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Carta de Opinião

quarta-feira, 22 maio 2019 07:12

Matando Afonso Dhlakama pela segunda vez

Sobre DDR – Desarmamento, desmobilização e reintegração e o que mais se pode dizer acerca dele para salvar a segunda morte de Dhlakama.

 

Por: Egídio Vaz

 

Neste pequeno texto, aponto uma série de iniciativas com potencial de desbloquearem o embaraço em que nos encontramos. Uma iniciativa que pode ser levada a cabo pelo General Ossufo Momade, Presidente da Renamo; outra iniciativa que pode ser levada a cabo pelo Grupo de Contacto e ainda outra, que pode ser levada a cabo pelos 10 nomes (via rápida) e ainda outra de mobilização popular.

 

Ao que tudo indica, parece que o processo de desarmamento, desmobilização e reintegração das forças residuais da Renamo chegou a um impasse. Desde que há um mês a Renamo submeteu a lista de seus homens para integração na Polícia como núcleo inicial, o governo não reagiu. Aliás, reagiu, afirmando  que não tinha “a moral suficiente para incluir os homens já na reserva e outros na reforma ou desmobilizados, em detrimento daqueles que se encontram ainda nas fileiras da Renamo, aqueles pelo qual o diálogo com o falecido Dhlakama visava abranger” – palavras do Presidente Filipe Jacinto Nyusi, Presidente da República de Moçambique. “Os que fazem parte da lista já estiveram nas Forças Armadas de Defesa de Moçambique, uns passaram à reserva com subsídios de integração atribuídos e auferem salários ou pensões como outros seus colegas que são da proveniência do Governo”, Presidente Filipe Nyusi.

 

Aqui, dois aspectos realçam. Primeiro aspecto, o Presidente da República deixa muito claro que as pessoas pelo qual o diálogo com o falecido Dhlakama visava abranger não são os dez sugeridos pela nova liderança da Renamo, nomeadamente: Major-general Arlindo Maquivale

 

  1. Brigadeiro José Acácio
  2. Coronel Dionísio Saiene  
  3. Tenente-coronel Horácio Cavalete
  4. Tenente-coronel Jussa Hussene Jó
  5. Tenente-coronel Lindo dos Santos José
  6. Tenente-coronel José Fernando Armando
  7. Major Augusta Marimira
  8. Major Flora Mário de Barros
  9. Coronel Lakcen Laina

Essa declaração, tem dois suportes. O primeiro é de que todas conversas entre o falecido Presidente da Renamo e Presidente da República foram gravadas e, havendo necessidade, podem ser divulgadas. Nelas, o sentido de nomear representantes para a Polícia está claro bem como os nomes avançados ou no mínimo, a natureza dos indivíduos que deveriam fazer parte da lista inicial. O segundo suporte é o facto de a nova liderança da Renamo ter jurado de pés juntos não contrariar o rumo dos consensos alcançados entre o Presidente Nyusi e falecido Afonso Dhlakama. Para ser claro, a nova liderança da Renamo jurou não TRAIR a memória e legado de Afonso Dhlakama. Ora, felizmente, e pelo menos ao nível teórico, quem neste momento não está a trair a memória de Dhlakama é o Presidente Nyusi, ao recusar aceitar a integração de pessoas que não preenchem nem os requisitos formais muito menos os quesitos etários para os postos a que se propõem. Pior, nem eram essas, as pessoas pelo qual o diálogo com o falecido Dhlakama visava abranger.

 

Alegra-me, no entanto, constatar que sobre este ponto, nem a própria Renamo contesta ou desmente. O seu principal Porta-voz, Dr. José Manteigas apenas cinge-se em afirmar que à luz do Memorando de Entendimento, é prerrogativa da Renamo indicar os seus homens. Sem querer lhe desmentir ou retirar o mérito, julgo que SIM, a prerrogativa é da Renamo, mas ela DEVE conformar-se com o espírito e a letra dos termos do Memorando do Entendimento bem como o grupo-alvo sobre o qual o diálogo com o falecido Dhlakama visava abranger. Seguramente e a todos pontos de vista, não é esse grupo sobre o qual o diálogo com o falecido Dhlakama visava abranger.

 

Ora, que fazer para evitar a segunda morte de Afonso Dhlakama?

 

Essencialmente sugiro três iniciativas:

 

PRIMEIRA

 

O Presidente da Renamo deve compreender que neste momento está sendo alvo de manipulação por parte de alguns caudilhos de guerra instalados em Maputo, que tiram benefício da sua ausência física para continuar a debochar o seu próprio partido e a carcomer o poder de liderança DO SEU Presidente, Ossufo Momade. Fizeram o mesmo com falecido Dhlakama, encorajando-o a viver longe da família, sozinho e rodeado pelos mesmos homens cujas oportunidades de reinserção e enquadramento são hoje desviadas em benefício dos reformados e reservistas, situação juridicamente incompatível com qualquer possibilidade de reintegração pelo facto de estes já fazerem parte do Estado; reformados ou reservistas.

 

Efectivamente, o Genral Ossufo Momade não é o único Presidente da Renamo. Ele possui muitos Co-Presidentes que o ajudam a manter no caminho do impasse e da incerteza; longe da Paz e da concórdia e reconciliação com os moçambicanos, enquanto se apressam em assegurar os seus interesses.

 

Felizmente, existe uma boa experiência, caso Ossufo Momade queira romper com o cerco. Que o General Ossufo Momade aprenda com o Presidente Filipe Jacinto Nyusi que, contra todas expectativas; contra todos os riscos à sua vida; à socapa dos veto players da Frelimo, foi por mais de duas vezes a Gorongosa encontrar-se com Afonso Dhlakama e em consequência disso, logrou os progressos de que hoje somos todos usufrutuários.

 

O General Ossufo Momade tem o poder e controlo sobre o seu exército. Pode surpreender os caudilhos de guerra instalados em Maputo, enviando outra lista directamente ao Comandante-em-chefe das Forças de Defesa e Segurança, Presidente Filipe Jacinto Nyusi, para imediata integração e, ao mesmo tempo, anunciar a indicação de locais para o acantonamento das suas forças e ser ele próprio a liderar o processo.

 

Se quiser ser o inquestionável discípulo de Afonso Dhlakama, intérprete dos seus ideais e guardião da sua moral, a melhor saída consiste igualmente em evitar cair em erros por ele próprio cometidos. E um destes erros foi o de ter dado demasiado ouvidos aos mesmos que hoje o mantem nas grutas da Gorongosa. O que estou a dizer não é mentira. Tomem por exemplo, a velocidade com que os processos negociais e a consolidação da confiança entre Afonso Dhlakama e o Presidente Nyusi. Tal só foi possível a partir do momento em que os dois começaram a discutir os assuntos directamente. E foi daí que Afonso Dhlakama entendeu que em alguns temas e assuntos, estava a ser vítima de agendas egocêntricas de alguns mediadores e emissários. O arrojo de Afonso Dhlakama em flexibilizar alguns aspectos, a começar pela declaração da trégua militar sem fim não foi fruto do acaso ou de alguma distração. Foi resultado de alguma revelação e clareza sobre os mesmos, zelosamente mantidos longe do seu alcance pelos caudilhos de guerra que o queriam ver confinado nas serras para que continuassem a cuidar dos seus interesses.

 

SEGUNDA

 

No âmbito desse processo negocial, o chamado Grupo de Contacto também tem um papel a desempenhar. Integram o Grupo de Contacto sete personalidades, designadamente, os Embaixadores da Federação Suíça, dos Estados Unidos da América, da República Popular da China, do Reino da Noruega bem como o Alto-Comissário da República do Botswana, a Alta Comissária do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e o Chefe da Missão da União Europeia em Moçambique. O grupo tem, entre outras tarefas, prestar assistência financeira e técnica coordenada, bem como realizar outras tarefas indicadas nos seus Termos de Referência.

 

Da mesma forma que emitem comunicados elogiosos quando há progressos no processo de Paz ou quando o processo emperra, julgo ser oportuno que ele também se pronuncie e use das mesmas prerrogativas para persuadir a Renamo a rapidamente conformar-se com o espírito e letra do Memorando de Entendimento. E mais, parte dos países envolvidos no Grupo de Contacto são igualmente altos patrocinadores do processo eleitoral moçambicano. Seria um enorme malogro que esses vissem seus esforços gorados aos joelhos da Renamo, não conseguindo desmilitarizá-la antes das eleições de Outubro próximo. Por isso, também podem exercer a terceira via, influenciando um pequeno, porém, vibrante grupo de organizações da Sociedade Civil nacionais para que, também se mobilize em torno da paz, chamando à razão a Renamo, de modo a que ela se reconcilie com a verdade, com o espírito de Afonso Dhlakama.

 

Ora, para que tal seja possível, é preciso que estes países sejam comprometidos com a Paz dos moçambicanos, seja comprometido com o desenvolvimento de Moçambique e não comprometidos com agendas contraproducentes à agenda nacional. Eu estou convicto que eles estejam comprometidos com Moçambique. Caso contrário não iria apoiar.  

 

TERCEIRA

 

Os moçambicanos, que todos os dias clamam pela paz, precisam de melhor conhecer a narrativa deste processo para que também tomem parte do diálogo e das decisões. Agora, mais do que em qualquer outro momento, devem levantar a sua voz e estarem do lado da verdade e do que lhes mais interessa. Por causa disso, é importante que agucem a sua atenção e reajam aos primeiros sinais de manobras dilatórias.

 

O Presidente Filipe Nyusi, o governo e nós moçambicanos fizemos muito. O parlamento demonstrou que, quando o interesse nacional chama por eles, são capazes de acelerar o passo: aprovou-se uma revisão pontual da constituição, um pacote de descentralização e outros dispositivos associados para permitir o aprofundamento da democracia, da descentralização e da reconciliação nacional.

 

Agora o governo e parceiros estão de mãos atadas porque não podem ir desmobilizar a força o exército residual da Renamo, até porque não se conhece onde ele está; não se podem avançar com a integração de oficiais da Polícia da República de Moçambique, porque a Renamo quer meter os que já estão a beneficiar de regalias do estado desde 1992; não podem avançar com desmobilização, reintegração e ou reinserção social do exército residual pois para tal, é preciso que esse núcleo inicial da Renamo seja integrado.

 

É agora chegado o momento de a voz do povo fazer-se ouvir. O Presidente já se pronunciou três vezes sobre o mesmo assunto; a liderança da Renamo está já notificada sobre as incompatibilidades. O próprio Presidente conhece os visados de cara, pois foi também Ministro da Defesa entre 2008-2014.

 

Será que vamos deitar tudo abaixo por causa de 10 reformados? Será que eles próprios não podem ajudar o embaraço em que colocaram o Presidente da Renamo? Como? Surpreendendo-nos também com uma declaração à imprensa em que anunciam a sua retirada voluntária das candidaturas, para o bem da Paz, dos seus filhos, netos e pela salvaguarda da memória e visão de Afonso Dhlakama.

 

Neste pequeno texto, apontei uma série de iniciativas com potencial de desbloquear o embaraço em que nos encontramos. Uma iniciativa que pode ser levada a cabo pelo General Ossufo Momade, Presidente da Renamo; outra iniciativa que pode ser levada a cabo pelo Grupo de Contacto e ainda outra, que pode ser levada a cabo pelos 10 nomes (via rápida) e ainda outra de mobilização popular.

 

Cada uma dessas iniciativas, implementadas a eito ou individualmente tem o potencial de resultar em um grande passo rumo ao desencadear da seguinte fase do processo de DDR. 

terça-feira, 21 maio 2019 06:47

A tempestade que colhemos em Yaoundé

À memória de Matateu, que morreu sem nada nas mãos

 

Em 1983, quando Moçambique derrotou a selecção dos Camarões no Estádio da Machava, o mundo inteiro perguntou se aquilo era mesmo verdade. Os camaroneses eram os maiores da África, uma espécie de astros elegidos para reverberarem no tempo. Perante eles, todos sentiam-se como os israelitas diante de Golias na guerra dos filisteus. Tremiam e escondiam-se nas baixas e nas tocas e nas grutas. Agora quem são esses que ousam enfrentar um  monstro, e ainda por cima decepá-lo com a sua própria espada!?

 

Acabo de falar ao telefone com Sangare Okapi, e ele recorda-me um verso que me remete ao silêncio: não me aguarde, basta que penses em mim. Outro verso perturbador já o tinha ouvido de Fernando Manuel: agora vivo de sons. Na verdade, Fernando não tem outra escolha senão aceitar este futuro que já encara de frente, com palavras sem fim em formigueiro nas mãos trémulas queimadas pelo tabaco. Ele está apressado em lançar toda essa enxurrada depositada no sentimento mais profundo, porque o tempo que tem pela frente é inesperado.

 

Quando nasceu não sabia de nada, mas já estava escrito que tudo consumar-se-ia na pesada penumbra. Quer dizer, a cegueira, cansada de esperar na vigília furtiva iniciada no ventre da sua linda mãe, abateu-se – mais de seis décadas depois - com estrondo sobre um cronista que agora respira entre os sopés e os cumes. Sem saber exactamente o que pensam as pessoas à sua volta, porque não vê o rosto delas. E o rosto, segundo o poeta, é um pouco a janela da alma.

  

Estou sentado frente a frente com Fernando Manuel na sala do seu apartamento na Avenida Guerra Popular, em Maputo, onde vários charcos de mijo espalham-se por um município fedorento. Onde os cheiros nauseabundos são exaltados pelas canções repetidas no silêncio dos dementes desmazelados, que gozam a liberdade infindável oferecida pelas velhas acácias. E pela rebeldia dos meninos de rua que não sabem para onde vão. Nem de onde vêm os ventos frios que varrem seus ossos nas noites e nas madrugadas.

 

Há muito que não nos víamos, e ele nunca mais há-de me ver. Mesmo assim não me compadeço com o cego que está à minha frente, apesar de saber que estes olhos grandes jamais voltarão a vislumbrar a cor das manhãs. O que me arrepia porém é que o cronista parece escutar-me com esses mesmos globos oculares ora escurecidos. Já não é o mesmo homem que conheci, que saía a correr da Redacção para trazer a reportagem inadiável, posteriormente burilada com saber. Já não é aquele boémio incapaz de controlar a boca que ao mesmo tempo bebia e dava azo às bojardas que só ofendiam a quem não entendesse efectivamente os tecidos da vida.

 

Fernando Manuel agora é um personagem resignado perante todas as derrotas infligidas pelos desfiladeiros íngremes calcorreados um a um. Passa a vida a escutar Rádio e a ouvir música, como se isso fosse lhe devolver a pujança dos músculos. Qual! O que lhe sobra é alma. E as palavras que lhe alagam as mãos. Em turbilhão.

 

A nossa conversa rodopia em torno do eixo do passado. É o próprio Fernando Manuel quem assim o diz, lá para frente não há nada. Tudo começa daqui para trás. Ou da trás para aqui. Aqui é o limite. É aqui onde terminam todas as paródias. Pior quando não há vinho por sobre a mesa. A vida torna-se um muchém de sal insípido, como se transformou a mulher de Lote, libertada de Sodoma e Gomorra.

 

É isso: a iris do Fernando Manuel perturba-me. Parece inquirir-me.  E eu digo assim ao meu amigo, vou trazer-te um par de óculos escuros para esconderes esses olhos de águia em fúria, porque já não servem para nada. E ele responde-me assim, os olhos da águia são a tónica máxima da liberdade. Depois da águia não há outro animal. Ou seja, na audácia da águia está a audácia de Deus. 

Começamos, saudando a solidariedade internacional. Da parte das Nações Unidas, de suas agências no campo ou de grandes ONG’s, a ajuda não demorou a chegar ao Zimbabwe, Malawi e, especialmente, a Moçambique, devastado pelo Ciclone IDAI, em Março passado. Mas, enquanto um novo Ciclone Tropical, Kenneth, atingiu, novamente, a costa oriental de África, com uma intensidade um pouco menor (previa-se que a intensidade fosse maior, mas enfraqueceu ao aproximar-se à costa), não podemos deixar de notar uma parcela de culpa em toda esta solidariedade.

 

Moçambique está de joelhos. Atingido pelo que está sendo considerado o pior ciclone do hemisfério sul, viu sua segunda maior cidade, Beira, praticamente apagada do mapa. E como as tempestades tropicais não conhecem fronteiras, IDAI também causou mortes no Zimbabwe e no Malawi. Mais de mil pessoas morreram e dois milhões foram afetadas, sendo 1,8 milhões só, em Moçambique. Os danos causados pelas inundações e rajadas de vento custarão à região mais de US$ 2 bilhões, segundo o Banco Mundial.

 

Para os pesquisadores, não há dúvida de que a alternância de episódios ciclónicos e de secas que atingiu a região, nos últimos anos, está diretamente ligada às grandes variações de temperatura resultantes das mudanças climáticas. A ironia é que Moçambique e os seus países vizinhos produzem apenas uma pequena fração das emissões mundiais de dióxido de carbono. África é o continente menos responsável pelo aquecimento global: apenas 3,8 por cento das emissões de gases responsáveis pelo efeito de estufa, contra 23 por cento da China, 19 por cento dos Estados Unidos e 13 por cento da União Europeia.

 

A cidade de Beira não é um caso isolado. Secas prolongadas, inundações repetidas, diminuição dos rendimentos agrícolas, acesso cada vez mais limitado à água: o aquecimento global já mostra os seus efeitos em África. E estas catástrofes naturais aumentam o risco de insegurança alimentar e de crises sanitárias. Basta olhar para os casos de cólera que surgiram, em Moçambique, após a passagem do IDAI e do Kenneth.

 

Nas zonas rurais, a sobrevivência está em jogo com o desaparecimento de culturas inteiras. As populações urbanas também estão na linha de frente. As elevadas taxas de natalidade e o êxodo rural fazem com que 86 das 100 cidades com crescimento mais rápido no mundo estejam em África. E que pelo menos 79 delas – incluindo 15 capitais – estejam enfrentando riscos extremos devido às mudanças climáticas, de acordo com a consultoria de riscos Verisk Maplecroft.

 

Além disso, as catástrofes naturais acentuam a pobreza e a desigualdade e alimentam os conflitos. A pobreza extrema continua a aumentar em África Subsaariana, ao contrário de todas as outras regiões do mundo. Se nada for feito, a região poderá ser responsável por 90 por cento das pessoas que vivem com menos de US$ 1,9 por dia até 2050, alerta o Banco Mundial. A infra-estrutura pública e os mecanismos de resposta às catástrofes são insuficientes e inadequados. Os 13,2 milhões de habitantes de Kinshasa (capital da República Democrática do Congo), por exemplo, têm sido regularmente afetados por inundações.

 

Para estarem mais bem preparados, é urgente que os estados africanos disponham de mais recursos. É certo que a cobrança de impostos melhorou no continente, passando de 13,1 por cento, em 2000, para 18,2 por cento, em 2016, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Este valor, porém, permanece muito abaixo das médias da América Latina (22,7 por cento) ou dos países da OCDE (34,3 por cento). Mesmo quando não são corruptos, os governos não dispõem dos recursos necessários para se contrapor às estratégias cada vez mais sofisticadas e agressivas das multinacionais para evitar os impostos. África perde entre 30 e 60 bilhões de dólares por ano, segundo estimativas muito conservadoras da Comissão Econômica para África das Nações Unidas e da União Africana. Isto é muito mais do que o montante da ajuda internacional.

 

Em todo o mundo, as pessoas estão chocadas com os escândalos fiscais expostos por investigações governamentais e de outras entidades. Nos Estados Unidos, por exemplo, um relatório recente revelou que 60, das 500 empresas mais lucrativas do país, incluindo Amazon, Netflix e General Motors, não pagaram impostos, em 2018, apesar de um lucro acumulado de US$ 79 bilhões. O impacto nas finanças públicas é ainda mais preocupante em África, onde os impostos sobre as empresas representam 15,3 por cento das receitas públicas, contra apenas 9 por cento nos países ricos.

 

Após anos de silêncio, a OCDE admitiu recentemente a necessidade de questionar o sistema que permite que as empresas declarem os seus lucros onde quiserem, a fim de se beneficiarem, legalmente, de taxas de imposto muito baixas ou mesmo nulas em paraísos fiscais. Esta é uma mudança, pela qual temos lutado há anos no âmbito da Comissão Independente para a Reforma da Taxação Corporativa Internacional (ICRICT). Os países ricos agora estão também sob pressão do Fundo Monetário Internacional e da ONU, que, nos últimos meses, apelaram a uma revisão dos mecanismos de tributação internacional.

 

Este é um primeiro passo na direção certa, mas é urgente que os países em desenvolvimento participem activamente no desenvolvimento de novas normas fiscais. O continente africano tem sido a primeira a sofrer com as mudanças climáticas, para as quais contribuiu apenas marginalmente. É tempo de se fazer ouvir a sua voz para que ela possa arrecadar os recursos que lhe permitirão lutar contra os seus efeitos e preparar melhor as suas populações.

 

Léonce Ndikumana é Professor de Economia e Diretor do Programa de Política de Desenvolvimento Africano no Instituto de Pesquisa em Economia Política (PERI) da Universidade de Massachusetts em Amherst, e membro da Comissão Independente para a Reforma da Taxação Corporativa Internacional (ICRICT).

quarta-feira, 08 maio 2019 05:55

Atravessando a baía com uma mulher maconde

À memória de Faustino Vanomba e Kibiriti Diwane, tombados para sempre na minha cidade

 

À  Biti Akuvava, minha amiga em Mueda

 

Sentou-se levemente no mesmo banco de madeira partilhado por seis pessoas em que uma delas sou eu. Estamos embutidos numa barcaça precária que daqui a pouco vai deixar a cidade da Maxixe, lugar que à noite, visto da outra margem, parece Las Vegas. Está cheio de luzes por todo o lado. Brilha na ilusão de óptica para recompensar a realidade materializada pela vertigem. Maxixe é também pousada do diabo, onde ele se instala amiúde para contar as notas de impulsão sob a guarnição dos punhais  que reverberam por sobre a mesa.

 

É maré vaza, e os bancos de areia ressurgem, entretanto sem a beleza dos tempos, para acolher a sobra dos flamingos  e das gaivotas dizimados pela ignorância e pela fome e pela ganância também. Tudo aquilo é sombrio. Parece uma mulher sáfara. Ou várias mulheres estéris estendidas numa paisagem criada para arrebatar. Não está lá ninguém para a apanha do carangueijo e da ameijoa, varridos pelas mãos e pelos ventos. Aliás em mamas sem leite as crianças não choram. Sabem que não haverá mamada.

 

No interior da embarcação que leva perto de setenta pessoas o silêncio é uma canção que só se ouve por dentro do coração. É um bálsamo leve. Cada um escuta a sua música na escala diatónica insondável. Alguns ouvem as melodias com os olhos fechados, outros dão vazão à vista e absorvem todo aquele espectáculo único dos coqueiros que se erguem na terra, fazendo-me lembrar a fase inicial do filme de Francis Coppola, Apocalipse now. Outros ainda, para a queima do tempo, vão navegando pelo mundo servindo-se  da internet instalada nos seus celulares.

 

Não há golfinhos para nos escoltar como havia antigamente nos tempos da juventude do Mangoba, nem os barcos à vela que passeavam em eternas regatas levando vidas e destinos de um lado para o outro. Esses elementos vitais do paraíso diluíram-se. Os homens já não se encavalitam em ombros cansados de humilhação. Há um êxodo da alma. Faltam os olhares profundos e cansados dos marinheiros que gritavam, em apelo aos passageiros,  Maxixêêêêê! Do outro lado também, as vozes esvairam-se no tempo. Já não ouvimos aquele cantante sewiiiiiiiiiii! Quer dizer, como dizia o poeta, “para cá da porta, nada! Para lá da porta, também nada”!

 

Não há dúvida de que tudo isto é uma metáfora. Parecemos baratas assustadas depois do transbordo, aqui por sobre a plataforma da ponte-cais de Inhambane onde acabamos de ser cuspidos. Somos um cacho que vai-se desfazendo, cada um para o seu ramo onde vai repousar e preparar novo voo. Ninguém sabe o que vai acontecer amanhã. Não há certeza de nada, mesmo com todas as armas que levamos no regaço. Tudo à nossa volta é uma incógnita, como esta mulher que agora comunica ao telefone em liberdade.

 

Ela fala com sotaque de ximaconde. Assusto-me por dentro ao ouvi-la na voz de tenor. Olho para ela, e no lugar das tatuagens que eu podia esperar, sobresaem lindas  sardas cobrindo um rosto jovial. Está no auge da vida. Parece uma gazela longe dos felinos festejando o raiar do sol nas savanas. Faz-me lembrar a Biti Akuvava, antiga bailarina de mapiko agora rendida ao flagelo da idade.

 

A melodia da língua ximaconde embevece. Um maconde falando português, empresta à língua de Camões, também nosso troféu de guerra, uma áurea particular. Parece o próprio mapico a ser dançado por sobre a ponte que une as margens do Rio Tejo. E eu estou aqui, escutando discretamente esta mulher com lindas sardas no rosto. Na cidade de Inhambane. Minha musa.

terça-feira, 07 maio 2019 07:58

Sobre Direitos, Liberdades e Obrigações...

O bom senso é um "elemento central da conduta ética, uma capacidade virtuosa de achar o meio-termo e distinguir a acção" – Aristóteles

 

Noutra definição, diria que “bom senso” é "uma qualidade que reúne as noções da razão e da sabedoria, caracterizando as acções que tomamos de acordo com as regras e costumes adequados para determinado contexto”. Numa época em que muitos de nós descobrimos os nossos direitos, e entusiasticamente usámo-los como sempre com tendências de abusar até que algo drástico aconteça, e começamos a ser mais prudentes. Esquecemos, por exemplo, que todos os direitos têm limites e obrigações.

 

Os Direitos do Homem vêm plasmados nos Livros Sagrados, com maior detalhe no Quran. Contemporaneamente, os Franceses fizeram a primeira Declaração em 1789. Por outro lado, o poder é uma percepção que os outros têm de alguém, de um grupo, de uma classe profissional e ou de um país. A história diz que sempre que esse poder foi usado de forma abusiva, o mesmo lhe fora reduzido ou retirado.

 

Os regimes de África, em particular o de Moçambique, têm vindo a beneficiar-nos de novo de Liberdades e Direitos, que os nossos antepassados já tiveram e que o regime colonial lhes condicionou. Para muitos, em particular os mais novos, as nossas monarquias e outros poderes "tradicionais" eram também respeitadores de direitos e liberdades dos seus cidadãos, obviamente no referido contexto.

 

Enganam-se os que pensam que esse privilégio é uma originalidade do Ocidente. Pelo contrario, os ocidentais, de forma geral, foram os últimos a integrar no seu modelo político-social os Direitos e Liberdades. Porém podemos aprender com a cultura ocidental, por ser aquela que nos está mais disponível, que o ponto de equilíbrio entre Direitos e Obrigações é como o fiel da balança, sempre em movimento a procura do ponto justo. Sendo as sociedades dinâmicas, compreende-se que as mesmas estejam permanentemente em disputa. Convém recordar que os nossos direitos terminam onde começam os direitos de outros. 

 

Inspirou-me partilhar com o caro leitor esta reflexão, porque os nossos políticos e governantes, e de uma forma geral os servidores públicos, usam e abusam da confiança que lhes foi depositada, numa clara violação do contrato social, manifestando falta de qualidades e virtudes, e quando estas aparecem denota-se a ausência de Bom Senso. 

 

Na maioria dos partidos políticos, confissões religiosas (novas), autoridades policiais, magistrados, jornalista, ONGs, ordens profissionais, servidores públicos, associações económicas, entre muitas estas organizações têm um papel decisivo no desenvolvimento das sociedades e, pelo facto, têm um enquadramento legal, com Direitos e Obrigações pelos quais assinam contratos e muitos fazem Juramentos. O abuso dos Direitos e Liberdades fez e fará que os respectivos beneficiários sejam limitados, prejudicando a maioria da classe e a sociedade no geral.

 

Não devemos permitir que um colega de profissão se exceda no uso dessas liberdades sob risco de a maioria ser penalizada. Lembro-me recentemente da tinta que fez correr a condenação pública, através da imprensa irresponsável e sensacionalista, de gestores de uma instituição financeira, que viriam a ser despronunciados ou ilibados pela Justiça das referidas acusações.  Se a imprensa e a comunicação social no geral têm o direito e a liberdade de publicar, os visados têm direito ao seu bom nome e reputação. A forma irresponsável como alguns órgãos de comunicação social prestam um mau serviço de informação ao público, perante o silencio dos demais da classe, fará aquilo que já aconteceu noutros países: penalizar os fazedores da imprensa livre, de forma geral. Esta máxima aplica-se a todas as outras profissões e serviços públicos. Os que exercem o Poder devem utilizar argumentações e atitudes racionais, para poderem fazer julgamentos e escolhas assertivas, de acordo com os usos e costumes da nossa sociedade.

 

Trabalho, ética, conhecimentos e Bom Senso precisa-se...