoais ou de grupos, vai ser com certeza o meu orgulho como africana. Estou a pensar nisso agora que me encontro confinada neste acampamento no Búzi, erguido para nos acolher depois de sermos varridos pelo dilúvio. O problema não é estarmos aqui arrebanhados. Não é esse o problema. Mas sim a dor de perceber que estamos a ser usados para alimentar os apetites dos abutres, sem podermos fazer nada, senão derramar as lágrimas para dentro do nosso coração.  Formando a albufeira da tristeza.

 

João Lourenço fala do pote, para o qual desciam os marimbondos (vespas) com o intuíto de chupar o mel do povo. E eu falo da manjedoura que a nossa desgraça construíu para ser usufruída pelos abutres. Eles pairam sobre as nossas cabeças, descem com as horríveis garras abertas, e tiram a comida trazida pelos amigos e pessoas de boa fé para nos alimentar e disfarçar a dor de estarmos aqui.

 

Enquanto choramos a morte dos nossos filhos e dos nossos maridos e dos nossos irmãos e avôs, eles choram lágrimas de crocodilo. Aviam-se uns na clareza do dia, outros à calada da noite, com o que foi trazido para nós, mas estamos a ver tudo. E eu, que cheguei aqui apenas com as minhas  mamas cheias de leite, sem a criança que gerei com dor e amor, essa criança arrancada dos meus braços e levada pela enxurrada sem eu poder fazer fosse o que fosse, pergunto-me: afinal porquê que fazem isto?

 

Eles não ouvem. Os abutres são surdos. Continuam a descer e a tirarem da manjedoura o que trouxeram para nós. Mas não tem problema. Eu sou uma mulher nascida da terra. A terra é o meu maná. Todo o meu corpo cheira à terra que trabalho com o lombo vergado, danificando a minha espinha dorsal. Voltarei para lá quando tudo isto passar. Tudo isto vai passar. Menos a minha dignidade.

 

Abutres! O que me dói não é vocês tirarem a comida que trouxeram para nós. Não é isso que me dói. Isso podem continuar a fazer para encher os vossos reservatórios já fartos. Não me importo. O que me dói é vocês desprezarem o sofrimento das crianças, a nossa morte. Isso é que me castiga. Repugna-me o vosso sorriso de hienas vestidas de pele de cordeiro.

 

Mas eu sei que o coração está com aqueles que sofrem de facto com o nosso drama. É diante desses que me inclino e agradeço. À eles entrego meu rosto para me limparem as lágrimas, já que as minhas mãos tremem de dor e desepero. Enconsto minha cabeça do peito deles enquanto vos observo, abutres abominados, disfarçados entre estas pessoas de boa fé. Que nos abraçam com afecto.

 

Saiam daí, saiam!

segunda-feira, 18 março 2019 06:09

O rugido dos ventos

Acabo de chegar à casa vindo do trabalho, cansado e revoltado contra a minha incapacidade de perceber que tudo isto já foi anunciado pela Palavra. Nunca quis ouvir os apelos do Noa, “meus irmãos e minhas irmãs, vamos construir a arca porque vem aí o Dilúvio”. Qual dilúvio que vai engolir casas e árvores e montes e montanhas! Que dilívio é esse?  Desde que eu nasci e desde que nasceram todos os meus antepassados, jamais ouvi dizer que as águas que caem do Céu alguma vez subiram até aos montes, devorando-os inteiros. Isso não passa de imaginação, ou de loucura por velhice do Noa. Noa está obsoleto.

 

Isto é um delírio. Talvez um suspiro. O penúltimo. Estou debaixo do choveiro entregando-me ao prazer de sentir a  água deslizando pela cútis, no bairro de Macurungo onde moro, nesta cidade da Beira despojada dos bosques que a ornamentavam. Já tenho a informação, “vem aí um temporal, um ciclone de grande magnitude e torrentes de chuva. Precavejam-se, procurem lugares seguros, não fiquem debaixo de árvores, fechem as portas e as janelas”.

 

Está a chover desde manhã, mas isso não me preocupa mesmo depois do Noa avisar com palavras claras, “vem aí o dilúvio, vamos construir a arca”.  Isto vai passar, por enquanto deixem-me gozar este deleite que o choveiro me oferece. Também se vier essa tal hecatombe e engolir a minha casa eu sei nadar. De mariposa e de livre e de costas e de bruços. O meu corpo vai servir de jangada para a minha mulher e meus filhos.

 

Troveja fortemente em toda a cidade da Beira. O Davis Simango é o Noa, “meus irmãos, não deixem as crianças ir à escola, vocês também, que trabalham perto da orla marítima, fechem as empresas, fiquem em casa com as vossas famílias porque isto não é brincadeira, não!

 

Davis parece um pastor que vai à frente do rebanho quando fala do dilúvio que já está, aos poucos e poucos, lavrando para transbordar o Chiveve e submergir as casas. Chove forte agora, o vento sibilia como várias mambas ao mesmo tempo, e eu sinto que sim, que tenho de cingir o lombo para levar a minha família quando o tecto da casa estiver por debaixo da água.

 

Espreito pela janela da casade banho e vejo as palmeiras que os manhambanas e os maquelimanes trouxeram para aqui, dançando a dança do Idai. É um lindo espectáculo. É a arte em si. Que me faz sorrir ao pensar que a morte também pode vir do lado do belo. E se calhar todos nós podemos morrer aqui na terra dos senas e ndaus. A ver vamos, diz o cego!

 

Vou à sala para ver televisão e o corte de energia eléctrica é sagaz. Implacável. Pego no meu celular para efectuar uma chamada e do outro lado é o mutismo que  me responde. As torres de comunicação tremeram nas bases. Lá fora o vento continua a sibilar. Agora uíva como os mabecos. Cada vez mais forte. E a chuva ruge no lugar dos trovões, fazendo-me lembrar, tudo isto, que não somos nada. Podemos ser executados agora mesmo, sem apelo nem agravo. Mesmo com os lombos cingidos.

segunda-feira, 18 março 2019 06:05

O Presidente da República também ERRA... é humano

Sempre estive preocupado com esses sentinelas de prontidão sentados em cada esquina das redes sociais e não só que tentam titanicamente a todo custo fazer-nos crer que o Presidente da República está sempre certo. Assustam-me esses compatriotas que de tanto endeusarem o Presidente da República chegam a acreditar que ele é Deus de verdade, não erra... não falha. Esses nossos irmãos que pensam que o Presidente da República não pode ser corrigido, negado, lembrado, guiado, sugerido ou chamado à razão. Esses que, para eles, o Presidente da República pode cair num buraco, se ele não viu é problema dele. Esses que pensam que é falta de respeito dizer ao Presidente da República que a sua gravata está torta ou que a sua braguilha está aberta. 

 

O próprio Presidente da República abraçou a sensatez e interrompeu a sua visita ao Reino de Eswatine (uma visita que nem devia ter iniciado, diga-se). Fez uma introspecção. Ouviu o seu coração, aquele onde cabemos todos nós, e ouviu o brado do seu povo. Reconheceu que era melhor ir pessoalmente ao terreno do que tomar decisões com base em imagens partilhadas no "feici" por puxa-sacos estagiários. Deu-se conta de que, afinal, a sua presença lá em Macurungo, na Munhava, no Chinde, na Soalpo, em Canongola, etecetera, era melhor que a de qualquer ministro. Percebeu que o seu abraço era de longe melhor que qualquer comunicado da Presidência. Lembrou-se que a mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer também. 

 

Mas, há uma claque de académicos-cipaios que desencadeou uma corrente de aplausos à visita do Presidente dando a entender que se tratava de uma decisão tirada dos melhores manuais de boas práticas de uma sociedade. Foram até desenterrar teorias satânicas para justificarem tais hossanas. Mas, como o bem sempre vence, o prevaleceu o bom senso. 

 

Ahhh, sim! Tenho medo desses assessores voluntários recém-convertidos que pululam por aqui. Esses académicos que fizeram pacto de não agressão com os seus próprios diplomas a troco de petisco. Esses nossos bradas que pensam que Filipe Nyusi é presidente só deles. Esses nossos contemporâneos que querem vender ingressos ao coração do Presidente Nyusi. Esses que assumiram que Nyusi é propriedade privada deles. 

 

Hoje, Filipe Nyusi está aí no terreno abraçando, chorando e dando força pessoalmente ao seu povo. Está aí mostrando que, se enfrentou os mistérios de Satungira para negociar a paz com Dhlakama, pode também enfrentar os estragos do Idai. Está aí dizendo ao mundo que unidos venceremos. Está aí mostrando que pisa matope e lodo mesmo quando não é para pedir voto. E, de certeza, deve estar com a alma muito leve. E os sentinelas estão aqui com caras de picolho, carentes de ideias, mandando indirectas para si mesmos. 

 

Ao Presidente Filipe Nyusi vão os meus parabéns pela sábia e humana decisão de interromper a visita (repito: uma visita que devia ter sido cancelada antes mesmo de iniciar). Nunca é tarde. Afinal, diria Jonathan Swift, uma pessoa nunca se deve envergonhar de ter errado, ou seja, nunca se deve envergonhar de ser mais sábio hoje do que era ontem. Somente quem nada faz nunca comete erros. Errar é humano. Todos nós humanos ainda viventes somos susceptíveis a errar a qualquer momento. 

 

Aos académicos-cipaios sugiro que as vezes arranjem um tempinho para visitarem os seus cérebros lá no estômago onde deixaram. Vai que um dia descarregam com autoclismo sem se aperceberem.

 

- Co'licença!

terça-feira, 12 março 2019 13:24

Aprofundar a democracia na escola moçambicana

“Hoje estou aqui/ entre mártires e traidores/ entre bandidos e inocentes/ entre hipócritas e fariseus” (Vera Duarte, Esta canção desesperada)

 

Apaixonei-me à primeira vista pelo livro Repensar o Estado: para uma social-democracia da inovação logo que o vi, entre tantos, na prateleira de uma livraria, em Bragança, finais do ano passado. Comprei-o e passou a ser meu fiel companheiro de viagem e cabeceira.

 

A edição que tenho em mãos sai sob chancela da Círculo de Leitores, da autoria de Aghion, P. & Roulet, A. (2012), economistas franceses, tradução de Francisco Telhado, do original Repenser l’État: poer une social-démocratie de l’innovation (Éditions du Seuil et La République des Idées, 2011).

 

O livro que, em traços gerais, delineia “os contornos de um Estado repensado: Estado investidor, Estado regulador, Estado garante do contrato social e da democracia” (p.145) tem quatro capítulos, sendo o quarto Aprofundar a democracia (pp. 117-143). É nele que me baseio para tecer estas pequenas notas.

 

Não sendo cientista social, muito menos economista, este acto emana do exercício da cidadania, como os seus próprios autores testemunham, “a liberdade de consciência e de expressão, o confronto das ideias, a possibilidade de um debate contraditório, de pôr em causa um regime, ou até mesmo de derrubá-lo, fazem parte integrante da dignidade humana” (p.117).

 

O capítulo Aprofundar a democracia tem como principal linha de força a possibilidade de medição da democracia, assente, por sua vez, na democracia como indicador de crescimento, da liberdade, da criatividade e da corrupção. Nestes nós, a meu ver, podem tirar-se importantes lições para a escola moçambicana (uso o termo escola no sentido de educação), embora a reflexão original se refira aos países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), em especial a França.

 

Para atender às necessidades urgentes da nossa escola (nossa porque também faço parte dela, no dia-a-dia, na sala de aulas), entabulamos às premissas do capítulo em recensão, a liberdade, a criatividade e os valores morais que se querem cultivados em Moçambique. Alias, parecem esses fazer um entrosamento com a linha urdida por Aghion & Roulet.

 

Ao debruçar-se sobre a liberdade, Aghion & Roulet (2012:122) apontam “é um facto que as grandes invenções não se coadunam com o autoritarismo e a hierarquia” e parece essas práticas amararem a nossa escola ao marasmo a que se encontra. Como exemplo, os autores partilham:

 

Se Larry Page e Sergey Brin, estudantes em Stanford, puderam desenvolver conjuntamente, no âmbito do seu doutoramento, o que viria a ser o Google, foi porque tiveram toda a liberdade para escolher a pista que desejavam explorar e não receberam ordens dos seus «superiores» relativamente a escolha do tema da sua tese.

(Aghion & Roulet, 2012:123-124)

O autoritarismo e a hierarquia empurraram a nossa escola para o círculo do yes man: só a ideia do chefe vinga, só o chefe sabe, o chefe sabe tudo, só o chefe fala, o chefe fala tudo. Na nossa escola quem sabe ou fala mais que o chefe sofre sevícias. Reina, na nossa escola, o culto do silêncio.

 

O aluno da nossa escola não só não sabe ler e escrever, isso é de menos. O aluno da nossa escola é ensinado a ter medo do professor, a dizer o que o professor quer ouvir, a dizer direitinho ao pé da letra do apontamento. O aluno da nossa escola deve vestir-se bem e não superior ao professor, deve fazer a barba, o cabelo e as unhas, igual ao que o “regulamento” manda. Experimente furar a orelha!

 

O aluno da nossa escola é um mero reprodutor que não foi ensinado a transformar uma frase activa em passiva, a inverter o sujeito do objecto, a usar da recursividade proposta por N. Chomsky, porque o professor não disse assim. Da noite ao dia, estamos a formar autênticas multiplicadoras, caixas de ressonância, quando bem formadas.

 

O professor da nossa escola não fala em reuniões, não aponta erros e nem sabe dizer o que pensa em grupos de whatsapp institucionais com medo de não ser promovido ou ser despromovido.

 

A nossa escola devia ser o laboratório de ideias. Mas as ideias só nascem em espírito e ambiente livres: livres da burocracia excessiva, livres dos lambe-botas, livres dos chefes pro-adulação, livres da censura, livres do medo.

 

A nossa escola transformou-se em centro de imitação, “pelo contrário, nos setores de ponta, o crescimento das empresas baseia-se na inovação «na fronteira», que implica delegar pelo menos parte do poder decisório, de maneira a estimular a criatividade no seio da empresa” (Aghion & Roulet, 2012:124).

 

A criatividade só é possível onde não se tem medo de errar, onde não se tem medo de experimentar novas coisas, novos métodos, novas técnicas, na fronteira entre a realidade e a loucura. Este espaço parece cada vez mais longe da escola moçambicana.

 

A gritante falta de valores morais na sociedade moçambicana é, em grande medida, produto da nossa escola. Numa escola aonde a democracia não está aprofundada não se pode praticar os valores da tolerância, da escuta, do respeito, da cedência, do perdão, do amor ao próximo, da paz. E, em última instância, nesse ambiente não se pode exaltar a pátria.

 

A nossa escola inverteu os paradigmas: transformou nacionalistas em gatunos, dirigentes em corruptos. A mudança desse quadro, tal como Aghion & Roulet (2012:118) sugerem para uma economia de crescimento, parece estar no aprofundamento da democracia na nossa escola. E isto passa por: (i) um maior grau de democracia e descentralização na gestão da nossa escola – que, por sua vez, propicia a criatividade e o aparecimento de novos paradigmas; (ii) um sistema político mais democrático e menos corrupto, onde os lóbis exercem menos influência sobre os gestores da escola – o que dá lugar à inovação; e (iii) evitar comportamentos de favoritismo ou de clientelismo – o que impede que a escola seja tomada por interesses da casta dos gestores a base de favores e apetências pessoais.

 

Para fortalecer esse quadro de uma democracia aprofundada, para o qual a escola joga um fator determinante, Aghion & Roulet (2012:129) sugerem que os meios de comunicação social sejam suficientemente independentes para apontar o dedo a práticas políticas duvidosas ou abusivas e que se criem instituições adequadas e dotadas de meios suficientes para avaliar as políticas públicas de forma sistemática, independente e rigorosa.

 

Enfim, parece aprofundar a democracia na escola moçambicana ser o passo para o povo tomar o poder.

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[1] Linguista, escritor e docente.

 

terça-feira, 12 março 2019 10:18

O lugar do eu e do outro na cidadania

A todas e a todos, permitam-me que expresse a minha felicidade por estar aqui na Universidade Lusófona do Porto, para fazer parte da mesa redonda sobre o ‘Associativismo e Cidadania’, na companhia da Cecília Gonçalves, Fátima Cordeiro, do João Russo, do Joaquim Guedes, e do Alberto Magassela.   

 

Ainda no espírito de 8 de Março, é com muito gosto que me dirijo às raparigas, jovens e mulheres, presentes nesta sala.

 

Antes de começar, permitam-me, de igual modo, agradecer a Índico Associação Cívica de Moçambique, em Portugal, pelo convite.  

 

Como nota prévia, devo confessar que o convite que recebi com muito gosto para ‘cogitar’ sobre ‘Associativismo e Cidadania’ no contexto global é desafiante pois o meu ‘raciocínio’ melhor funciona na lógica local, glocal e global. Todavia, o termo desafiante faz parte de um leque de palavras que se tornaram ‘corriqueiras’ no contexto moçambicano. Espero saber fluir nesta globalidade multi e pluricultural.

 

Falar de associativismo e cidadania, ou melhor, o que no nosso ‘dialecto’ seria o jargão “activismo”, faz parte da característica ‘social’ do ‘eu’ que pensa no outro, um ‘eu’ que não se dilui na relação com o outro, mas sim que se fortalece e se humaniza cada vez mais na companhia do outro. Para o contexto ‘local’ português, diria: um ‘eu’ que busca aprender e fortalecer com o ‘eu’ multicultural.

 

A cultura que o activismo, ou se preferirem, que o associativismo e cidadania devem evocar, é a cultura das entrelinhas dos artefactos, a cultura implícita nas capulanas, uma cultura mental imbuída de abertura e aceitação do outro.

 

Cultura não como uma condição acrítica ou condição pré-lógica, cultura não como polarização. Mas cultura como terapia, cultura como superação, cultura como o bem-estar e bem-ser, cultura como status quo na ciência, cultura como ética, cultura como empatia, cultura como alteridade e cultura como glocalidade.

 

Actualmente esta temática ganha mais relevância na condição de movimentos sociais, pois hoje, ao que mais se assiste, infelizmente, é o fenómeno do nossismo, isto é, a lógica nós e outros, ou estás comigo ou estás contra mim. Simplificando, vivemos hoje numa época em que se legitimam, de maneira estrutural, as várias formas de intolerância e violência (simbólica) face ao ‘estranho’, ao ‘viente’, ao ‘diferente’. Pois, para uns, a narrativa actual sobre a cidadania pode ser um campo de aberturas analíticas e, para outros, pode ser um campo fechado, linear e sem esperança.

 

Quando estes dois não comunicam, não procuram uma forma de entendimento, entram para um status quo nocivo que levaria a pontes quebradas, onde, de um lado, tens o eu e do outro lado bem distante tens o outro que pensa de forma diferente e, consequentemente, é visto como o eterno outro a ‘abater’, o que seria o nossimos

 

O triângulo euismo, outrismo e o nossismos faz parte das formas (ins)conscientes da fobia pelo diferente, criando assim várias nuances do nossismo, a saber:

 

  • Nossismo comunicativo como uma forma que ganha espaço na significação da nossa narrativa onde os ciber-intelectuais com recurso a popularidade e populismo criam ‘fábricas mágicas’ de pós-verdades;
  • Nossismo identitário como forma de marcar território, representa uma outra nuance da perigosidade da relação eu e outro. Os temas actuais na nossa narrativa ‘digital’ giram à volta da identidade tribal, regional e, quiçá, por voltas gemas, ou moçambicanos de primeira e os moçambicanos de segunda, ou, europeus e emigrantes/refugiados. Esta forma linear e fechada de ver e mergulhar no ethos do país funciona para legitimar as diferenças (formas excludentes) no lugar da tão sofrida e bem conseguida narrativa: ‘unidade nacional’;
  • Nossismo cultural como o status quo, o nossismo cultural faz parte de um ethos inflexível, que legitima os grupos através da cultura, o que seria cultura para o país bilionário culturalmente?
  • Nossismo político é elevação e legitimação da intolerância no seio dos grupos, dos movimentos e dos partidos políticos, podem ser assumidas como uma forma de violência simbólica, sem mencionar aqui as várias nuances e dimensões da violência associada a este ethos. No lugar de perceber o outro, no lugar de comunicar com outro, o encarramos como sendo um inimigo por abater do espaço político, no lugar de uma co-habitação política, num contexto de liberdades individuais e colectivas.

Nós produzimos inconscientemente estas formas de ‘medo’ perante ao desconhecimento, que não precisa ser necessariamente físico, pois, muitas vezes, ele está na dimensão mental, cultural e ideológica.  

 

Os discursos dos governantes, dos políticos e dos activistas estão cheios de narrativas acerca da cidadania activa, mas, no final do dia, trata-se de uma cidadania formal ou informal? A zona de conforto está na narrativa da cidadania formal, legislada, aquela que fica bem na fotografia, pois tem um ‘rosto’.

 

A cidadania informal irrompe do quotidiano, não conhece ‘as leis e as regras’, não tem ‘rosto’, a cidadania informal é rica pelo anonimato, ela é elástica e flexível. Isso faz dela vítima da sua própria condição.  

 

Cidadania é saber ser, saber estar e saber viver com os outros, ou seja, estar online pelo lugar do eu e pelo lugar do outro.

 

Cidadania pressupõe o eu social, o outro, o grupo, a relação intergrupal que deve ser alimentada pela relação intra-pessoal.

 

  • Cidadania é saber estar em grupo.
  • Cidadania é saber comunicar e saber ouvir.
  • Cidadania e associativismo são formas sociais estruturais de participação activa

O eu e o outro pressupõem uma comunicação ética e empática, enquanto categorias das nossas relações grupais, pois só somos eu e eles porque existe uma relação com o outro, mas, o que acontece quando não temos a ética e empatia em nome da cidadania?  

 

Riscos ou desafios que devem ser evitados em nome da ‘cidadania’, em nome do ‘associativismo’ e em nome do ‘activismo’, a saber:

 

  • O activismo deve evitar diluir-se nas questões éticas;
  • Evitar perder a empatia e alteridade;
  • Não perder a capacidade bonita de saber ouvir e escutar;
  • Evitar diluir-se na política, ou seja, ‘fazer política’ em nome do activismo e dos ‘outros’;
  • Evitar ser eleitoralista;
  • Evitar substituir o outro, pois, sem o outro, seria possível ser activista?

Obrigada a todas e a todos