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Carta de Opinião

domingo, 17 fevereiro 2019 14:11

As operações em terra

O mau tempo não tenciona para tão já deixar de beijar este pedaço da costa do Índico, condenado ao abandono e destinado ao esquecimento. A notícia sobre o naufrágio de um Bénéteau francês corre o mundo através de rádios que mereciam espaço nas competições da fórmula-1. E porque em Mitemane os homens também cantam Worroko[i], os rumores acerca do modo de aquisição do barco correm três vezes mais que a velocidade com que Lurdes Mutola amealhou ouro em Sidney.

 

Uns dizem que o Bénéteau francês foi adquirido com dinheiro da capitania de Memba, outros ainda aventam a hipótese do mesmo ter sido resultado de um empréstimo a um daqueles bancos de Nacala-a-Velha. Correm ainda rumores da incapacidade da capitania em pagar tal dívida, alguns sheiks influentes desdobraram-se em campanhas de não pagamento num acto visto por outros sheiks como uma ofensa as regras do Corão que recomenda a tudo fazer para que haja paz e harmonia entre os homens.

 

O agrupamento musical Worroko de Mivicone, compôs uma música que na óptica das autoras denuncia a forma fraudulenta como a dívida de aquisição do Bénéteau foi contraída. Para a sua apresentação foi marcado em Naminambo, um espectáculo. Os mais jovens reagiram positivamente e se fizeram ao local para onde se vão encontrar com agentes da polícia que os impedem de se fazer ao quintal de Mwe Habibo, a casa do espectáculo.

 

O barco ainda flutua por cima das águas da baia de Memba. Enquanto os agentes da polícia costeira, lacustre e fluvial querem que o mesmo atraque ao porto de areia de Mitemane, a população local desdobra-se em rezas, evocando ao altíssimo para que usando da sua omnipotente força, faça aquele barco atravessar o mar e fugir dos seus olhos. Apesar de crenças diferentes, as orações são dirigidas ao mesmo Deus, que terá de ser justo para com uns e injusto para com os outros. Alguns sheiks acreditam que Deus está com a maioria enquanto outros acreditam que os homens do poder são enviados de Deus para governar aos pecadores e tudo que fazem é em função da qualidade do povo que servem, pois quando se trata de um povo de pecados maiores, os homens do poder tratam de condená-lo ao sofrimento e quando se trata de um povo de pecadores menores com tendência para benevolente, proporciona-lhes boa vida com cheiro a fartura.

 

- Continuemos a operação rapazes. Vamos, façam força. Lembrem-se que juramos a bandeira para manter a segurança, ordem e tranquilidade públicas - um comando sem voz se escuta entre os homens fardados.

 

- Às ordens, inspector – quase todo batalhão repete a frase como se de uma oração se tratasse.

 

A confiança em Deus começa a roçar a alma dos agentes da polícia costeira, lacustre e fluvial da baia encarregues de gerir o resgate, mas as vezes com pausas para gerir os naworrokos[ii] que comportam-se como se aos ritos de iniciação não tivessem ido. Os ritos de iniciação ensinam a ser comedido e a guardar segredos tidos como vitais para a sociedade e numa altura em que se evoca perda de valores morais, os mais velhos lamentam que tal facto não esteja a acontecer. “As pessoas agora têm boca grande, falam de tudo um pouco, inclusive do que não sabem” – alertam.

 

No meio de tantas, uma ideia vinca: iniciar uma operação em terra envolvendo funcionário da capitania, do sinédrio da guarda e pessoas próximas a estes que terão tido conhecimento da contração da dívida para aquisição do Bététeau, como forma de apelar aos bons ofícios dos anjos para que o resgate finalmente aconteça.

 

O corpo da Dra Alimina Mussagy, uma cobradora de taxas da capitania que foi reconhecido antes mesmo de chegar ao laboratório do SERNIC[iii] cujo corpo foi encontrado a flutuar entre as águas de Mitemane constituiu mesmo um alerta sobre a possibilidade de outras mortes estarem a caminho, pelo que, a operação deve continuar.

 

- Sargento!

 

- Aqui meu inspector.

 

- Liga o Motorola, pretendo comunicar ao nosso superintendente que está na hora de começar as operações em terra.

 

[i] Worroko – dança tradicional do distrito de Memba praticada exclusivamente por mulheres, cujos instrumentos são dois paus raspados que as bailarinas tocam com recurso as mãos enquanto cantam. As suas letras são geralmente informações ou rumores que correm nos povoados ou na vila. O grupo mais famoso de Memba é o Worroko de Mivicone, localizado num povoado também chamado Mivicone, posto administrativo de Memba-sede. Por causa da natureza das letras, surgiu o neologismo naworroko que significa fofoqueiro. 

 

[ii] Naworroko é um neologismo macua-nahara que significa fofoqueiro.

 

[iii] SERNIC – Serviço Nacional de Investigação Criminal

Quelimane, Zambézia e Moçambique é uma terra de especial e abençoada, com filhas e filhos especiais pela sua multiculturalidade, diversidade e diferenças relativas que não se querem universalizantes. Hoje, a saber, 13 de Fevereiro de 2019, é um dia especial para a cidade de Quelimane, para a Universidade Pedagógica e porque não, para a terra das mucinkas, da mucapata, do frango reconhecido internacionalmente como sendo o mais saboroso dos frangos: o frango à zambeziana. Pois, a Universidade Pedagógica homenageia hoje o Prof. Doutor Manuel José- fundador e director da delegação da UP em Quelimane, ou simplesmente, UPQ.

 

 A tarefa da escolha da capulana da homenagem não foi fácil pela responsabilidade da mesma, foram várias e sobretudo ricas e belas as propostas, no final, o patrono desta iniciativa, o Prof. Doutor José Paulino Castiano, como um bom filósofo, soube exportar a sua inspiração no título fabulástico do prefácio do livro da homenagem da autoria do Prof. Doutor Jorge Ferrão, Reitor da Universidade Pedagógica, a saber, “Pedalando Utopias Por Entre os Palmares” ficando o título do livro de homenagem “ Pedalando Utopias entre Acácias e Palmares”. Porque esta iniciativa acontece dentro dos ethos académicos, muitas e muitos ou poucas e poucos se questionarão: o porquê da homenagem? Homenageá-lo por fazer ‘bem’ o seu trabalho? Ainda bem, existe a possibilidade desta hipótese surgir, pois, academia é mesmo isso, ou seja, confronto de ideias (não de pessoas), questionamentos e consensos desconcertados.

 

 Esta iniciativa é uma pequena forma de reconhecimento e legitimação de um homem de várias causas e nuances, particularmente no espaço académico. Prof. Doutor Manuel José de Morais como académico e gestor é detentor de uma alma, de um espírito, de uma atitude e prática de extra mile. Extra mile termo utilizado outrora pelo Prof. Doutor Rogério Uthui, ex-reitor da Universidade Pedagógica para caracterizar a UPQ. Prof Doutor Manuel José de Morais não se farta de pedalar feliz e incansável rumo ao extra mile.

 

 ‘Doutor Morais ou Professor Morais’, estas são duas das várias formas que a emblemática figura do Prof. Doutor José Manuel de Morais recebe no seio da academia zambeziana e moçambicana. Por academia, aqui, olho para cada parte da rica capulana que a compõe: estudantes, docentes, técnicos e a sociedade circundante, instituições religiosas, lideranças tradicionais, sector público e privado, que, diariamente, contribuem para a sua legitimação. Confesso que, mentalmente, é muito mais fácil e prático idealizar uma narrativa sobre o nosso homenageado, Prof. Doutor Manuel José de Morais, no lugar de escrever porque é muito mais fácil idealizar o que ‘narrar’ com base no convívio que dura há mais de uma década.

 

Não diria que é difícil criar a narrativa Prof. Doutor Manuel José de Morais, mas confesso que é uma oportunidade carregada de felicidade e alegria por poder dizer aqui, com um sorriso enorme no meu rosto: OBRIGADA POR TUDO, em especial, pela oportunidade de, diariamente, poder aprender de uma biblioteca que fala, que respira e que tem a magia de fazer as coisas acontecerem. Foi em 2006 que me apresentei ao Director da Universidade Pedagógica- Delegação de Quelimane, Prof. Doutor Manuel José de Morais. Vinha eu da Delegação de Nampula, onde fui estudante e monitora. Gostava de Nampula, dos campi, dos colegas, e confesso que, até hoje, mantenho um contacto alegre com a Delegação e colegas. Mas, decidi regressar para casa, Quelimane, e, nessa altura, os meus colegas de turma de Licenciatura, em Nampula, Rui de Sousa e Beato Dias, já estavam a trabalhar em Quelimane, mas eu não sabia como seria a minha integração em Quelimane e, por isso, deixava Nampula com alguma tristeza pois era o lugar onde eu já me sentia axinene arivava.

 

 Mas, a partir do momento em que o Director da UPQ, Prof Doutor José de Morais, me desejou boas boas-vindas à Delegação, respirei fundo e pensei que ter regressado à casa foi uma decisão boa. Como eu, já la estavam a Vilza Cassamo e a Stella Pinto Novo. Na mesma época, chegaram mais colegas: o Miguel Reis, o Paulo Calima, entre outros, e, at the and the day, estavamos todos nós felizes com o Director que tínhamos. Assim iniciava a nossa trajectória como docentes da UPQ. Foi assim que, sem hesitar, o Prof Doutor Manuel José de Morais criou a sua equipa de jovens, como ele dizia na época, ‘uma equipa jovem sem vícios’.

 

 Muitos dirão que a força deste embondeiro e diamante lapidado está na juventude que o rodeia. Eu diria o inverso: a força da juventude que o rodeia está no Prof. Doutor Manuel José de Morais, ou seja, neste privilegiado convívio profissional e social que temos a oportunidade de ter com ele. Isso fortifica a academia e a nós. Outros dirão que ele é um homem viajado e que as viagens iluminaram as suas ideias. Se assim for, então um bem-haja às viagens pois este é o protótipo de uma visão académica.

 

O que torna o Prof. Doutor Manuel José de Morais um líder e campeão académico?

 

  • ·É um académico que conhece a humilde, a empatia, a simpatia e sobretudo a simplicidade;
  • ·Como gestor, na academia, pauta sempre pela razoabilidade racional das suas acções, nas suas decisões e, sobretudo, na sua liderança;
  • ·É um académico que não discute pessoas, mas sim ideias, pois para ele as ideias nunca são pequenas e não têm ‘cores’;
  • ·É um “académico-gestor” pois, para ele, a academia não vive só da leccionação, mas é também um espaço de (des) construção de conhecimentos através da pesquisa, extensão universitária, governação e diplomacia académica e a internacionalização glocal;
  • ·Através das suas decisões sábias e inclusivas, soube transformar o Auditório da UPQ num local sagrado de discussão, descontrução e, quiça, de construção de ideias em prol de uma sociedadade cada vez mais informada, consciente e sobretudo justa;
  • ·Academia é por excelência um espaço aberto e, para o caso moçambicano, ela é também um espaço sim de todas e todos, sem elitismo. E disto o Prof. Doutor Manuel José de Morais entende, percebe e pratica.

 

Prof. Morais, como tu dizes: ‘A Todas e a Todos, Aquele Abraço Zambeziano’

Os textos que irá ler aqui a partir de hoje, não pretendem ser um relato de factos com rigor acadêmico, mas antes o relato de uma outra verdade. A verdade da catálise efectuada por mim pelas terras de solo encarnado pelas montanhas e embondeiros de Montepuez. Situando-se na área nebulosa entre a experiência de trabalho de campo académico e relato sobre os estranhamentos e afectos de encontro com uma nova realidade, o texto explora toda a pluralidade possível dos métodos de narração e depoimento. É um exercício sobre a transcrição da oralidade.

 

O leitor encontrará relatos das vidas e das mortes dos camponeses e garimpeiros de Namanhumbir, da luta pela sobrevivência das mulheres dona de casa e daquelas que não cavando nas minas, ganham a vida pelo dinheiro dos rubis de Montepuez.

 

Encostado sobre a palhota de paredes de barro, que me foi dada como meu aconchego durante as semanas de trabalho de campo, ouço o barulho das omnipresentes motorizadas empilhadas pelos corpos de homens que com picaretas e lanternas enormes sobre a testa e longos casacos se dirigem para o garimpo.

 

Do outro lado da rua, consigo ver diate do portão de uma enorme vedação de rede de arrames, uma fila de homens com sacolas plásticas outros com mochilas sobre as costas.

 

“Esses aqui são vientes bons. Não são como esses outros que vem apenas para nos roubar. Esses estão a vir aqui, por causa do rubi e vão modernizar nossa terra. Por causa desse rubi, vamos ter luzes e escolas para os nossos filhos. Com esse rubi, vamos ter desenvolvimento aqui”!

 

Disse-me com voz firme Sheik Amisse, um velho muito influente na comunidade, apontando com a sua bengala para a vedação de arrame, onde estão esticadas dezenas de tendas no acampamento, que albergam os técnicos da empresa Montepuez Ruby Mining. As palavras de Sheikh Amisse, fazem -me pensar repetidamente, que parece que nada acontecia nesta cidade, até acontecer esta chegada dos “vientes” dos rubis”. Aprendi aqui, um novo código sobre esses estranhamentos e afectos de encontro com uma nova realidade: se existem vientes bons, é porque de certeza há vientes maus. O tempo de relacionamento em Montepuez me fez observar tais evidências, e falarei delas no momento próprio.

 

A questão é que a percepção de Sheikh Amisse sobre os vientes da empresa mineradora, não é regra de entendimento geral na comunidade. O que me importa aqui é contar as transformações sócio- culturais decorrentes das incidências de chegadas massivas de vientes e várias empresas, determinadas pela descoberta de enormes jazidas de rubis em Namanhumbir. Os efeitos imediatos dessas incidências são de natureza desestruturadoras-restruturadoras, prevendo-se a prazo, uma institucionalização de novos modos de integração social na comunidade.

 

A partir dessas histórias de encontros, lutas, estranhamentos e casamentos, resistências e adaptações, fiquei a pensar, em como conferir a esse drama, uma análise digna que me permitisse compreender esta confluência de sujeitos, coisas, línguas, corpos e chegada de máquinas em Montepuez. Conferir uma análise digna, significa em primeiro lugar, pensar sobre a questão da mobilidade e suas múltplas dimensões como elemento de construção do outro entre os nativos de Montepuez, que não se centrasse apenas como as várias experiências místicas vividas pelos pesquisadores no campo. Em segundo lugar, significa, pensar sobre as várias questões que se podem colocar: quem são os vientes que chegam? Como encontram os nativos e como se relacionam com eles? O que trazem das suas origens? Que problemas trazem os vientes para os nativos? Quais as soluções, os nativos encontram dos vientes? Como os nativos, resistem contra esta pressão de entrada massiva de vientes?

 

São essas questões que me levarão a contar as histórias com que Montepuez marcou o narrador. Uns dirão que é ficção e não estarão sempre certos. Outros dirão que é autobiografia e serão frequentemente enganados. (X)

terça-feira, 12 fevereiro 2019 08:45

Zandamela: a alma esvaíu-se

À memória de Jaimito Malhathini

 

Jaimito Malhathini, o célebre guitarrista moçambicano varado pela morte em Maputo onde deambulava como um vadio nos últimos dias da sua vida, é um dos mais importantes e belos átomos  de Zandamela, uma localidade do distrito de Zavala na província de Inhambane. Nasceu ali. Obviamente! Participou e deu tremendo vapor ao vertiginoso tema Wa lhanya de Salimo Mahamed, quando este ainda  chamava-se  Simião Mazuze. Mas não foi só essa passagem. Jaimito perfumou a um nível elevado o projecto Amanhecer, corporizado por uma panóplia de músicos de grande performance, nos finais da década de setenta. E depois disso o chopi achou que devia subir outra montanha. Subiu, ou tentou subir, tendo-se descoberto, porém, à posterior, que afinal aquele empreendimento era uma falésia. Escorregou até ao ponto onde a morte, cansada de esperar, acolheu-o para sempre.

 

Zandamela agora é uma mulher esquálida. Sáfara. Aqueles que conhecem  bem aquele vilarejo desde os tempos idos, ao passarem por ali actualmente, não deixam de notar, certamente, a ausência das colossais árvores (grevilhas) que nos chamavam à atenção pelo seu porte e alinhamento. Abateram-nas deixando o lugar nu. Completamente nu. Quer dizer, ao penetrarmos, escorrendo pela via nevráliga e inevitável, a sensação que nos fica é de que não passamos de lugar nenhum. Se este local fosse efectivamente uma mulher, diriamos que interiorizamos um corpo frio por demais.  Insípido. E por consequência não sentimos nada. Os seios e as coxas e a parte mais macia de Zandamela eram as grevilhas. Agora decepadas. Deixando todo aquele chão dos chopi sem essência.

 

Depois do alívio do espírito ao assitirmos ao orgasmo interminável que o rio Inharrime atinge no oceano Índico, com testemunho das espectaculares dunas ao longe, e o esplendor das Lagoas de Quissico, no longo percurso Inhambane-Maputo, o que nos restava eram as grevílias de Zandamela. Plantadas num pedaço de cerca de cem metros, formando uma espécie de túnel verde, onde os condutores redobravam a atenção. Era refrescante passar por ali. Ninguém falava durante aquele pequeno troço. As árvores é que falavam.

 

Hoje tudo aquilo parece um deserto. Os pequenos deuses daquele lugar vacilaram. Emigraram. Deixando a assombração daquilo que foi, nesse tempo derrubado, a loja provavelmente dos Dalsucos. Não sei bem. Sobrou ainda a notável casa do temido régulo Malhathini, plantada num pomar que teima em se manter para lembrar a história de um homem que só sossobrava perante outro homem chamado Mangujo. Parecia que tinham dito ao Mangujo o seguinte: se quiseres enfrentar um monstro, tens que ser um monstro. E este chopi irreverente fez isso. Tendo ficado, por conseguinte, nos compêndios de Zandamela como o único que mostrava o peito ao régulo.

 

Que pena! Ou seja, para além dessas lembranças , Zandamela já não tem nada. Já não tem as grevílias. E a pessoa que mandou deitar abaixo aquelas históricas árvores, devia saber que matou a alma dos chopes dali.

domingo, 10 fevereiro 2019 18:07

Caçadora

Rui Lamarques

Rita senta-se ao meu lado - à minha esquerda, para ser mais preciso. Não, não é um sonho, apesar de ela o ser. Esse pedaço de mulher está instalado por trás de uma mesa redonda com três homens que lhe satisfazem as vontades e os caprichos. É mais magra e mais alta do que aparenta sentada. O cabelo postiço oriundo da Índia, esticado num cabeleireiro no coração do populoso Maxaquene, e o baton vermelho compõem o visual desta sobrevivente da noite maputense, que guarda uma distância sem ser distante e que é difícil de situar entre o reservado, o tímido ou o longínquo. Enverga um curtíssimo vestido azul, justo na cintura, a evidenciar-lhe as partes intimas, em relação às quais os homens de Maputo largam esposas e filhos.

 

"Eu nunca trabalhei", diz para os homens que lhe cercam feito hienas. Rita detesta a ideia de uma vida formatada, cheia de regras e de coletes de forças. "Na verdade até trabalho, mas para dar prazer aos que me permitem viver folgadamente. Não pertenço à homem algum. Eu sou da noite", afirma.

 

Não só é da noite como é uma mulher sobre quem se pode dizer, sem faltar à verdade, que ganha mais do que três deputados juntos. Conhece, como ninguém, a fraqueza masculina. "Todos querem uma mulher com cérebro para salvaguardar o futuro da descendência, mas nenhum abdica de uns seios hirtos e uma bunda empinada quando o sol se esconde. É aí que eu saio para ser 'caçada'", diz ironicamente porque, na verdade, quem caça é ela. 

domingo, 10 fevereiro 2019 16:21

A morte da senhora do Atum

Mitemane acordou debaixo das águas. O seu relevo formado por reentrâncias e saliências não conseguiu engolir a fúria da maré que não cessou de expelir jatos e mais jatos de corrente. “É o dilúvio”. Dizem os pecadores. “Talvez, Deus está zangado com tantos ladrões que existem nestas terras do régulo Napuco”, acrescenta um pescador cujo barco acaba de atracar ao porto de areia fina.

Tothoro, um empresário da vila sede de Memba, envia a Mitemane o seu camião para ajudar a evacuar as pessoas que ainda beijam a areia abaixo da linha do mar numa relação de amor forçada pela emergência que não os deu tempo de tatear outras longitudes enquanto a água não exibia sua musculatura.

 

Palhotas da aldeia meio engolidas, ventos em rajadas, aguaceiros e trovoadas, o corpo da polícia costeira, lacustre e fluvial desdobra-se para que os pescadores do último barco do dia se fizessem a terra. “Tenta anexar a corrente de reboque meu inspector”, grita em agonia um guarda da polícia que havia ajudado a combater “os que não comem”, grupo de jovens ladrões que chegou a protagonizar assaltos históricos na cidade de Nampula. “Vamos todos ajudar, façam força” apela o inspector.

 

A embarcação da polícia era pequena em comparação ao último barco, um Bénéteau francês, muito diferente dos barcos de madeira empurrados a vela e vento que pululam por Mitemane. A embarcação tinha o seu título de propriedade registado em nome de uma grande empresa chamada Atusag, S.A, acrónimo de Atum Sagrado, Sociedade Anónima, uma firma cujo sucesso não atravessou a fronteira da promessa.  

 

Apesar de ter sido criada para pescar atum, os moradores estavam habituados a perder de vista os barcos da Atusag, S.A, pois a periodicidade de movimentação daquelas embarcações pelas águas da Baia de Memba era uma vez em cada três meses. Os populares das aldeias circunvizinhas a baia não tinham memória de ter visto um destes barcos carregado de “Naphome”, o nome que a ciência dos costumes locais dá a este marisco.

 

O que se sabe é que a Dra Alimina Mussagy, uma contabilista que serve como cobradora de taxas da capitania da baia, era uma das gestoras da Atusag, SA, uma empresa cujos sucessos eram anunciados pela rádio comunitária, sem que as comunidades locais matassem curiosidade de ver com seus próprios olhos, um só carregamento.

 

Num desses dias, a Atusag, S.A doou algumas caixas de peixe ao centro de saúde de Baixo Pinda, uma unidade que inala o ar de uma aldeia dormente há poucas milhas de Mitemane. A partir dessa doação, a Dra Alimina passou a ostentar o título: “a senhora do atum”. 

 

“Engata mais um arrame e diz para o Sargento Amede ligar o motor do nosso barco, porque temos de fazer de tudo para tirar esse Bénéteau daqui”, ordena o inspector ao guarda à sua direita.

 

- Temos um homem a naufragar inpector!

 

- Sargento a nossa prioridade agora é resgatar aquele barco que está prestes a naufragar, depois vamos conferir as baixas

 

- Mas como podemos ter uma operação sem a certeza que o batalhão está em forma, meu inspector?

 

- Cala-te seu filho da Puta. És sargento e me deves obediência. Lembre-se que qualquer tentativa de indisciplina, serei implacável e te vou punir – diz o inspector aos berros já sedento de saliva que engula o desespero de apresentar um relatório que desagrade as ordens superiores.

 

Os pescadores de Mitemane haviam já subido as zonas altas de onde apreciavam o cenário nas calmas. E porque desocupação faz pensar para além do permitido, as questões não paravam de desembarcar em seus cérebros, sendo uma delas, as reais motivações dos agentes da polícia costeira, lacustre e fluvial a tudo fazer para salvar um barco já náufrago.

 

Muitos não conseguiam perceber, uma vez que sempre que se registam naufrágios, os próprios guardas desaconselham qualquer acção de salvamento, alegadamente com o intuito de salvaguardar que mais vidas não sejam perdidas. Mas desta vez assistiu-se o contrário, não se importaram em ver polícias perdendo uma ou duas das suas sete vidas.

 

- Já estamos a conseguir inspector – grita o sargento visivelmente emocionado ao sentir o Bénéteau da Atusag, SA em movimento.

 

- Oh rapazes! Vós sabeis que estamos preparados para estancar qualquer acção de tentativa de alteração da ordem e tranquilidade pública.

 

- Claro meu inspector, mas ainda não localizamos “os desconhecidos” – recorda o sargento Amede.

 

De repente um místico de silêncio e pavor abate aos agentes da polícia e aos populares de Mitemane que do alto alimentam a sua apetitosa curiosidade ao dirigirem os olhos a um corpo que flutua sobre as águas salgadas.

 

- Sargento será que estou a ver mal? É um corpo?

 

- Sim meu inspector. Que triste.

 

- Consegues reconhecer antes mesmo de chegar ao laboratório do SERNIC?*

 

- Sim. É a Dra Alimina Mussagy.

 

- A senhora do atum?

 

O inspector responde assertivamente e recomenda a sua equipa a continuar com a operação de busca e salvamento com a crença de que o Bénéteau francês pode ainda reservar outras pessoas que resistem a fúria das águas salgadas de Mitemane em levá-las para o outro lado do mar.

 

*SERNIC – acrónimo de Serviço Nacional de Investigação Criminal