Director: Marcelo Mosse

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Carta de Opinião

O que procurava eu entre as terras de solo encarnado de Namanhumbir? Não é por acaso que se criam afectos com o campo de pesquisa. Estas coisas constroem-se devagar e silenciosamente. Lembro-me dos restaurantes Bissmilah dos somalis, da mesa cheia de lupas dos tailandeses intermediários da venda informal de pedras preciosas, do amigo que me ouvia e explicava os novos valores e códigos dos nativos, até da marca de cerveja tanzaniana, que acompanharam a decisão de escrever estas experiências de trabalho de campo, que decidi chamar de outras verdades sobrehistórias de vida e luta pela terra das gentes de Namanhumbir.

 

De baixo de uma sombra reflectida por um largo caule de embondeiro, em época de verão, embora com chuvas intermitentes, as temperaturas são tão altas que chegam a ensopar a camisa. Acabava de retornar a Montepuez, para as minhas férias do natal e final do ano. Minha experiência de convívio com os nativos de Montepuez, me faz lembrar das festas do mwali que acontecem nesta época do ano. Decidi arrumar uma pequena mochila, e saí em direcção à estação de chapa 100, para iniciar uma viagem até o Posto Administrativo de Namanhumbir.

 

Entrei no chapa, e fui me sentar no último banco, onde já estavam mais 3 homens. Alguns minutos depois, foram entrando vários outros passageiros, e a dado momento, o cobrador deu ordem ao motorista que o chapa estava cheio, e por isso, podíamos iniciar a viagem. Suspirei de alívio, porque com o calor que se fazia sentir naquela manhã, num carro sem ar-condicionado, vinham-me lembranças de tantas outras vezes, que tive de esperar dentro do mini-bus mais de uma hora, até que ele tivesse um número suficiente de passageiros para partir.

 

O teor das conversas dentro do minibusaté entre desconhecidos, jovens e velhos, homens e mulheres, continua o mesmo que ouvia, desde o primeiro momento que desembarquei em Montepuez em 2012: os rubis de Namanhumbir. Nem todos são garimpeiros ou dependam da actividade mineira. Mas o rubi, toca de todas as formas com as suas vidas. A exploração dessamilagrosa pedra, aumentou o número de pessoas com poder de compra, então os preços de produtos de primeira necessidade subiram quase de noite para o dia. - “Até o leite infantil subiu o preço”,comentavam duas senhoras sentadas no banco à minha frente.

 

Montepuez foi em tempos, um dos maiores produtores algodão (o chamado ouro branco) durante o império colonial português). Essa produção, continua sendo feita até hoje pela empresa Plexus Lda. Contudo, hoje o nome de Montepuez, só tem sentido quando se liga aos rubis, essas milagrosas pedras. Aliás, me dizem vários jovens, que foram trabalhadores da empresa algodoeira, e rescindiram seus contratos para ir trabalhar no garimpo, porque estavam cansados de “depender do fim do mês”. Uma frase que expressa não apenas a contagem de tempo para receber um salário, mas também, a imponência de aliar-se a outras formas de rendimentos, pois “depende do fim do mês”, aquele que trabalha para uma empresa, tem um chefe, um horário de entrada e saída estipulados num contracto a ser cumprido com rigor. O imediatismo em ganhos monetários que o garimpo de rubis propicia, faz que muitos jovens abandonem empresas e passem a dedicar-se em actividades que não tenham estas obrigações laborais de dependência e hierarquizadas.

 

Novas histórias para mim, saem pela boca dos passageiros ao meu lado. Contam-se novidades sobre o actual cenário de exploração artesanal do rubi. Falam sobre a actual e rigorosa protecção da área de exploração da Empresa Montepuez Ruby Mining Lda. Ouço novidades dos garimpeiros presos e outros mortos pela Unidade de Intervenção Rápida, quando apanhados em áreas em áreas concessionadas a empresa mineradora.

 

Enquanto o motorista iniciava a marcha, fazendo manobras ainda no interior da Estação de Transportes de Montepuez, pergunta ao seu cobrador, de quem era a mochila que estava no banco de frente ao seu lado, visto que ninguém estava lá sentado.

 

-“É daquele viente da Padaria. Disse que ia comprar umas coisas no mercado, e que podemos passar levá-lo em frente à sua Padaria, estará lá a nossa espera”, disse o cobrador com tom negociador ao seu motorista.

 

Pensamentos curiosos avivavam na minha mente: como é possível, um passageiro de alto nível de confiança, que exige que o transporte público, carregado com outros mais de quinze passageiros, passe o levar na sua padaria, é apenas categorizado pelo termo “viente” não pode ser chamado pelo próprio nome?

 

Embora com vontade de questionar, saber mais das histórias que ouvia, lembrei-me da metodológica advertência que o mestre Pierre Clastres enunciava em “Crônicas dos índios Guayaki”: “nada pode substituir a observação directa: nem questionário por mais preciso que seja, nem narrativa de informante qualquer que seja sua fidelidade. Pois é frequentemente sob a inocência de um gesto semi-esboçado, de uma palavra subitamente dita, que se dissimula a singularidade fugitiva do sentido, que se abriga a luz onde o todo resto se aviva”. Então, decido mesmo permanecer em silêncio, e seguir a viagem entre nativos e “vientes” de Namanhumbir (X).

A estupidificação do indivíduo, defino-a como sendo a acção de amedrontamento seja físico, psicológico, económico ou social, ou a mera privação de informação e educação adequada, com vista a torná-lo passivo, inerte, acomodado, conformado com a situação vigente, portador de uma visão limitada, impossibilitando-o de uma acção crítica, o que torna o detentor do poder (de uma instituição, empresa, partido ou governo) numa figura inquestionável.

 

Basicamente, é isto que aconteceu, em Moçambique. Sociólogos e antropólogos poderão fundamentar melhor que eu a forma como o sistema de educação foi manietado. Como o “Partidão” usou do seu poder (absoluto) para controlar os media (públicos e privados). Como acções de terror (espancamentos, homicídios, raptos, desaparecimentos) foram orquestrados como medidas de travagem de qualquer onda de revolta. Como pessoas e funcionários foram perseguidos, destituídos, privados de trabalhar, etc. como forma de mostrar pujança e “ordem” e mandar recados aos “próximos atrevidos”. Verdade é que, a situação social, política e económica, os casos escandalosos das dívidas, a arrogância das instituições de justiça, a passividade do “Patrão do Povo”, o caso Cabo Delgado, etc., eram já, por demais, suficientes para que o Povo se rebelasse. Num “País Normal” este governo já teria “caído” ou, as coisas já estariam nos carris, caso o executivo não reagisse satisfazendo as exigências dos donos de Moçambique: O Povo. Mas, no cômputo geral, esse povo, é dzanwanwa; é Estúpido e Medroso. Eu mesmo sou um fraco, medroso e estúpido. Daqueles que só se limita a escrever, mas… pegar numa bandeira branca e marchar pela liberdade, que é bom, não faço. 

 

Ufff… até parece que estava a debruçar-me sobre outro assunto que não fosse a situação actual da RENAMO. Só pareceu... É mesmo da RENAMO... Daquele Partido que foi vilipendiado pelas “massas esclarecidas” sitiadas nas zonas urbanas, aquando da sua chegada em 1994 para as primeiras eleições gerais. A RENAMO que, eu mesmo, odiei por ser “o espelho” do terrorismo que nem o colono Português ousou ser. A RENAMO que, gradualmente, foi ganhando espaço, simpatias, apoiantes, membros de peso, gente de “nome”. O tal que passou a ser a Voz do Povo, pois, afinal, os rasteiradores da democracia, do desenvolvimento do País, de uma sociedade igualitária, os saqueadores do bem comum para fins próprios, os assassinos e os parte-pernas não estavam longe não, estavam naquele prédio branco e alto. Foi por isso que a morte do Afonso Dhlakama significou um revés enorme, pois se fora um destemido. Morrera um NÃO ESTÚPIDO. Jazeu aquele que as mortes ao seu lado, as balas falhadas, as ameaças, as armadilhas frustradas, as privações sócio-económicas não o intimidaram… É esta RENAMO que se conhece hoje, mas parece que, com a morte do “Rirder” (kkkk), tudo se transformou… Não acredito nisso… Não se transformou não!

 

Uma onda popular, tem estado a tentar passar uma imagem de uma desconfiguração. Pegam no caso da “contenda” política na Beira como exemplo de que a RENAMO é o partido imediatamente “eleitorável” a seguir à FRELIMO, porém, pela sua aparente e recorrente inconsistência, poderá nunca atingir o controlo do País por via do voto. Tenho lido muito sobre isto. Bocas de analistas. Parangonas de jornais. Todos eles dizendo que a RENAMO, dá a si mesma “um tiro no próprio pé”. Que a RENAMO demora a se organizar. Que tarda a amadurecer e mostrar coesão, unidade e esclarecimento político-partidário de modo a tornar-se confiável como timoneiro do País.

 

A minha tese é que a RENAMO ESTÁ BEM. Estes “levantamentos” com cara de insubordinação. Estas poeiras políticas entre membros na Beira (aonde desajustam-se por não se acordar entre NOMEAÇÃO E ELEIÇÃO), não revelam desorganização, inexistência de ordem, nem significam enfraquecimento do timoneiro. Muiiiiiiiiiiito pelo contrário. Revelam naturalidade. Espontaneidade. Revelam a ausência de aura de medo entre pessoas, a tal que se impregnou em todo o país e, tornou este Povo em “mortos vivos”. Na RENAMO as pessoas discutem livre e abertamente. Se um membro não concorda com o outro, ou mesmo com a ordem do superior, ele indaga e, se não houver resposta cabal, se rebela. ISSO É DESORGANIZAÇÃO? Faxavore… 

 

Estamos num País aonde “és morto por ter e por não ter cão”. Estes mesmos analistas que hoje perguntam “como foi possível que ninguém dissesse algo ou travasse o Exalta-A-Dor da Pátria de fazer tamanhos desmandos, ao ponto de pôr o País neste descalabro político e económico”, são hoje, os mesmos que querem que na RENAMO figure a aura de YES MEN. Ossufo Momade pode escamotear os estatutos (só porque assim fazia Dhlakama) e os restantes devem “obedecer” de modo a mostrar para Moçambique que ELES SÃO ORGANIZADOS? Que eles são eleitoráveis? Que existe respeito pela hierarquia? F*dam-se! (Sorry, mas mete nojo e vómito essa mentalidade POBRE – in: SV). Quer dizer, temos um partido aonde, finalmente, existe diálogo. Aonde não há figuras incontestáveis e supra-poderosas. Aonde a democracia vive-se de facto e não há dois irmãos mandões. Aonde os filhos do chefe não entram e comem milhões de galinhas sob olhar sereno e impávidos dos outros. Aonde os que “deram o primeiro tiro” não são omnipotentes e, NÓS ODIÁMOS ISSO? Será que, nas vossas casas vocês por serem chefes de família podem mandar o filho tomar petróleo e ele deve obedecer? Se seu filho é alérgico a carne de quatro patas, você não faz um molho diferenciado para ele, pois isso iria mostrar fraqueza do seu lado? AFINAL, O QUE É QUE HÁ? O QUE É QUE HÁ NESTE PAÍS (in: João Plenário - SBT)?

 

Estamos, assim tão estupidificados que só queremos mudar de nome de partido no poder, mas não queremos mudar de ideologia, pensamento e filosofia? Bando de estúpidos é o que somos, pois estaríamos a “mudar para o mesmo”. Trocaríamos de gatunos por gatunos. Muito oportuno isto, nas vésperas das eleições, já começámos a levantar defeitos da RENAMO para, no fim, justificar que “voltámos a votar na FRELIMO porque é um mal menor”... somos medrosos… 

 

Meus caros, Democracia é chamar “Ossufo de violador de estatutos sim” e ele tem aceitar essas “bocas” naturalmente e, a seguir, tomar decisões concertantes, que resolvam o problema, mas não escamoteiem os mesmos estatutos. Líderes, num sistema democráticos, não são mandões, vociferadores e omnipotentes. Ossufo não pode querer (e as pessoas também) liderar o Partido ao jeito antigo. Dhlakama foi Dhlakama. Ossufo é Ossufo. Terá de encontrar o seu estilo e seu método e, esta transformação de um líder para o outro acontece, irremediavelmente, com essas “guerrinhas”. É normal. Isso chancela a verdadeira instituição democrática. E recuar numa decisão não é covardia ou fraqueza, É SABEDORIA… Os renamistas não devem ter medo ou vergonha disso. Devem orgulhar-se…

 

Repito para finalizar: A RENAMO ESTÁ BEM E RECOMENDA-SE… É esta a postura de um executivo que eu sonho que o meu País tenha. Abertura. Frontalidade. Destemidos. Debate aberto e franco. Aonde existem membros que assaltam a sede sim (na França os coletes amarelos fizeram pior e nem por isso o País entrou em crise, mas sim melhorou porque o líder agiu de forma concertada, mesmo que não gostasse da decisão que tomava - lá as manifestações não são um Tabu, na RENAMO também). É esta a proposta de Governo que a RENAMO está a trazer: uma Contra-Estupidificação! 

 

Acho que nós merecemos isso!

Procurando definir o “Desempenho Social”,  Kemp e Owen (2019:i) destacam que  “trabalho comunitário e desempenho social é definido como sendo a interacção, actividades, comportamentos e resultados da companhia em respeito a comunidade local. O desempenho social é suportado por sistemas, informação e capacidades que estão alinhadas com os padrões internacionais e acordos localmente negociados e cometimentos, com  objectivo de evitar ferir às pessoas e assegurar uma operação estável dentro da qual  comunidades e famílias podem prosperar”.

 

Nas últimas décadas Moçambique conheceu registou desenvolvimentos significativos no sector de petróleo e gás, como resultado das descobertas de elevadas reservas de gás natural na província nortenha de Cabo Delgado. As descobertas dos hidrocarbonetos foi confirmada por reputadas multinacionais, e neste momento algumas aguardam a Decisão Final de Investimento, tendo até iniciado a assinatura de chorudos contratos de venda do gás natural maioritariamente para o mercado asiático.

 

 O Estado moçambicano, para além do seu papel de regulador, também é detentor de participações nestes projectos. Um sentimento de esperança e progresso foi renovado pelos cidadãos nacionais (ainda que timidamente) como resultado das descobertas dos recursos naturais. Mas ao nível do desempenho social muito há por fazer, considerando o caso problemático da experiência da mineração em Tete. Olhando para o sector de gás, é inegável o impacto positivo até certo nível no concernente à alteração da dinâmica social e económica nas cidades de Pemba e distritos abrangidos pelos projectos. Com efeito, os recentes ataques à comitiva da Anadarko serve como pretexto para a presente reflexão, não significando necessariamente que esta empresa não possui Licença Social para operar.

 

A questão dos recorrentes ataques protagonizados pelos insurgentes influenciará sobremaneira a habilidade das multinacionais que operam no sector de gás, de estabelecer e manter licença social social para operar. As comunidades locais irão sempre associar a violência que se vive em Cabo Delgado ao advento da indústria extractiva. Mais do que esperar pelo Governo e proteger os seus funcionários, as multinacionais deveriam ser mais proactivas no engajamento em busca das soluções para estancar a violência - se é que na verdade realmente lhes interessa, dado o facto de em  muitos países a exploração de recursos naturais se efectuar em contextos de complacência com a  violência extrema.Citamos como exemplos casos historicamente conhecidos como o do Sudão, Nigéria, Iraque, Líbia, RDC, Libéria, Angola, entre muitos outros.

 

Cabe a Moçambique escolher a rota que quer seguir, evitando a maldição dos recursos. A prevalência da violência irá condicionar a avaliação positiva dos projectos no sector de gás. Por muitos contratos milionários que sejam assinados  e infraestruturas imponentes erguidas, enquanto prevalecer a violência e pobreza extrema as companhias não terão facilmente licença social para operar. Cabo Delgado tem a particularidade de também acolher significativos projectos na área de mineração, destacando-se Gemstones (Pedras preciosas), grafite, mármore, etc. Infelizmente quando mal geridos os impactos sociais cumulativos da mineração e desenvolvimento do sector de gás serão nefastos, se não forem acompanhados de uma efectiva governação do sector e observância das leis nacionais e padrões internacionais atinentes ao desempenho social e sustentabilidade por parte das companhias multinacionais.

segunda-feira, 25 fevereiro 2019 06:40

Na enfermaria de oncologia

A mulher sentada nesta cama à minha frente deve andar nos quarenta. Ou pouco mais. Se não fosse todo o crepúsculo do entardecer que a habita, diria que está no auge. Da vida. Mas tudo leva-me a acreditar que os dias que a esperam serão ainda mais dolorosos. Quer dizer, naquilo que eu imagino e sinto, ela pode estar a viver numa sombra gelada. Pensando que só Deus é que pode reverter toda a situação dramática que enfrenta.  É isso: já não resta nada no seu corpo.

 

Está sentada com o travesseiro a suportar as costas. O lençol serve apenas para cobrir os quadris porque a partir dali para baixo não tem nada. Ou seja, as coxas e as pernas foram amputadas. O braço direito foi removido inteiro pelos malditos serrotes cirúrgicos, e o outro braço que resta está engessado, na iminência de ser cortado para eliminar  a derradeira esperança. E eu faço um tremendo esforço para não chorar. Porém, notando ela  a minha forte comoção diz-me assim: amor, chora à vontade, vai-te fazer bem.

 

Ainda não consegui arvorar outra paralvra para além do supérfluo e estúpido “como vai, Joana?!”  Sinto-me dominado. Arrasado. Apanhado numa rede de emalhar da qual jamais sairei. Mas ela parece superior ao seu próprio sofrimento. À minha fraqueza. Joana é mais forte que eu. O rosto dela, brilhante,  parece o anúncio do amanhecer. As palavras que saem da sua boca vêm directamente do coração, como agora que me olha nos olhos e diz: não te preocupes, amor, tudo isto vai passar como os ventos que sopram e passam.

 

Lá fora está a chover, e esta mulher não vai poder assistir ao belo espectáculo da queda pluviométrica. Pior do que isso, não sabe como serão os dias que a esperam depois de sair de uma enfemaria que pode ser das mais desesperadas do hospital. Mas ela não desespera. Diz-me que ainda vai a tempo de ser como Óscar Pistorius, que ganhou medalhas correndo com próteses de carbono. “Eu vou me levantar daqui, amor. Aguarda-me”.

 

O que mete medo nesta mulher é o brilho do rosto. Dos olhos. É o sorriso permanente. Que demolem  por completo o sofrimento de um corpo que a partir de agora vai servir para muito pouco. Para quase nada. Joana desmente tudo isso. A leveza imposta na firmeza das palavras que lhe saem do coração pela via da boca, deixam exposta uma mulher que ainda sonha em voar. Sem asas. Decepadas para sempre.

 

A única mão que lhe resta naquele braço engessado parece de uma criança. É leve como pluma.  As unhas, lindas, estão cuidadosamente cortadas, mas ela diz, sorrindo, que daqui a pouco esta mão também vai ser serrada juntamente com o braço e atirados ao forno para  incineração, como se fazia naquele tempo com os ramos de oliva que não produziam. Eram cortados e queimados. E os membros da Joana já não dão frutos.

Na literatura sobre o que chamamos de “democracia” há um (antigo e divergente) debate sobre o que este termo representa, sobretudo, num momento em que nota-se algum descrédito sobre a “política formal”, que era vista até antes da eclosão de “novas” formas de participação política galvanizadas pelas redes sociais da Internet, em coexistência com a exercida por instituições como partidos políticos e sindicatos, sendo que a face mais marcante revela-se pelos baixos níveis de participação em eleições e consequente elevar das abstenções (Dahlgren, 2009; Van Reybrouck, 2016). Igualmente, regista-se falta de consenso sobre que critérios usar para classificar se um determinado país é ou não democrático. Como forma de minimizar este facto, surgiram termos classificatórios como “democracias eleitorais” – que designa todos os países que, a partir da realização de eleições regulares, julgam-se na qualidade de outorgar-se o nome de “democráticos” (Hermet, 1997).

 

No entanto, sem alongar-me num “bula-bula” meramente teórico-conceptual, quero aqui partilhar por que razões penso ser problemática, mas, ao mesmo tempo, oportuna a última intervenção da CNE.

 

Como nota de rodapé, cabe dizer que um dos maiores empecilhos sobre a gestão e administração das eleições no mundo prende-se justamente com a logística e transparência das contas. Aliás, num passado recente a França viveu um escândalo que envolvia o então Presidente da República, Nicolas Sarkozy, que fora acusado de ter recebido dinheiro ilícito por parte do Governo Líbio para sustentar a sua campanha eleitoral em 2007. Nos Estados Unidos, país tido como exemplo de “democracia e transparência”, o debate não foi diferente sobre as eleições de 2016 que elegeram Donald Trump como Presidente. Ainda ontem (17) lia uma nota que dava conta da investigação das finanças usadas durante as eleições de 2018 no Brasil.

 

Registamos, igualmente, que um pouco por vários países de África a questão das finanças em eleições é recorrentemente colocada, sendo que Moçambique não seria excepção (Gazibo e Thiriot, 2009; IDEA, 2014). Note-se, ainda, que a forma como os nossos partidos financiam as suas campanhas em tempo de eleições revela-se problemática, dado que existe um total “deixa andar” sobre a fonte dos recursos, o que pode revelar uma total desigualdade de concorrência quando existem aqueles que possuem maior musculatura financeira que os outros, sobretudo, quando recorre-se ao ‘‘political settlement’’(Weimer, B. et al, 2012) como forma de sobrevivência, o que, em última instância, abre espaço para recorrência a formas pouco claras de financiamento. Recordo que no climax das eleições gerais de 2014, o Jornal Savana escrevera no seu editorial o seguinte: “(...) a profusão de oferendas, a pretexto de caridade e militância, decorre da percepção dos doadores de que uma oferta a um partido e seu candidato com potencial de vencer as eleições é meio caminho andado para um futuro menos espinhoso em termos de acesso a negócios’’.

 

Não há concordância do ponto de vista teórico sobre qual seria o melhor modelo para o financiamento em eleições, mas penso ser urgente que se comece a discutir estas questões com mais acuidade e com estudos aprofundados para dar-nos melhor interpretação sobre os bastidores do financiamento dos partidos políticos em Moçambique, mesmo reconhecendo que, entre as eleições autárquicas e gerais, existam modalidades diferentes, onde numa exige-se o auto-financiamento e noutro existe co-participação do Estado para a realização da campanha eleitoral.

 

Voltando ao título que faz jus para esse comentário, levanto a questão da transparência por dois elementos interligados entre si:

 

O primeiro elemento é facto de não haver clareza entre o que foi dito em Setembro do ano passado em sede do Conselho de Ministros e o que viria a ser alterado pelas declarações do Ministro da Economia e Finanças, Adriano Maleiane, em Novembro do mesmo ano. Sucede que no dia 11 de Setembro de 2018, o porta-voz da 29ª Sessão Ordinária do Conselho de Ministros, Augusto Fernando, disse à imprensa que as eleições gerais de 2019 estavam orçadas em 6.6 biliões de meticais, dos quais foram avalizados 6.5 biliões de meticais que constam do Orçamento do Estado. Porém, como veio a ser confirmado pelo porta-voz da CNE, Paulo Cuinica, os números não seguramente esses, tendo praticamente multiplicado por dois o valor inicialmente divulgado. Penso, salvo melhor explicação, que torna-se urgente e oportuna a clarificação das contas sobre o processo financeiro que vai conduzir as eleições do presente ano, pois ficou-se com a impressão de se ter inscrito um valor no Orçamento, sem a devida explicação que para além daquele haveria necessidade de um acréscimo a ser mobilizado em outras fontes de financiamento. Aliás, num momento em que somos vistos como leprosos no recebimento de empréstimos e/ou apoios pela ‘’mão externa’’, seria oportuno a lisura do processo em torno das sextas eleições gerais no país.

 

Segundo, penso que essa é uma oportunidade para não só sabermos que a CNE está sem verbas suficientes para as eleições, mas igualmente para, de uma vez por todas, conhecermos as contas daquela entidade (desde as primeiras eleições). Sucede, pois, que passados mais de 20 anos após as ‘’eleições fundadoras’’ em Moçambique (1994), nada sabemos ao detalhe sobre as contas daquela que é a principal entidade da gestão e administração de eleições em Moçambique. A revelação dos gastos em forma de relatórios para consulta pública por parte da CNE, não só seria um acto que promoveria a transparência e monitoria eleitorais, mas também daria exemplo para os partidos políticos que, até que se prove o contrário, a justificação ou demostração dos gastos em momentos eleitorais por estes realizados se não é deficitária é mesmo inexistente.

 

Referências

 

 

Dahlgren, P. (2009) Media and Political engagement. Citizens. Communication and Democracy. Cambridge: Cambridge University Press.

 

Falguera, E. et al. (2014). Funding of Political Parties and Election Campaigns: A Handbook on Political Finance. IDEA.

 

Gazibo, M., e Thiriot, C. (2009). Le politique en Afrique. État des débats et pistes de recherche. Karthala. Paris.

 

Hermet, G. (1997). De la démocratie électorale à la démocratie sociale. Paris: Flammarion (programme ReLIRE).

 

Jornal Observador (08 de Novembro 2018). Eleições gerais do próximo ano em Moçambique vão custar 214 milhões de euros.

 

Jornal Observador (11 de Setembro 2018). Eleições gerais de 2019 em Moçambique estão orçadas em 92 milhões de euros.

 

Jornal SAVANA (2014). Editorial – Urgente regulação do financiamento eleitoral.

 

Van Reybrouck, D. (2016). Against elections. Bodley Head. London.

 

Weimer, B., Macuane, J., & Buur, L. (2012). A Economia do Political Settlement em Moçambique: Contexto e Implicações da Descentralização. In B. Weimer (Ed.), Mocambique: Descentralizar o Centralismo: Economia politica, Recursos E Resultados (pp. 31-75). Maputo: Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE).

segunda-feira, 18 fevereiro 2019 06:17

Ajudante de camião de longo curso

A história que vou-te contar vem de dentro de mim. Das minhas memórias tristes. Da vida rastejante que não me larga, e das derrotas acumuladas perante a minha incapacidade de correr ao encontro da luz, como fazia, nos seus tempos de glória,  O.J. Simpson, um dos mais importantes jogadores de râguebi norte-americano do seu tempo.  Sempre pensei que a culpa de todo este sofrimento imparável fosse do meu pai, mas graças a Deus ainda fui a tempo de perceber que não. Quer dizer, ele vai ser absolvido de todas as minhas acusações.

 

Meu pai era um bêbado e fumador inveterado. Isso é verdade. Cresci partilhando com ele o mesmo tecto, inalando desde criança os odores da cachaça e do fumo e do próprio cheiro do seu corpo negligenciado. Desmazelado. Aprendi dele a beber e a fumar. A ser negligenciado e desmazelado. Também. Mas há uma coisa muito importante que deixou comigo: a lealidade. E a fé de que amanhã o sol vai nascer outra vez. Isso é que me orienta.

 

Hoje sou ajudante de camião de longo-curso. Nunca aprendi a fazer nada na vida, senão beber e fumar. E o preço que pago é este: vou sucumbindo em cada viagem. Pendurado por de cima da mercadoria em viagens de não acabar. Mas o que me dói mais é que sigo para frente de costas. Vejo as coisas depois de passar. Nas noites pareço um pássaro de mau agoiro cheio de medo perante os holofotes dos carros que nos ultrapassam. O frio arrasa-me. A chuva festeja por sobre o meu lombo. E não posso fazer nada, senão encolher o corpo para dentro de mim, temendo interminavelmente o pior.

 

Apesar de tudo isto que passo cá fora, lá dentro, na cabina confortável deste Frethline, o condutor está sozinho. Gozando. Sabe que nesta zona de Catandica, onde se ergue aquela linda cordilheira  como linha de fronteira entre Moçambique e Zimbabwe, faz muito frio. Para além disso está a chover. Mesmo assim está pouco se lixando. Ele dança com a alma a música dos limpa-pára-brisas, enquanto cá em cima eu é que sou o pára-brisas de mim mesmo. As minhas costas é que são a muralha de um esqueleto que está a vacilar.

 

Nestas viagens passamos frequentemente pelos controis da Polícia, sem que no entanto os agentes da autoridade obriguem o condutor a levar-me lá dentro. E essa dor toda faz-me lembrar o meu pai que morreu na sargeta. Bolas! Eu também vou morrer na sargeta, como o meu pai. Não tenho nada. Nem mulher. Nem filhos. A casa onde vivo é um buraco imundo. É pior que este cadafalso onde sobrevivo. Onde vou sendo executado devagar. O que castiga a minha alma é que estamos no mesmo carro, eu e o condutor, mas ele é um menino privilegiado. E eu um sabujo qualquer. Sem direito à entrar na cabine, mesmo quando está a chover. Mesmo quando o frio é de enregelar.

 

Apetece-me chamar sacana a este indivíduo que vai ao volante do “nosso” Frethline, mas na verdade eu é que sou inútil. Sou obrigado a suportar a ignomínia de dormir debaixo do camião, enquanto ele festeja com putas e bebida na cabine, num lugar qualquer onde lhe apetece estacionar. E depois de tudo, de madrugada, cara sem vergonha, ainda me pergunta se está tudo bem. Pior, manda-me procurar água para ele se lavar. E eu faço tudo isso curvado como uma besta.

 

Porventura haverá algum camionista que não seja sacana? Todos eles o são, excepto pouquíssimas excepções. Repare bem: quase todos eles são baixinhos. E homem baixinho só tem duas alternativas: ou é um bom bailarino, ou um sacana.