Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI

Carta de Opinião

segunda-feira, 19 abril 2021 06:46

Nos anos da fome!

Nos anos da fome!

Tudo era escasso

As machambas estavam desertas

Os celeiros vazios

As populações aflitas

Os ratos sem nada para roer!

 

A dor era intensa

Faltava tudo

Até de sexo completo

As sementes não germinavam

Os campos estavam improdutivos

Todos choravam!

Ninguém mais aguentava

 

Nos anos da fome!

A seca havia assassinado tudo

As cheias haviam levado tudo

As balas mutilando e matando inocentes

Em casa tínhamos apenas água e sal, mas sem produtos alimentares por confeccionar.

Os deuses estavam a castigar-nos,

talvez pelo facto do povo tanto pecar nas suas escolhas;

 

Nos anos da fome!

Abolimos a religião e reeducamos os pastores e seguidores;

Assaltou-se o dinheiro dos pobres em nome da liberdade;

Cultuamos mares de inverdades

numa terra em que tudo os ratos roeram!

 

Nos anos da fome!

Irmãos e pais lutaram mortalmente por 16 anos em nome da democracia e hoje enganados pela riqueza do gás, crianças, jovens e adultos instalaram a desordem,

aliada da fome!

 

Omardine Omar, Maputo- Moçambique - Abril de 2021

quarta-feira, 14 abril 2021 08:22

Cantando com os meus demónios

Na esplanada do Hotel Tofo-Mar não há vivalma, nem no bar onde cheira a bafio no lugar do aroma agradável do café. Ninguém vocaliza qualquer coisa, todos os trabalhadores aqui presentes parecem resignados. Há um silêncio de tédio que se parece com o prenúncio de uma chacina, não se ouve nenhum tilintar de talheres ou o som da cerveja jorrando para as grandes canecas ou para os copos. Porém, a música das ondas do Índico que se vão esbatendo na areia, ainda nos dá a esperança de que a vida vai voltar.

 

Mas eu venero lugares livres onde há silêncio, é por isso que estou aqui sem me importar com tudo o mais. Vim a Tofo para me abastrair, e Tofo só faz sentido para mim quando está assim, sem ninguém, ou com meia dúzia de gatos pingados que chegam a este lugar com o único propósito de ouvir a música do mar infinito, porque quando há muita gente, essa mesma música perde-se nas vozes que querem cantar também.

 

Estou sentado na esplanada, descamisado, bafejado por este paraíso sem saber ao certo o que  vou beber, se uma água ou uma cerveja, tanto faz, apesar de que a cerveja tem essa vocação de me ajudar bastante na invenção dos solvejos, então é melhor pedir uma caneca.

 

- Dê-me uma caneca, por favor.

 

O garçon traz uma irresistível caneca de cerveja clara, que borbulha por dentro e transborda uma leve espuma que apresso-me a dominar com os lábios. Bebo um longo gole e invade-me imediatamente uma falsa sensação de bem estar. Sorrio para o oceano que não pára de cantar, cuja sequência das ondas faz-me lembrar que depois de nós vêm outros logo a seguir, talvez sem as mesmas armas que as nossas, como as próprias ondas que não terão a mesma intensidade das que hão-de vir depois.

 

Já vou na terceira caneca e o blues começa a brotar de dentro de mim, como se eu mesmo fosse o Budy Guy cantando Sweet home Chicago, ou o João Paulo imitando John Lee Hooker nas noites do Gil Vicente. Mas estou aqui sozinho feito uma lenha fora do feixe, e assim facilmente posso ser quebrado, então tenho que recorrer ao blues para convocar os meus demónios que me fortelecem a alma.

 

- Senhor, vai mais uma!

 

Eu nem tinha reparado que a caneca esvaziara. Estou alucinado pelo silêncio que se recusa a desvanecer, não obstante o zumbido dos barcos de recreio que levam mergulhadores ao fundo do mar. Bebo devagar sem me entregar aos pensamentos, não bebo para pensar, mesmo estando sozinho com os meus demónios, que estão loucos pelo blues que vai saindo mais intenso ao ritmo do efeito do álcool me vai subindo à cabeça. Mas já não posso mais continuar aqui, por hoje é bastante, estou saciado pela poesia da Tofo. Um lugar para o qual um dia voltarei, outra vez. O resto fica por conta das emoções.

quinta-feira, 08 abril 2021 13:17

A Josina que suas irmãs fingem conhecer

As irmãs da Josina fingem conhecê-la e reclamam por capulanas para celebrar!

 

Afinal, o que realmente as irmãs da Josina celebram no dia 7 de Abril?

 

A Josina Machel que hoje celebram, aos 7 anos iniciou os seus estudos, a 1ª classe, em Mocímboa da Praia, o local do primeiro tiro dos insurgentes, a 5 de Outubro de 2017, onde ainda hoje clama pelo socorro das mulheres e homens moçambicanos.

 

A Josina que hoje celebram juntou-se ao Núcleo dos Estudantes Africanos Secundários de Moçambique (NESAM), onde desenvolveu a sua consciência político-cultural para lutar por Moçambique e libertar o País do jugo colonial português.

 

Aos 18 anos, Josina abandou o solo pátrio para Tanzânia e Zâmbia. Pelo caminho, foi presa, e em seguida, malandramente deportada; ainda jovem, era espionada por Polícias coloniais por causa das suas aventuras político-culturais movidas pela então Frelimo (de todos) contra a opressão portuguesa.

 

Aos 19 anos, Josina abandona o Moçambique para Suazilândia, onde foi acantonada num centro de refugiados; pouco tempo depois, com ajuda de um Pastor Presbiteriano, ela refugiou-se para África do Sul, e depois para Botswana, onde foi considerada ‘visitante indesejada’ e pelo governo Britânico, deportada.

 

Graças a Eduardo Mondlane, que convenceu aos Britânicos, Josina é enviada a Zâmbia e, depois, para Tanzânia, seu Centro de Formação político-militar, onde se tornou mulher Moçambicana, mesmo fora de Moçambique, tudo por conta da libertação do seu povo.

 

Aos 20 anos, Josina assiste Janet Mondlane, esposa de Eduardo Mondlane, no Instituto de Moçambique, para treinar seus irmãos e irmãs para o alcance da independência nacional.

 

Aos 21 anos, Josina abandona uma Bolsa de Estudos para Suíça e junta-se ao Destacamento Feminino, onde teve formação político-militar para melhor enquadramento na luta de libertação nacional.

 

Em tempos de guerra, Josina cuidava dos feridos, órfãos e de crianças abandonadas; fazia de tudo para lhes fornecer apoio médico, moral, educacional, social.

 

Aos 23 anos, Josina advocava pela inclusão de raparigas e mulheres em todos aspectos da luta de libertação. Nesta altura, ela torna-se Representante das Relações Internacionais do Destacamento feminino na então Frelimo (de todos).

 

Aos 24 anos, Josina viajava para fóruns internacionais, onde partilhava a sua experiência e de outras jovens e mulheres como advocacia pela igualdade de participação em todos aspectos de desenvolvimento ao nível local, regional e internacional.

 

Ainda aos 24 anos, Josina lidera o Departamento de Assuntos Sociais e trabalha extensivamente para prover cuidados de saúde e educacional para crianças no norte de Moçambique e, naquela altura, instava pela necessidade de formação de raparigas e mulheres.

 

Em meio à guerra, Josina lutou por Moçambique. Após a morte de Mondlane, ela juntou-se à Janet para consolá-la por aquele ataque que, também, era um golpe para Moçambique e todos Moçambicanos.

 

Aos 25 anos, Josina é diagnosticada cancro do fígado. Mesmo assim, ela continua a lutar por Moçambique exercendo, incansavelmente, as suas funções na então Frelimo (de todos).

 

Nesta época, Josina deixa seu filho Samito, de apenas 1 ano de idade, em Tanzânia, e viaja à Niassa para tratar de assuntos sociais e ajudar raparigas e mulheres naquele período de guerra que matava o sonho de muitas mulheres e homens Moçambicanos.

 

Ainda aos 25 anos, Josina viaja à Cabo Delgado, onde começou sua trajectória educacional, para verificar o progresso de programas sociais naquela província. Nesta altura, ela sofria de graves problemas de saúde, e o cansaço e a perda de peso, gradualmente, tiravam a vida desta mulher lutadora pela causa nacional Moçambicana.

 

Já com saúde totalmente debilitada, e de regresso à Tanzânia, Josina é internada e no dia 7 de Abril de 1971, deixando para trás o seu sonho de ver Moçambique liberto da opressão crónica, ela morre e os seus restos mortais foram entornados no subsolo.

 

Contudo, o seu sonho continua sendo: “Camaradas, já não posso mais continuar a lutar, levem a minha arma e entregam-na ao Comandante Militar para contribuir para a salvação do povo Moçambicano”.

 

Um ano após a sua morte, a então Frelimo (de todos) declarou 7 de Abril como Dia Nacional das Mulheres, e em Março de 1973 estabeleceu-se a Organização da Mulher Moçambicana (OMM), enquanto movimento social e político inspirado pelos ideais de emancipação defendidos por Josina, hoje quase todos simbolicamente trocados por simples capulanas enroladas em corpos que também clamam por libertação.

 

Hoje, a Mocímboa que ensinou Josina a ler está em chamas. As suas irmãs Palma, Macomia, Muidumbe, Mueda, também choram lágrimas amargas de guerra e assalto à soberania nacional. Mesmo assim, as irmãs da Josina fingem conhecê-la e reclamam por capulanas para celebrar.

 

Os grandes problemas crónicos da pobreza generalizada, as dívidas ocultas, os conflitos armados e a crise humanitária, os casamentos prematuros, violações de direitos humanos, abuso de menores e violência doméstica, as grávidas de Matalane, os assaltos aos produtos das mães nos mercados, a inexistente assistência social em meio à Covod-19, entre tantos outros problemas, as irmãs da Josina fingem conhecê-la, e os problemas desconhecê-los, e reclamam por capulanas para celebrar.

 

Afinal, o que realmente as irmãs da Josina celebram no dia 7 de Abril?

 

Jota de JESUS - Janato

quinta-feira, 08 abril 2021 13:12

O Director que desmaiou na visita presidencial!

Nos anos 70 e 80 do século XX, Moçambique era dirigido pelo presidente Samora Moisés Machel, um dirigente carismático e exigente. Samora Machel queria membros do seu governo comprometidos com o saber e bem-fazer, assim como a valorização da coisa pública. A exigência era para todos. Independentemente do posto governamental que ocupasse.

 

Para tal, uma das fórmulas encontradas para combater a ociosidade, incompetência, nepotismo e sabotagem era realizar visitas não informadas – como acontece nos tempos hodiernos, em que os dirigentes ficam meses se preparando para convencer o presidente que estão a trabalhar. Sucede que, num belo dia, depois de ouvir várias reclamações de uma empresa pública, o presidente Samora Machel decide visitar a mesma…!

 

Na empresa, onde o dirigente assumiu todos adjectivos pejorativos dos tempos do socialismo em execução, o Director da empresa é encontrado de surpresa, com as tripas do peixe espalhadas pela fábrica toda. O homem estava sem maneira – viu na mentira um mecanismo de autodefesa- que não resultou!

 

Começou o diálogo:

 

Presidente Machel -  "Senhor Director! Estamos numa empresa do povo moçambicano. Reconhece? O vosso trabalho é produzir para que o povo consuma e o país desenvolva. Mas não é isso que acontece nesta empresa. Podes nos explicar?"

 

O Director - "Senhor Presidente, o nosso trabalho tem corrido da melhor forma possível, mesmo com dificuldades, mas nós cumprimos as metas…!"

 

Presidente Machel - "Não é verdade. O Senhor é incompetente e esta prejudicar o desenvolvimento do povo. És um sabotador e inimigo do povo moçambicano. Vamos passar de corredor em corredor, quero ver este bom trabalho que dizesses estarem a fazer. Vamos!"

 

Começa a visita – o Director vem que tudo seria descoberto e confirmado por S. Excia e pede para ser substituído por seu adjunto, porque estava com problemas intestinais… e assim foi a casa de banho, fingindo estar a passar mal.

 

Minutos passaram…mas o presidente Samora continuou a circular pela fábrica. O director pensado que ficaria pela casa de banho até a saída da instituição do presidente Machel (...) 30 minutos passaram e o presidente Samora Machel vê um conjunto de máquinas empoeiradas e acantonadas num local e trabalhadores sem actividades, e diz, é disso que eu falava, sobre sabotadores, preguiçosos e inimigos da independência e da revolução do povo moçambicano. Em seguida, pergunta, onde está o Director – o adjunto responde que ele foi à casa de banho. O Presidente diz, onde fica a casa de banho e os trabalhadores apontam em coro.

 

Calmamente, o Presidente Machel dirige-se a casa de banho e começa um monólogo em língua materna Xichangana…"o homem é mau. Está visitar tudo e a perguntar sobre o trabalho, nós já estamos cansados…" com o monólogo, o Director da fábrica que estava a esconder-se na casa de banho e aflito, pensando que era seu adjunto, pergunta - Wena Alberto, aquele chato já foi?

 

De uma forma calma, o presidente Samora que o aguardava do lado exterior da porta da casa de banho – responde: "sim – podes sair. Estou aqui à sua espera." – o homem entrou em choque e desmaiou na casa de banho, e sem alternativas o homem foi exonerado e enviado para o campo de reeducação…!

 

Texto escrito baseando-se numa história real, ocorrido num dos anos da administração Macheliana (1974 – 1986) e testemunhado por vários quadros do período preferiram não serem citados pelo autor.

Era uma fogueira com intensas labaredas. Desafiava as fortes chuvas que vinham de Maputo e Nampula e Xinavane e Sofala e de dentro da sua zona de influência. A precipitação caía em catadupa sobre o coração dessa lareira, que entretanto, no lugar de desvanecer, ressurgia. E triunfava nos combates. A equipa do Gomes da Maxixe, como  também vai ser conhecida esta formação, tornou-se um elo. Unia todos os bitongas e todos os vathswa e todos os vatchopi e todos os vandawu que desciam de Mambone e Inhassoro para festejar a grandeza de um conjunto de mito.

 

Mesmo assim, ainda alguém tentou contrariar o rumo vertiginoso de um conjunto que tinha um patrão forjado para as sagas. Reuniram-se dirigentes e antigos jogadores de futebol nascidos em Mucucune (arquipélago discreto  localizado à ilharga da cidade de Inhambane),  e o obejctivo central era reformular a equipa local para, com todas as armas possíveis, obstruir as “brincadeiras” dos maxixenses. Estávamos nos meados da década de oitenta, e o futebol era na verdade o ópio de todos..

 

Tocaram-se trombetas em toda a província, anunciando o grande jogo que vai colocar frente a frente o Nova Aliança da Maxixe e o Mucucune, numa luta em que a equipa da Maxixe tinha que ganhar para se manter no Campeonato Nacional, e os “ilhéus” também precisavam da vitória para ascenderem à panóplia dos grandes. No fundo o Mucucune tinha bons executantes, capazes de alimentar as expectativas, é por isso que o Gomes da Maxixe passou noites sem dormir, enquanto o jogo não se realizasse.

 

A província inteira borbulha porque, como se propala pela voz do povo, alguém vai  morrer. Foi convidado um grupo de zorre para abrilhantar a festa que se espera impetuosa. O farfalhar dos trazeiros das mulheres,  libertados na dança, segundo se diz por aqui, é um forte incentivo para os espíritos e para o público que vai abarrotar o campo. E como se isso não bastasse, vem aí a orquestra de Timbila ta Mwaneni e a sua louca matxatxulani, que vai nos mostrar o feitiço das coxas e das ancas.

 

Os locutores da Rádio Moçambique não páram de anunciar a realização da partida, e em todo o lado a conversa é essa, ninguém sabe o que na verdade vai acontecer porque esses tipos de Mucucune podem fazer das suas. Outros ainda diziam, agora é que o Gomes vai sentir o sabor do sal. E o sal vem de Mucucune. Mas a equipa da Maxixe venceu uma grande partida, derimida sobre o fio da navalha.

 

O Nova Aliança da Maxixe era a lenda dos bitongas, um desiquilibrador dos prognósticos. Não é por acaso que no seu logotipo vamos ter uma gaivota ( nhalégwè em bitonga). Significa que é uma equipa concebida para atravessar mares e oceanos. Não há vento que o desvie do seu azimute. É como se todas as suas realizações fossem feitas a partir do topo, de onde já não se pode ir a mais nenhum lugar, ou melhor, de onde só se pode partir para a levitação.

 

Eles eram a glória da Maxixe, e de toda a província de Inhambane, até ao dia em que o motor  de toda a gravitação, o Gomes da Maxixe, deu o último suspiro. Aí tudo começou a desmoronar, até entrar em derrocada. Mas o que mais nos entristece é que até hoje nunca ouvimos, a nível oficial, nada sobre uma homenagem a um homem que deu tudo de si e da sua fortuna, para alegrar o povo. Agora a  gaivota já não voa. E o mais provável é que sucumba de vez. O que seria muito lamentável!

quarta-feira, 31 março 2021 06:29

A senhora e os mortos em Cabo Delgado

O que mais queria neste instante era doar uma lágrima à senhora da televisão internacional que anuncia os mortos em Cabo Delgado. As suas pestanas dispersam-se quando pisca os olhos e voltam a unir, de imediato, como se quisessem varrer o peso da mágoa que sente. A mágoa nos olhos é pesada, basta reparar nos óculos dos idosos que gotejam e eles sempre recuperando-lhes com a isca do indicador. É uma senhora bonita que antes de sair de casa, passou o rímel, manchou-se as bochechas com pó de arroz e esqueceu-se de levar uma lágrima porque o editor do jornal não a avisou que ia anunciar os mortos em Cabo Delgado.

 

Vê-se nas suas íris uma pequena nódoa líquida, um pequeno coágulo salgado que se forma, mas aborta-se logo porque não pode chorar em frente à câmera, por não pode inundar o rodapé que empurre o alfabeto no seu peito.

 

Vejo os mortos em Cabo Delgado pela televisão internacional, porque as nossas televisões bailam sobre a derrota dos mambas; claro que o futebol é importante, mas não é tão importante como as vidas que são goleadas por balas em Cabo Delgado. Vá que não vá, os mambas foram derrotados e tiveram o pé fora da classificação e podem ainda revirar o jogo; e as populações que correm para as matas, em Palma, para pelo menos manter a cabeça na classificação do corpo? E os mambas ainda tiveram tempo de chorar quando o apito soou no campo, era bom que os de Cabo Delgado também chorassem, tirassem as camisas e abraçarem-se antes de serem despedaçados pelos terroristas. Era bom.

 

Vejam a senhora da nossa televisão que pisca o olhar para esconder a lágrima que transborda pela derrota dos mambas e vejam a senhora branca, da televisão internacional, que come a lágrima pelos mortos em Cabo Delgado.

 

Vejam pela televisão internacional o hotel distribuindo senhas de desespero aos estrangeiros, vejam o rodapé que corre e anuncia as populações que correm nas matas; vejam tudo isso, e vejam os mambas que mesmo assassinados pela derrota regressam ao hotel, arrumam-se nos quartos e lamentam por estar no rodapé da classificação. Em Cabo Delgado não há prolongamentos, não há cartão amarelo, não há cartão vermelho, não há fora de jogo, não há substituições. E se os terroristas, ao menos, entendessem o fora do jogo. Talvez, de tempos a tempos, podiam dizer: “não vale a pena tirar a cabeça daquela, está em fora de jogo” ou “não matem esse senhor, merece apenas um cartão amarelo”.

 

Claro que importam os pontos dos mambas, mas não há nenhum ponto capaz de recolocar o pingo de esperança que uma criança derrama nas matas de Palma, não há nenhuma esperança de qualificação para a fase de grupos de uma mãe que corre com o peito possuído de leite de um filho que esqueceu na mata. O que mais queria neste instante era doar uma lágrima à senhora da televisão internacional que anuncia os mortos em Cabo Delgado.

 

Vejam a câmera da televisão internacional que amplia as ruas de Palma, vejam as câmeras das nossas televisões que metem num ângulo o adepto que chora a bola perdida dos mambas; claro que tudo é importante. Que me dera parar a senhora da televisão, dizê-la que sou de Moçambique, pedir uma vassourinha para abrir-lhe um pequeno dreno no pó de arroz e colocá-la uma lágrima. Dizem-me as nossas televisões que John Magufuli morreu de insuficiência cardíaca e não entendo como as pessoas morrem em Cabo Delgado mesmo com botijas de gás.

 

Onde está a professora Reginalda, da quarta classe, que me mentiu; disse-me que o primeiro tiro contra o colonialismo foi dado em Cabo Delgado. É mentira, professora, o primeiro tiro vai ser dado pela senhora da televisão internacional quando a colocar uma lágrima, quando sobre a câmera a lágrima cair como se se curvasse aos mortos de Cabo Delgado. Não sei o nome da senhora da televisão internacional, mas gostava de colocá-la uma lágrima no olho; talvez no fim do jornal o meu nome subia com outras letras na ficha técnica como quem colocou a lágrima à senhora.