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terça-feira, 20 julho 2021 07:25

Cerveja dos antepassados leva-nos ao auge

Mónica Fungayi, mulher com quem tenho muitas afinidades, ligou-me às seis da manhã e disse, estou a passar Xai-Xai, e eu exclamei, a passar Xai-Xai?! Ela disse, sim, estou a passar Xai-Xai, meu caro!

 

Vinha de Maputo e eu estou em Inhambane. Fiquei uns instantes a pensar na maneira como ela conduz, segura, entretanto perigosa. Viajar ao seu lado é aceitar o suicídio, contudo a conversa e o whisky diluem todo o medo, apesar de já não termos idade para suportar a pressão, como nos tempos de juventude, quando viviamos a vida em cascata. 

 

Foi ela quem retornou e disse, vou à Tete, queres ir comigo?

 

Mas eu nunca me surpreendi com as maluquices da Mónica Fungayi, ela podia estar a falar a sério ou a brincar, dela espero tudo, é uma pessoa inesperada, está pronta a todo o momento a responder ao chamamento da liberdade, e o que mais admiro nela, é o desejo permanente de ver os outros, livres, como Bob Marley quando dizia, “deixo as pessoas que amo, livres, se voltarem é porque as conquistei, se não voltarem, é porque nunca as tive”.

 

Eu volto sempre para Mónica Fungayi porque conquistou-me, não resisto ao seu fogo feito de palavras sempre novas. Então, se for verdade que está a passar Xai-Xai a caminho de Tete, vou com ela, essa proposta é irrecusável. Irresistível, por todas as diabruras que se anteveem.

 

Chove uma chuva intermitente aqui onde estou, e por causa disso não fui fazer a minha caminhada habitual. Se não caminho, desce sobre mim o tédio, o dia fica longo, sufocante, desgastante, e esta chamada da Mónica Fungayi vem mudar meu azimute, dá-me as luzes que preciso para enfrentar o dia.

 

- Daqui a uma hora e meia estou aí, meu brada, surge et ambula!

 

Nunca tenho as malas feitas, sou um barco fundeado. O que me safa é que as minhas amarras e a âncora, estão sempre prontas a moverem-se na dança de uma nova canção temporária, não sou prisioneiro, nem de mim. Viajar com Mónica Fungayi será uma dança vertiginosa, e quem vai cantar essa canção somos nós os dois. Falaremos, na nossa paródia cíclica, do Fela Kuti, do Hugh Masekela, dos Beatles, do Ray Phiri, da Elis Regina, da Abete Masikini, do Marlon Brandon, do Francis Coppola, nossos ídolos de sempre.

 

Iremos contemplar a cordilheira de Catandica, na província de Manica. Do outro lado daqueles montes fica o Zimbabwe. Então chegará até às nossas memórias o odor de Thomas Mafume e Oliver Mtukuzi e Chiwoniso Maraire, nossos ídolos imortais. É tudo isso que me faz saltar da cama nesta manhã de chuviscos descontinuados. É a Mónica Fungayi que desenha, na minha solidão,  a aurora para dissipar pensamentos pensamentos nefastos, é ela que repete sempre, sem se cansar, essa lírica: quem te disse que estás sozinho!

 

Daqui a pouco ela vai chegar, vinda de Maputo onde vive uma vida anarquista, vem levar-me para uma viagem de 1500 km, um empreendimento que pode ser a saga dos loucos, sem previsão de chegada, pois o tempo fica por conta da nossa liberdade. Do gozo em si.

 

Enquanto Mónica Fungayi não chega, vou entregando-me à imaginação. Às lembraças de locais de Tete como  Kwatchena Ku Nhartanda, Canongola, Matundo, Nhamabira, Chimadzi, locais que bem conheço na minha vida de ex-andarilho. Não nos faltará ainda a oportunidade – quando chegarmos - de procurar um lugar onde se vende pombe (cerveja dos aantepassados da Mónica). E aí atingiremos o auge de tudo.

segunda-feira, 19 julho 2021 14:03

O triunvirato de Messumba

Três Humanistas, Três Ciências, Três Pedidos

 

Por José P. Castiano e Jorge Ferrão

 

Ninguém, no melhor dos seus sonhos, poderia imaginar que, da distante, inóspita e diminuta missão anglicana de Messumba, na igreja de S. Bartolomeu, no Niassa, três jovens tocariam os sinos da vida e seguiriam caminhos tão equidistantes, impactando nos corações de milhares de seguidores.  Depois da formação inicial, seguiram para a escola de artes e ofíciosde Massangulo. Carlos Machili virou carpinteiro; Filipe Couto, sapateiro; e Brazão Mazula, encadernador de livros.

 

Pode não ter sido a missão de Messumba que criou neles o sentido primário e ético de vocação. Todavia, o sentido, talvez superior, de “missão” foi propiciado pela forte formação teológica e filosófica que foram recebendo. Depois, partiram o Mundo, i.e., Itália para o caso de Machili, Alemanha para o padre Couto e Brasil para o Brazão Mazula, sem descurar outros universos por onde passearam sua classe e virtudes. De certa forma, esta formação superior proporcionou-lhes uma relação mais racionalizada para com as suas crenças e Fé. Daí terem assumido as suas crenças temporais com o sentido de “missão”.

 

Os alemães, pela boca de Max Weber, têm um encanto especial pelo termo “vocação”. A vocação não está, somente, ligada ao seu sentido prático e profissional, porém, e sobretudo, ao espiritual. A “missão” que cada indivíduo recebe, uma vez terminada a sua formação, se transforma num chamamento para a perfeição, honestidade e, principalmente, no sentido de um servidor do outro. Não é por acaso que, em alemão, a palavra Beruf significa profissão. O verbo beruffen significa mesmo chamamento.

 

Convocar e celebrar estes três “iluminados” de Massangulo, num mundo conturbado e em agitação plena – terrorismo em Moçambique, “free Zuma”, Bolsonaro, Ndhlavela, vitória da Itália – foi um acto proporcional e de pura nobreza. Existirão, sempre, infinitas razões para “vasculhar” as pontas que mais os uniram, e os que os dividem. O denominador comum, convenhamos, assenta nessa “trindade” oriunda de uma educação missionária de um local “esquecido”, e que transcendeu e se afirmou como referência obrigatória no panorama mundial.

 

Se estas razões forem insuficientes, teríamos, então, de apelar ao nacionalismo, ao contributo para a causa e luta de libertação nacional e, no pós-independência, ao aficando empenho na educação das novas gerações. Um “triunvirato” que continuará presente em nossas consciências, nesta e futuras gerações.

 

Esta trindade não é santa. Aliás, gerou, ao longo de anos, consensos e descensos, empatias e apatias, animosidades e hostilidade. Não obstante, se reconhece uma trajectória e um percurso, que transcendeu do reduto Niassa, perpassando o mundo, para assumir missões maiores num mundo designado Moçambique, e para uma universalidade por via de uma academia universalista. Todos eles, oriundos dessa formação teológica-filosófica, abraçaram, posteriormente, a academia moçambicana como produtores de pensamento e como gestores/reitores nas duas maiores instituições públicas e estruturantes – a Universidade Eduardo Mondlane, para os casos de Brazão Mazula e Filipe Couto; e a Universidade Pedagógica para o caso de Carlos Machili.

 

Não temos ilusões sobre os efeitos dessa caminhada na personalidade e carácter de cada um. A unicidade, aliás, teria sido nociva e perversa.  Então, quais seriam, as crenças temporais através da quais, cada um deles, enriqueceu a sua fé e personalidade?

 

 

Na sua actividade como intelectual, Brazão Mazula é um profundo crente da possibilidade de Democracia, em África, baseada no uso da “palavra” (ou do “agir comunicativo”, tomando o sentido habermasiano). Ao mesmo tempo que fazia um diálogo profundo com filósofos como Hegel, Heidegger, Eric Weil, mas, sobretudo, com Marx e Habermas, Mazula foi também incansável em buscar, nos pensadores, africanos como Mulago, Hountondji, Eboussi-Boulaga, ou seja, na “esteira académica” africana, inspiração para fundamentar uma democracia baseada no uso da palabre e na “criação da riqueza”.

 

Mazula desempenhou um papel fulcral para que as primeiras eleições democráticas tivessem lugar. Assim, tem sido ao longo da sua carreira, e nos momentos mais sensíveis e de desassossego. Pelas obras que publicou, provou sua versatilidade e capacidade de negociar, construir pontes e essa identidade democrática, que continua distante de ser a ideal, finalizada, ou mesmo a mais reconciliatória.

 

Por seu lado, Carlos Machili, na palavra e em acto, foi, e ainda é, um grande crente da ideia de que “a qualidade da educação em Moçambique, somente pode (pro)vir da quantidade”. Não é excluindo uns ou uma parte da sociedade, ou seja, apostando numa educação e formação elitista e elitária, que vai se garantir a qualidade: “uma universidade deve ser mordida por mosquitos”. Ouvimos ele, inúmeras vezes, a defender. Às vezes mesmo sozinho, no meio de muitos experts em “educação de qualidade”.

 

 

Machili, pois, é um fervoroso crente da expansão do ensino superior para todo o país. Não quis ficar refém de uma linha elitista, emergente, que contra-argumentava suas pretensões. Contra tudo e todos, foi abrindo delegações da Universidade Pedagógica, por todas províncias. O que foi específico nele é que a quantidade, a expansão, não era algo que se deveria fazer em detrimento da qualidade, daí a sua insistência, quase que de forma insurgente – e ele é mesmo um insurgente intelectual – na necessidade de uma boa formação de professores (recusou e insurgiu-se, oficialmente, contra a formação 10+1 ou 12+1, esquemas inspirados pelo Banco Mundial).

 

Por fim, o Padre Couto, talvez por ter sido sapateiro, combinando com o facto de ser fervoroso admirador de Martin Lutero, o reformista alemão, é um fervoroso crente das potencialidades da juventude moçambicana. Ele deposita fé na capacidade que a geração mais jovem tem em ser irreverente, no seu sentido positivo. Isto é, de ela própria reconhecer os desafios do seu tempo-vivido. É por isso que insiste muito, nas suas aparições públicas, na não-glorificação e não deificação de actos humanos do passado recente da historiografia de Moçambique, por mais “gloriosos” ou “heróicos” que nos pareçam e apareçam. O que interessa é o futuro e a forma como a juventude estará preparada para actos naturais neste futuro.

 

É somente a partir desta trindade de crenças, iluminadas pela fé no futuro, que podemos entender os três “pedidos” que expressaram no acto da sua homenagem na UP-Maputo: “Não matem a filosofia nas escolas moçambicanas, pois a falta dela pode ser uma das razões principais para prevalência da violência que vivemos hoje” – ouvimos Mazula a pedir, para logo acrescentar alguma ironia: “não sei dar, só sei pedir”. O Carlos Machili, igual a si mesmo, expressou da seguinte forma o seu desejo: “uma universidade que não produz dinheiro, morre” para depois acrescentar que “deixem que este dinheiro produzido, internamente, seja gerido pelos departamentos e faculdades”.

 

Por seu lado, Filipe Couto, já cego, mas atento às dinâmicas actuais, pediu à juventude para, por via da Universidade Pedagógica de Maputo, fazer um trabalho profundo na compreensão da História e da historicidade de Moçambique. Só assim é que o futuro não será uma repetição, em forma de tragédia, do passado que nos parece e aparece como sendo heróico. Nunca houve, não há e nem haverá homens infalíveis. A grandeza humana na História, só se avalia pela forma como os homens e cada um, se confrontam com as suas próprias contingências e fraquezas de momento – parecia querer dizer ao evocar as personalidades de Urias Simango, Mateus Gwendjere ou Lázaro Nkavandame. Não se tratou de acender a chama dos esqueletos, mas de proporcionar uma revisão histórica, genuína e descomprometida, mesmo considerando que alguns se tenham posicionado do lado “reaccionário” da revolução.

 

 

Resumindo, de uma coisa temos a certeza: os três humanistas que viveram as suas crenças como “missão” da vida, não foram e nem formaram uma “santa” Trindade; bem pelo contrário, tiveram as suas angústias, emoções, talvez até erros, resultantes destas suas crenças. O certo é que todos foram forjados no “Niassa”, para o mundo. (X)

Por José P. Castiano e Jorge Ferrão

 

 

As portagens (urbanas) e o investimento em estradas alternativas deviam merecer uma maior atenção no estímulo ao crescimento e na conectividade de outras áreas/eixos/corredores da Área Metropolitana de Maputo (AMM). A proposta, que decorre das lições apreendidas da experiência da estrada N4 em Maputo, quer positivas (atraiu infraestruturas) quer negativas (o fecho ao progresso de outros corredores), entre outras valias e adversidades, pode, e muito bem, ser uma resposta para o actual contexto (assimétrico e desordenado) de desenvolvimento (infraestruturas e serviços) da AMM.

 

Em termos práticos, as portagens, cujos valores, definidos em função de uma ou de mais variáveis, tais como a dimensão do veículo (talvez a única em uso na estrada N4), horários, lotação (carros particulares), matriz energética, o sentido (saída/entrada) e o serviço prestado (transporte, bombeiros, etc.), concorreriam, entre outros, para que i) as estradas alternativas acomodassem o tráfego que é desviado dos acessos com portagem, libertando estes para as prioridades definidas, ii) as áreas conexas ao trajecto das estradas alternativas atraíssem investimento de outros sectores (económicos e sociais), e iii) o sistema de transporte público fosse melhorado e o seu uso como uma das alternativas para circulação, particularmente dos que se locomovem de carro, e ainda de singelo contributo para a redução da poluição ambiental. 

 

Do exposto, embora breve e para terminar, subjaz um princípio: o da utilização de portagens (urbanas) como um instrumento de gestão de tráfego e de urbanização sustentável e não a de mera fonte de financiamento para a manutenção de estradas conforme, quanto ao processo de instalação de portagens na estrada circular de Maputo, a recorrente posição (governamental) da REVIMO, a gestora da circular. E decerto, um princípio que faz jus à posição da sociedade civil, através da organização CDD, que critica as citadas portagens pelo facto, entre outros, de não responderem aos problemas de mobilidade e de desenvolvimento inclusivo da AMM.

 

segunda-feira, 19 julho 2021 07:50

INATTER, irresponsabilidade inebriante

(Acontecimento verídico, personagem fictícia)

No dia 13 de Julho do corrente ano, António Galopão deslocou-se a uma das repartições do extinto INATTER, agora Instituto Nacional de Transportes Rodoviários (INATRO) para proceder à renovação da sua carta de condução em vésperas de caducar. Eram aproximadamente 10:30h, de uma terça-feira do nosso calendário gregoriano.

Uma pequena multidão ocupava de forma desordenada diversas posições no exterior das instalações, à espera de ver o seu assunto solucionado.

Dois guardas de uma empresa de segurança procuraram atender este e aquele pedido dos utentes. Galopão expõe que precisava renovar a sua carta de condução e o guarda solicitou a sua carta e o atestado médico.

“Aguarde, vai ser chamado” – anunciou.

Assim, iniciou-se o longo processo de espera e um e outro eram chamados para efectuar o procedimento seguinte. Passaram-se horas e só quando eram 14:00h Galopão ouviu o seu nome.

“Senhor, a sua carta está suspensa e deve dirigir-se ao 1º andar, porta 13, sector das multas”

Galopão ficou apreensivo, pois procurava ser cidadão exemplar e cumprir com as normas de condução para evitar cair nas malhas das autoridades. Buscou na sua memória se havia alguma multa não paga, entretanto, havia pago a última que tivera e o agente da polícia de trânsito o advertiu que devia conservar o recibo para evitar qualquer embaraço.

Fez-se presente na sala de espera da porta 13 onde já estavam os outros que aguardavam a sua vez de serem atendidos, sendo que não se cumpria com o protocolo sanitário de distanciamento de 1,5 metros. Só quando eram 14:30h foi atendido pelo funcionário da instituição.

“Quero saber a situação da minha carta”, anunciou temeroso, pois tinha conhecimento de inúmeras irregularidades que aconteciam nesta instituição.

O funcionário pediu-lhe a carta de condução e ele imediatamente entregou-lhe. Depois de buscar no sistema informático, este começou a rabiscar um código referente à multa que devia pagar.

A sua inquietação tornou-se realidade e Galopão então perguntou: “Por favor, pode dizer-me que multa é esta?”

“Refere-se à falta de inspecção” – respondeu este.

“Falta de inspecção, quando e onde foi passada a multa?” – questionou, pois não se lembrava de nenhum evento referente a esse acto.

“Foi passada em Vilanculos, na província de Inhambane, no ano passado” – respondeu sereno.

“Caro senhor, eu nunca estive em Vilanculos” – respondeu um pouco fora de si.

“Senhor, não sei, é o que está no sistema” - afirmou sereno.

Depois de fazer as suas inúmeras contestações, António pediu que o funcionário imprimisse o histórico da multa para ele poder efectuar a devida reclamação. Entretanto, o funcionário alegou que o sistema não permitia executar tal operação.

Mas o funcionário foi benevolente e permitiu que este lesse o que o sistema mostrava; qual não foi o seu espanto, quando viu que a foto que o sistema mostrava pertencia a uma outra pessoa.

“Desculpe senhor, mas essa foto não é minha” – disse Galopão, completamente fora de si.

“Mas o nome é seu?” – perguntou descontraído.

“O nome é meu, mas a foto não” - respondeu quase aos berros.

“Senhor a multa foi passada em Inhambane, se quiser reclamar tem de ser com as autoridades que passaram que estão em Inhambane”

“Caro senhor, isso é ridículo e injusto” – afirmou completamente irritado.

Quando Galopão viu que ficava sem opções, ou pagava a multa para renovar a carta ou então procedia à reclamação e esperava o devido tempo para obter a resposta, sendo que durante essa espera não poderia conduzir, pois sua carta expirava dentro de dias, então optou pela segunda alternativa e depois iria pensar como proceder em relação ao imbróglio protagonizado por estes actores que deveriam servir o público.

Enquanto aguardava pelos procedimentos subsequentes, viu um outro cidadão a ser humilhado pelos funcionários da instituição por supostamente terem cometido infracções de que nem se lembrava ou então eram fictícias.

Às vezes, alegam que o indivíduo ficará inibido de conduzir pela infracção que cometera, como forma de pressionar o condutor a propor uma negociação para tal não acontecer.

Infelizmente, o povo oprimido continua vítima de chacais que vão brotando da pátria, imbuídos de intenções malignas de ganhar à custa do sacrifício do pacato cidadão, enquanto deveriam ser servidores públicos exemplares.

A introdução de multas no sistema parece ser uma cultura para alimentar os vícios da nova geração de vampiros que povoam o INATTER, aliás, INATRO.

Esperamos que, desta vez, tudo mude. Que as decisões tomadas saiam do papel à realidade. Que os que nos escravizaram em Ndlavela sejam devidamente responsabilizados. Que tudo não termine somente nos nossos velhos hábitos e costumes. Que não saiam apenas as caras, mas também os casacos velhos – que saiam deste local junto dos seus fantasmas.

 

Esperamos, igualmente, que as retiradas diúrnas e nocturnas das novatas para orgias sexuais mediante ameaças e agressões não continuem a ser vistas como um mero exercício interno. Estranhamente, o Inquérito integrou também mulheres como nós, em papéis fundamentais, as quais, no final, vieram dizer que os dados do Centro de Integridade Pública (CIP) eram exagerados.

 

Sua Excia, o nosso medo pela vida, dentro deste recinto atormentador, só piorou desde que este escândalo foi despoletado. Os que ficaram olham-nos com desdém e ódio. Julgam-nos e condenam-nos pelas suas dificuldades. Culpam-nos pelas suas carências financeiras e fome que as suas famílias passam ultimamente.

 

A verdade é que explicamos à Comissão tudo o que vivíamos. Agora, se abuso sexual não tem o mesmo impacto quando comparado à exploração sexual, isso não cabe a mim explicar neste meu pequeno desabafo, porque, como contei noutra minha intervenção (Diário de uma reclusa de Ndlavela (cartamz.com)), não entendo as razões pelas quais nós passamos por tudo isso. Éramos comidas a hora que lhes apetecia, mas ninguém registou isso. Para eles, tudo que acontecia devia às relações de força e poder que existem neste recinto. Esperamos que o caso seja criminalizado e tudo não termine apenas mediante medidas administrativas.

 

Apesar disso, o nosso maior pavor é ter um fim indesejado. É sermos estupradas por uma equipa de futebol e seus suplentes. É terminarmos numa vala comum e às nossas famílias informar-se-lhes que morremos de Covid-19, pelo que o nosso corpo não pode ser entregue, em respeito às medidas de contenção da propagação desta pandemia infernal.

 

O nosso pavor será, ainda, ver a justiça vencida ao relento. A verdade desmentida e os inocentes silenciados. O nosso pavor é continuar a sermos exploradas “legalmente”, prostituídas gratuitamente e violadas eternamente. Embora não sejamos filhinhas de mamã, somos também humanas. Somos mulheres, apesar de condenadas pelo erro e violadas sem piedade.

 

Hoje, a Comissão de Inquérito terminou a sua missão, os resultados foram apresentados e, possivelmente, alguns dos infractores serão encaminhados para outros postos e, num ciclo vicioso, continuarão com as mesmas práticas. Talvez parte deles serão promovidos ou, ainda, outros serão responsabilizados. Quem sabe!

 

Sua Excia, enquanto a justiça não for feita, as nossas lágrimas e a força interna dos nossos choros continuarão a ecoar das nossas atormentadas almas. Algumas de nós serão coitadas para sempre e condenadas pelo linguajar jurídico que esmiuçou a diferença entre abuso e exploração sexual. Ai de nós!  

 

Quid juris? Que a culpa não morra solteira…!

sexta-feira, 16 julho 2021 08:03

Contratado para ser presidente do município

Após a apresentação de um importantíssimo evento, um par de senhores de muita classe, ambos cobertos de fatos pesados e de marca clássica, interpelaram o jovem Mestre de Cerimónias:

 

— Jovem, tudo bem? Quanto talento, ein!? O teu futuro é muito promissor, sabias? — Questionou um dos senhores, cuja aparência, autoridade e presença denotavam ser o líder da dupla.

 

Manuelinho, comovido pelo reconhecimento, respondeu, sem travões:

 

— Ora viva, meus ilustres senhores! Não é possível que eu esteja mal e demonstrar tanta energia. Aliás, estou muito bem e firme. Obrigado! Eu sou Manuelinho, natural de Quelimane.

 

— O teu carisma, a tua postura, firmeza e eloquência fazem de ti um candidato perfeito a grande líder. Podes ser o próximo Presidente do Município de Quelimane — Retorquiu aquele nobre senhor, enquanto o seu parceiro soltava olhares, como um sniper bem treinado, para todos os cantos daquele local. Tudo indicava que eles estavam ali com uma agenda bem estabelecida!

 

Manuelinho, espantado por aquela abordagem, reagiu, inocentemente, quase atrapalhado:

 

— Eu faço isso por amor. É algo que me apraz. Na verdade, é uma das coisas que gosto de fazer, além de cantar, compor e produzir músicas clássicas. Já produzi muitos cantores da praça!

 

Após trocar palavras, em silêncio, com o seu parceiro, o senhor reagiu planificadamente:

 

— Olha, jovem, aproxima. Temos uma proposta que vai mudar a tua vida e de toda a tua família.

 

Aproxima-te! O teu talento não pode ser desperdiçado. Não podes desperdiçar a tua influência.

 

Manuelinho era o filho mais velho do casal José e Marta. Pesava sobre os seus ombros, o cuidado dos seus seis irmãos mais novos. Todos homens. O seu pai era um pacato vendedor de produtos alimentícios no mercado Aquima, em Quelimane. A sua mãe era doméstica. Por isso, desde pequeno, ele teve que se abdicar dos prazeres e encantos de adolescente e jovem. Aos vinte anos, carregava a responsabilidade de um pai de família, o que se reflectia na sua forma de viver e estar, principalmente, pelos conselhos que espalhava com quem conversava.

 

Quis o destino que ele fosse Produtor Musical. Aliás, ele também é um excelente cantor e compositor de várias melodias e miscelâneas musicais ouvidas por milhares de gente em todo o País e no mundo. Tudo começou por causa do seu gosto pela dança, na altura influenciada por angolanos, que o conduziu aos estúdios da cidade de Quelimane, nos primórdios do seculo vinte e um. Enquanto assistia as gravações de hits, aprendeu a produzir músicas.

 

O seu gosto pela música, a responsabilidade e os cuidados pela sua família, maioritariamente sem condições, fizeram dele um leitor voraz. Manuelinho lia de tudo. Livros sobre música, história, filosofia, antropologia, sociologia, línguas, Sagradas Escrituras e vários livros de sabedoria ancestral que espalham o conhecimento de bem viver e estar na sociedade. Por isso, ainda cedo, Manuelinho carregava palavras distintas de sabedoria de um admirado ancião.

 

Ora, o calendário gregoriano marcava, nas suas páginas já cansadas de contagem rotineira, meados do nono mês do calendário de Rómulo, o mês de Novembro. Passava apenas um mês após a eclosão dos ataques extremistas e violentos no Cabo do norte de Moçambique que se tornou palco de danças sangrentas, dormitório recheado de insónia para milhares de mulheres, jovens e crianças, incluindo homens, e asilo repentino de Tutsis e Hutus, num claro jogo de batota à distraída SADC. Aliás, naquele Cabo, como jogo de Xadrez, polícias lideravam soldados!

 

Tratava-se, além disso, de um momento difícil para a família Sumila. A neta, que em vida respondia pelo nome da esposa do avô Sumila, Marciana, acabara de render o seu espírito para a eternidade, aonde seguem os fiéis que depositam a sua fé no Criador dos céus e da terra.

 

O Jota, que na altura era jornalista-estagiário na capital do País, no único centro de formação de jovens jornalistas, que hoje brilham em diversas telas televisivas, jornais e organizações nacionais e internacionais, como sobrinho mais velho, havia recebido a trágica notícia da partida da única tia com quem conviveu os seus dias de meninice. Tinha, entretanto, viagem marcada à África do Sul, terra queimada pela ignorância de gente que não sabe o que realmente quer, para participar da Conferência Internacional de Jornalismo Investigativo, onde Cardoso é uma marca!

 

Como de costume, o Jota teve de solicitar uma isenção para cumprir com as cerimónias fúnebres.

 

Assim, ele teve que partir para a capital do centro do País, terra conhecida por gerar um povo ‘rebelde’, que não se conforma com as malandrices e planos de líderes sanguinários, cujos cidadãos fazem justiça com as próprias mãos. Além disso, nela não se contratam Presidentes!

 

Em conversa, nas cadeiras de passageiro da Entre Rios, Manuelinho disse ao seu sobrinho:

 

— Jota, sabias que, por pouco, eu seria contratado para Presidente do Município de Quelimane? — Como assim? Afinal, os candidatos a Presidente dos Municípios não são eleitos nas autarquias para as quais concorrem? — Questionou, estarrecido, o jovem sobrinho.

 

— Jota, Jota… Abra os teus olhos! Isso de concorrer às eleições é apenas o resultado de um contrato com gente que nunca aparece nos holofotes. É um emprego e não resultado de uma agenda política do candidato para a autarquia onde concorre. É um jogo político, meu filho.

 

O sobrinho, possuído de um espírito jornalístico, replicou, sem noção da profundeza dos factos:

 

— Tio, não é assim como as coisas acontecem. O candidato é eleito no seu partido e organiza seu programa eleitoral, que se transforma, quando eleito, na agenda da sua governação. Outros, entretanto, concorrem de forma independente, como fez Daviz Simango. Não é isso que está previsto no pacote legislativo para eleições autárquicas ou mesmo presidenciais?

 

— Jota, Jota. Deixa-me revelar-te algo. Como eu disse, queriam contratar-me para ser Presidente do Município de Quelimane.

 

— Como assim, tio?

 

— Eu estava a coordenar a organização de um evento importantíssimo. Era o Mestre de Cerimónias. Espalhei muita alegria, sobretudo, palavras ditas com sabedoria e confiança, como sempre tenho feito. No final, dois senhores aproximaram-se de mim e apresentaram a proposta.

 

— Sério? Que proposta, tio?

 

— Era um contrato para ser Presidente do Município de Quelimane. Simples quanto isso!

 

— Ahhh, tio, isso não é possível — Interpelou Jota, tentando buscar mais factos sobre o assunto.

 

— Eles disseram que me podiam lapidar e treinar, caso eu estivesse interessado. Afirmaram que poderiam mudar a minha vida e da nossa família. Construiriam uma casa para os vovós e alugariam, para mim, um apartamento na cidade para começar a acostumar-me com a vida de luxo que, caso eu aceitasse, seria a minha próxima companheira pelos cinco anos seguintes.

 

Enquanto o Manuelinho falava, um Chinês atravessou a nossa frente. Era o único passageiro curioso, que fotografava todas as passagens verdes que via ao longo da Estrada Nacional Número Um. Eu até desconfiei, porque já tinha perdido a conta das vezes que ele se havia levantado para registar, com imagens, a nossa floresta verdejante. Pensei nos variadíssimos, alguns não registados, abates de árvores e exportações ilegais de madeiras no País praticados pelos seus compatriotas. Enfim, dirigi o meu olhar ao meu tio, para continuar com a conversa:

 

— O que mais disseram, tio?

 

— Aqueles senhores tiraram um calhamaço de papéis com artigos bem organizados. Era o Estatuto do Partido Político que eu deveria representar e o esquema da minha candidatura. Tinham, também, o contrato de admissão como candidato a Presidente do Município. Possuíam um plano de mobilização de massas. Eu apenas seria a imagem que queriam, por ser natural de Quelimane e possuir qualidades que julgaram haver em mim. Era um esquema de tirar o chapéu. — E qual foi a tua reacção, tio? O que disseste?

 

Manuelinho fez uma pausa. Notei que se tratava de uma decisão difícil que ele deveria tomar, visto que o seu efeito seria de enormes proporcionalidades. Poderia até custar a sua vida.

 

— É verdade que precisamos de mudar de vida, mas não aceitei a proposta. Eu simplesmente recusei-me, Jota. Eu disse-lhes que não queria entrar naquele esquema. Não nasci para isso!

 

— E qual foi a resposta que teve deles, tio? — Questionou o jovem jornalista-estagiário.

 

— Eles disseram: “Infelizmente, acabaste de perder um jackpot, jovem.” E continuaram: “Mas se mudares de ideia, aqui está o nosso contacto. Podes ligar e vamos trabalhar juntos! Lembra-te que podes ser o próximo Presidente do Município de Quelimane.” E depois se foram! Enquanto se retiravam, olhavam para trás, para mim, e faziam dançar as suas cabeças da esquerda para direita e vice-versa. Era um sinal de que eu havia desperdiçado toda a minha vida e futuro!

 

Naquele instante de conversa, interpelada de vez em quando pelo Chinês que fotograva as zonas verdes, espalhadas pelo nosso vasto e belo território nacional, ao longo da deslembrada Ene Um, quase esquecíamos a triste notícia do falecimento da tia Marciana. Mas não era possível!

 

Por um instante, fui pensando no facto de os vários partidos políticos, que inundam os boletins de votos durante as épocas das eleições autárquicas e presidenciais, desaparecem logo após as eleições. Eu não sabia que muitas daquelas fotos são de candidatos contratados para concorrem tanto às autarquias, ao Parlamento e à Presidência. Grande parte deles não tem um plano a longo prazo, por isso, quando perdem, o contrato é exterminado e eles continuam no silêncio e a viverem as suas verdadeiras vidas anteriores ao contrato.

 

No entanto, alguns chegam até a desenhar planos de governação e projectos claros de liderança e transformação das suas autarquias, organização, bem como do País. Porém, as suas vontades voluntárias são substituídas por esquemas políticos que se voluntariam e definem quem deve ser candidato a Presidente de um Município ou País, ou mesmo líder de qualquer Organização!