Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

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Carta de Opinião

quarta-feira, 26 fevereiro 2020 08:54

Morrer escondido no whisky

Estou a ouvir Rádio desde às quatro, deitado sozinho na cama com saudades da minha mulher que zarpou há cinco anos, farta da minha conduta, e eu não vejo o mínimo sinal de que um dia o caminho dos meus pés voltará a ser como era dantes, cheio de flores. Moro no décimo sexto andar de um prédio na 24 de Julho, e até hoje não sei como é que ainda não me suicidei, pois tenho tudo facilitado pelas alturas. Não preciso de recorrer à corda nem ao veneno, daqui posso saltar sem recurso ao pára-quedas.

 

O locutor de serviço é Agostinho Luís, meu ídolo. Um homem que tem toda a alma na voz devastadora, capaz de provocar terramotos em todos os sentidos. Com este actor a falar eu não tinha outra saída que não fosse entregar-me, por inteiro, ao seu chamamento. Agostinho é o próprio sino, cujo som produzido pela batida do tremendo badalo, vai reboar pelos quatro cantos do globo que está dentro de cada um de nós.

 

É madrugada em Maputo, dizia ele na sua voz de ouro, para depois tocar a música “Chove chuva, chove sem parar”, do brasileiro Jorge Ben, e eu senti fortemente o escorrer do coração, pensando na minha mulher, na minha linda mulher perdida para outros braços. Para outro coração, melhor que o meu.

 

Saltei da cama quando Agostinho voltou a falar, e disse assim, “chove em Maputo”. Mesmo assim, este locutor de elevada classe, inigualável, não podia preencher o vazio deixado pela minha Mbuli, muito provavelmente aconchegada no peito de outro homem nesta madrugada fria, depois de uma noite inteira cheia de amor, e eu sem amor nenhum. Sentindo-me um nenhumano. Um verme.

 

Fui à varanda do meu quarto. Olhei lá fora e chovia em cascata. Parecia que Deus tinha aberto todas as torneiras do Céu, e se eu daqui me atiro, sem páraquedas, não tenho a menor dúvida de que o meu corpo irá esparramar-se lá em baixo, de vez. Mas eu não vou fazer isso, para além de que venero a chuva, ela não merece misturar-se com o meu sangue envenenado pelo álcool que não páro de insuflar neste corpo putrefacto, desde que Mbuli foi embora. Aliás, ela foi exactamente porque eu sou uma pipa.

 

Volto à cama e sento-me na borda ouvindo o Agostinho Luís. Olho para a garrafa de whisky na cabeceira e não resisto. Acendo um cigarro e impregno todo o espaço que me acolhe com fumo. Entorno a bebida no copo vazado no último gole da noite, e partir daqui, o que me espera é a pângeda. A continuação da pândega. E hoje também não vou trabalhar, que se lixe! Quem vai mudar o mundo não sou eu!

 

Queimo as goelas com Scotch, e os pulmões com fumo, sob a doce sombra do Agostinho Luís que, em sintonia telepática comigo, põe a girar a universal  Eu bebo sim/ Eu tou vivendo/ Tem gente que não bebe e tá morrendo/ . É um samba de Elza Soares, de 1973, celebrizado na voz de Elizeth Cardoso.  Mas toda essa paródia não vai impedir a minha derrocada.

 

Mbuli! Ela não me sai dos pensamentos, apesar de eu saber que não sou digno dela. E o que mais me dói nisto tudo, é que, enquanto caminho pelo desfiladeiro ígreme em direcção ao poço escuro com espigas de aço à minha espera, ela brilha nos patamares da felicidade. Com outro homem. Melhor do que eu. Isso é que me doi!

sexta-feira, 21 fevereiro 2020 07:27

Soy loco por ti América

A reboque do dia 14 de Fevereiro ,  o dia dos namorados,  o mês de  Fevereiro é o dito de amor. Em complemento da onda amorística , está o enquadramento do título deste texto (sou louco por ti América, na língua portuguesa) que foi  emprestado com a suposta permissão dos compositores/autores brasileiros  da música com o mesmo título e feita em homenagem à Che Guevara. Desta não é para ele a homenagem, mas sim para a  América (Estados Unidas da América, EUA),  que um amigo, seu eterno apaixonado,  ofereceu-a  um buquê de rosas.  Encontrei o tal amigo,  no passado dia 14 de Fevereiro - todo de vermelho, incluindo as rosas - à porta da embaixada americana aos gritos: “Soy Loco por ti América!”

 

Esta cena fez-me algum ciúme. A América  também é minha e aposto que igualmente seja tua.   Eu tive e tenho  um caso  - na verdade casos -  com a  imortal e controversa América. Uma nação indispensável, segundo as palavras de Madeleine Albright, ex- secretária de Estado dos EUA nos tempos do ex-presidente Bill Clinton. No texto “O dia em que me encontrei com Ronad Reagan”  é evidente o meu encanto por esta mulher poderosa e talvez por isso: amada e odiada.  

 

Para ilustrar a grandeza de mulher que é a América, nada melhor  que recorrer ao conceituado jornalista português, Miguel Sousa Tavares (MST),  que,  por alturas do sismo que abalara o Haiti, em artigo no Jornal  português Expresso de 23 de Janeiro de 2010, escreve:

 

” …nos grandes momentos da história da humanidade, de há quase cem anos para cá, os Estados Unidos são, de facto, a nação indispensável. Algumas vezes para o mal, outras, como no Haiti, para o bem (…). Em 39-45, como antes, em 14-18, e depois, em 1991, na primeira Guerra do Golfo, a Europa e o Ocidente ficaram a dever a vida ao esforço de guerra da grande nação americana.” No texto e mais adiante MST prossegue: “ (Os EUA) são capazes de produzir um George W. Bush, que impõe ao país uma guerra (segunda Guerra do Iraque) sem sentido, apenas destinada a servir a sua vaidade de se proclamar "um Presidente de guerra", mas também “… são a nação que é capaz de, num instante, mobilizar os meios e a determinação para acorrer a uma tragédia com a dimensão do Haiti e fazê-lo de forma eficaz, profissional e humana”.

 

Por cá – a Pérola do índico – a generosidade do amor americano, a título de exemplo, ficou patente no  projecto “USA for África”,  na primeira metade dos anos 80,  cuja música,  com o mesmo título, reunindo, na altura, o melhor que  existia na nata musical americana. No pacote do projecto (do povo americano para o povo moçambicano) veio o leite em pó, o milho/farinha amarela, roupas das calamidades  e as carrinhas  azuis que são marcas passadas e  indeléveis da presença - em terras do índico - dessa namoradinha do mundo  que é a América. Outras passagens e mais recentes foram as registadas no quadro do  processo de implementação do Acordo Geral de PAZ (1992) sob a égide da  ONUMOZ,  Cheias do ano 2000 e mais recentemente (2019) aquando dos ciclones IDAI e Keneth e ainda a propósito das  “dívidas ocultas”.   

 

Nesta e longa relação, a América ainda foi e é das nações que mais apoia os sectores  privado e da saúde, neste destacando os esforços do combate ao HIV-SIDA.   E pelos tempos que correm,  a América é uma das esperanças para o futuro do país por conta de avultados investimentos das  suas empresas na área  de hidrocarbonetos. Registar que nos últimos tempos,  a América está cada vez mais próxima e mais preocupada com a sua beleza. Ademais a concorrência está à vista, em particular a presença de uma velha e milenar asiática, disfarçada de uma gostosa  “quatorzinha” - adoentada por estes dias - que todo o mundo a quer “paquerar”.  

 

Contudo,  e desde a primeira troca de olhares, nem sempre a relação foi um mar de rosas. A América, em algum momento da relação, relegou a Pérola do Índico para a categoria de indesejável e a Pérola, bem machão,  já considerou a   América uma “persona non grata” (pessoa não agradável). Os motivos?  não interessa lembrar de momento. Quiçá num outro texto e com um título  adequado. Entretanto,  quem quiser saber pode ligar  para a América, mas antes aconselho ao interessado a  “tchekar” o respectivo cadastro pessoal.

 

E por falar em cadastro, lembro-me das marchas de 2003 - pelo mundo fora e por cá - contra a invasão americana ao Iraque. Foi interessante reparar  que os marchantes aliviavam a sede com uma coca-cola e no mínimo cada um trajava pelo menos um dos seguintes itens: Jeans, óculos de sol Ray-Ban, fones da Bose,  sapatilhas e boné da Nike. Os mais abastados até que  se fizeram à concentração em meios circulantes de marca americana.

 

E é  também por estas e outras razões que a América – amada  e odiada - é a tal nação indispensável que no passado dia 14 de Fevereiro, o dia dos namorados,  o meu amigo presenteou-a com um buquê de rosas e defronte à embaixada americana, a plenos pulmões, sucessivamente, gritava: “Soy Loco por ti América!”

quinta-feira, 20 fevereiro 2020 07:33

António Frangoulis no Djambo*

Numa altura em que as pessoas sugeriam, por zombaria, um megafone para António Frangoulis amplificar a voz, definhada por uma infecção que parecia determinada a apagar  de vez a alma do criminalista, a qual residia exactamente na laringe, eis que ele decide enfrentar a faca do otorrinolaringologista. E o resultado da intervenção ciríurgica é esse:  a vocalização das palavras regressou com alguma limpidez.

O homem estava no auge, desdenhando os detractores do seu palmarés, e de peito aberto, predispôs-se para todas as batalhas, sem disfarce, enfrentando os gurus da Frelimo que tremiam perante um camarada que os desafiava. Frangoulis sabia que a eles não convinha ter um inimigo da sua magnitude, um indivíduo que se metamorfoseava em direcção ao livre arbítrio da sua consciência. Tinha certeza, absoluta, de que naquele tapete rolante onde todos giravam, corria riscos. Enormes. Mesmo assim, talvez com grande dose de arrogância, decidiu avançar como os gnus, cuja marcha pode ser interrompida para sempre na travessia do rio dos crocodilos.

 

Foi isso que Frangoulis, tornado personagem, um actor de topo, fez. Atirou-se ao rio traiçoeiro para nadar, em determinados momentos, de mariposa. Noutros momentos, de bruços, e nas etapas cruciais convocava todas as suas energias para nadar de livre. Aliás,  pode ter sido esta ousadia, este desprezo pelos algozes, o fundamento para o túnel escuro que o vai levar ao pricipício, até prova em contrário, sabido que estamos perante alguém que tem demonstrado uma grande capacidade de refocilar. Quer dizer,  você  enterra um gato vivo a vários metros de profundidade, e ele refocila. Ou seja, volta à superfície. E António Frangoulis parece ser um gato.

 

Encontrei-o no Djambo, sentado numa das mesas da esplanada, com os dois braços suportando o queixo por via das mãos coladas uma sobre a outra. Reparei que dançava com as pernas, provavelmente para espevitar os pensamentos. Olhava aparentemente para o vácuo, quando no fundo podia estar a vigiar todos os movimentos do lugar, sabido que uma pessoa do porte de António Frangoulis, está proibida de se distraiar. Qualquer movimento para ele é suspeito. E a mão direita está em permanente comunicação silenciosa com o revólver dessimulado.

 

Há uma azáfama na baixa da cidade de Maputo, os vendedores ambulantes misturam os apelos ao negócio, com as buzinadelas dos automóveis que não cessam de nos fustigar os tímpanos. Os camiões monstruosos invadem a “25 de Setembro”, como se fosse normal andarem na cidade, descarregando os compressores como sempre o fazem na auto-estrada, brrrrôôôôôôoooooo! O Djambo torna-se inóspito, desvalorizando o grande simbolismo que ele carrega, na longa história de uma cidade cosmopolita, que vai caminhando irreversivelmente em direcção ao caos.

 

Frangoulis faz parte deste drama, nunca fugirá dele, e é mentira que não tenha medo. Quem não tem medo não anda com um revólver furtivo por debaixo da axila. Mas eu estou curioso, o que é que este homem está a fazer aqui? Beber whisky pode ser um pretexto. E ele bebe em doses cavalares, sem ninguém por perto para conversar. Até porque eu o conheço, podia estar ali com ele, porém escolhi recolher ao interior do bar, de onde podia controlar em pleno os movimentos do “bufo” mais mediático de Moçambique. Temido pelos bandidos e por outros “bufos”.

 

Desde que eu cheguei, já bebeu quatro duplos – pode ter vertido goela abaixo outros antes -  e ainda não notei qualquer alteração no seu comportamento. Tirou as mãos por debaixo do queixo. Tem agora os braços cruzados por cima da mesa, onde o copo de whisky funciona como uma lamparina para iluminar as ideias. Ele continua a dançar com as pernas, e parece alheio a vozearia dos bebedores entusiasmados que enchem o Djambo. Engajados na conversa.

 

Quando a empregada de mesa movia-se para depositar o sexto duplo na mesa do “meu” personagem, ouviu-se uma explosão que parecia de uma arma. Muitos atiraram-se para debaixo das mesas. Outros, terrivelmente assustados, perderam o descernimento e correram para a estrada onde podiam ser atropelados, outros ainda foram se apertar na casa de banho. Mas António Frangoulis manteve-se tranquilo no seu lugar, brincando com o copo vazio. O estoiro era de um pneu.

  •  Texto de imaginação
terça-feira, 18 fevereiro 2020 08:50

Até quando vão durar?

Vezes sem conta, ao volante do meu carro ou então em caminhadas para execucação das minhas tarefas do dia-a-dia, encontro-me a observar minuciosamente para as rachas dos edifícios da nossa capital, Maputo. Pergunto-me até quando irão resisitir as estruturas dos nossos edificios, que ja não são recentes e para piorar, apresentam rachas, infiltrações, reabilitações que além de desordenadas e fora de hora, danificam as estruturas da maioria dos edifícos da cidade de Maputo. Será preciso que um desastre aconteça para que os de direito reajam a este fenómeno? Eu sou suspeito a falar, porque resido num prédio de 16 andares, cuja degradação assume cada vez mais cenarios preocuopantes, feliz ou infelizmente, o edificio onde vivo, esta melhor que alguns que vejo. Pensemos! Um edificio de 16 andares tem 32 flats e vivem aproximadamente 200 pessoas, se julgarmos que cada família seja composta por 5 pessoas. Quantas “vidas”, quantas crianças, quantos sonhos, que podem acabar em edificios que podem desabar a qualquer momento. E os impostos prediais pagos a direcção da cidade? Até hoje, nunca me deparei com algum técnico ou engenheiro que fosse avaliar o estado dos edifícios. Quererá isso dizer que o município não está preocupado com a condição e segurança de vida dos municípes? Eu espero, porque confio no seu bom trabalho, que Ministro das Obras Públicas, Habitação e Recursos Hidrícos, Osvaldo Machatine, tenha um plano para esta situação porque como se diz, “é melhor prevenir do que remediar”. E para que não me acusem e nem eu mesmo me sinta culpado por apresentar apenas problemas e não soluções, deixarei ficar algumas das minhas opiniões para possivel resolução ou minimização deste problema:

 

  • Muitos moradores, apesar da existência de um núcleo de comissão de moradores, não contribuem para a resolução de pequenos problemas do condominio, então sugeria eu que fosse imposta a obrigação de cada morador contribuir para a (reabilitação, substituição, reparação) de elementos cruciais ao edifício.
  • Embora pareça tarde, devido ao avançado estado de degradação do prédios, necessidade de os prédios terem contratos com seguradoras.
quarta-feira, 12 fevereiro 2020 10:19

Adios, “Dôs Santos”! (1929-2020)

Há poucos dias, compulsando caixotes de arquivo, achei o original do livro “O Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora que prometera oferecer a Marcelino dos Santos, histórico nacionalista, poeta  e político moçambicano.  A decisão de oferta foi em resposta a curiosidade  dele em conhecer a minha biblioteca, manifestada durante uma de duas longas reuniões em que eu participara com ele e  outros convidados no mês de Janeiro de 2007. Recordei-me da promessa no texto “Por onde andas, Kalungano?” escrito e publicado, em Maio de 2019, por ocasião  da celebração do  seu  90º aniversário natalício.

 

Na publicação do texto, um dos comentários dizia: “Há que saldar igualmente a promessa oculta” (oculta no sentido de que Marcelino não sabia de tal promessa).  Confesso que me arrependo por não tê-lo feito e hoje, 11 de Fevereiro de 2020, com a sua morte,  a dívida  - fazer chegar “O Processo Histórico” a Marcelino dos Santos,  também Kalungano, Lilinho Micaia ou ainda  “Dôs Santos”- ainda continua por saldar. Segundo Óscar Monteiro, outro nacionalista moçambicano,  o “Dôs Santos” era o toque francês pelo o qual o mundo chamava a Marcelino dos Santos nos corredores das conferências internacionais.

 

Enquanto  penso numa alternativa à física  para a  entrega do livro e  fora os episódios dos “meus encontros” com Marcelino dos Santos, narrados no texto a que me referi acima, vêem-me à memória outros momentos e circunstâncias, não tão importantes, mas interessantes,  que têm em Marcelino dos Santos  o foco central.

  

Nos preparativos das  duas e longas reuniões citadas anteriormente, o  interlocutor  destacado por Marcelino dos Santos contou-me um episódio de ambos quando da participação de Marcelino dos Santos  - como convidado e orador - numa conferência internacional em Paris, França, algures em meados da década de 2000. Creio que foi por ocasião da celebração cinquentenária de um encontro internacional da nata intelectual de nacionalistas e poetas africanos, e não só, que se realizara  igualmente em Paris no qual Marcelino esteve presente. Aliás, nessa celebração ele seria um dos ainda vivos participantes desse memorável encontro.  Na preparação do discurso, o interlocutor conta que  Marcelino dos Santos estava relutante em  usar uma certa frase por si recomendada, mas no final aceitou-a. Na apresentação, essa frase foi muito apreciada o que levou Marcelino dos Santos  a comunicar  ao interlocutor que  ele, o interlocutor, passaria  a citá-lo quando a empregasse.

 

Numa recente viagem a  Angola,  visitei,  em Luanda, o Majestoso Mausoléu Agostinho Neto, nacionalista e 1º presidente de Angola. Na sequência de fotografias emblemáticas  que passam numa tela gigante vi o inconfundível  “Dôs Santos” nos tempos passados e de esforços nacionalistas para  as independências africanas. Emocionado, enchi-me de orgulho e ao virar para os lados por pouco dizia aos outros visitantes: aquele é meu “amigo, meu  camarada, meu líder!”. 

 

Muitos  países africanos  exaltam os seu líderes históricos.  O Senegal, Gana e a África do Sul aclamam  Senghor, Nkrumah e Mandela, respectivamente,  e Moçambique aclama Marcelino dos Santos, correligionário das mesmas andanças nacionalistas.  Nelson Mandela, o líder histórico  sul-africano, um pouco depois de ser liberto (por coincidência no dia 11 de Fevereiro de 1991) perguntara por Marcelino dos Santos num dos primeiros encontros que tivera com delegações moçambicanas. Aliás existem fotografias que testemunham um encontro de Mandela  com “Dôs Santos” antes de  Mandela  ser encarcerado por 27 anos e até da Frelimo ser criada em 1962. 

 

Fora as recordações habituais de ocasião , Marcelino dos Santos também deixa outras facetas para serem lembradas.  Uma delas, a de temido dirigente, foi eternizada na sua passagem pela Beira, na qualidade de Dirigente-residente/Governador da Província de Sofala. Há poucos dias, essa faceta foi  recordada a reboque de um suposto recrutamento militar à moda da temida “operação tira-camisa”, atribuída a ele nessa passagem pela Beira nos anos de 1983 à 1986 .

 

Uma outra faceta que retenho era a sua veia desportiva e solidária. Ir a um  recinto desportivo , fosse qual fosse a modalidade, e cruzar-me com Marcelino dos Santos era tão normal que passou a ser uma regra.  Uma das vezes,  nos anos 80, num domingo de futebol, não me cruzei com ele, mas senti inveja de adolescente por causa da sorte de um amigo  que pedira e apanhara boleia de Marcelino dos Santos no seu carro protocolar, do centro da cidade  até ao Estádio da  Marchava.

 

Ainda no campo das múltiplas  e conhecidas facetas de Kalungano , uma a registar é a de  boémio.  No livro “O meu coração  está nas mãos de um negro: uma história da vida de Janet Mondlane”, escrito por  Nadja Manguezi , uma das passagens se refere a essa particularidade. A propósito testemunho que as noites de Maputo não eram indiferentes para ele. No início dos anos 90, numa dessas noites e na febre das festas nas flats, cruzei-me com Lilinho Micaia.  No decurso da festa e a pretexto de apanhar ar, eu procurava, no espaço comum do prédio, um lugar recatado para trocar algumas palavrinhas. Feito o diagnóstico e enquanto me aproximava, oiço uma voz poética e familiar pronunciando: “Olha para o outro discreto”. Foi bem baixinho, mas o suficiente para que eu ouvisse e partisse para uma outra freguesia. 

 

Com a sua morte - a partida de  Kalungano, Lilinho Micaia, “Dôs Santos” -  acredito que o vazio que deixa será  preenchido por  inúmeros testemunhos que imortalizarão Marcelino  dos Santos.  Um Homem cuja dimensão e trajectória a História deve o seu registo do mesmo jeito que me cabe ainda cumprir a  promessa oculta: oferecer a Marcelino dos Santos o original do livro “O Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora. 

 

O dia 11 de Fevereiro de 2020,  será apenas o de partida terrena de Marcelino dos Santos. Em jeito de despedida, chamar  à colação uma das suas célebres frases:  “Enquanto houver revolução por refazer, não há tempo para morrer!”. E a propósito da frase  e da pergunta “Por onde andas, Kalungano?”  o país inteiro responde: “Estou aqui!”   

 

Saravá, “Dôs Santos”!

 

Sempre tive um fascínio intenso pelo entardecer. Arrebata-me o vermelho-amarelado espalhado pelo pôr sol, na zona onde, por limitação de óptica, o céu parece terminar. Toda aquela grandiosidade faz-me acreditar em novas auroras. Também porque é ao fenecer do dia que os cânticos dos pássaros retumbam, deixando-nos com a sensação de que é possível recomeçar depois das derrotas.

 

O Presidente Nyusi disse-me, ao telefone, que a entrevista – há muito desejada - podia ser feita ao fim da tarde de Domingo, na Ponta Vermelha, e eu saltei de alegria, não propriamente porque finalmente iria ser recebido pelo Chefe de Estado, mas porque o encontro vai acontecer ao fim da tarde. Ainda por cima de domingo, depois de me apetrechar com a Palavra de Deus.

 

Foram buscar-me no Hotel Radison Blu, onde estava hospedado com todas as despesas pagas, suponho eu, pelo herário público. Do meu bolso seria impensável sustentar aquele fausto, onde na casa de banho os chuveiros funcionam com sensores, e há uma garrafa de champanhe aqui na banheira, embutida num pequeno balde com gelo.

 

Alguém ligou para o meu celular e disse assim, o senhor está a ver um carro preto da marca Toyota Prado aqui na entrada? Eu disse que sim. E ele voltou a rosnar, “venha até aqui”. É daquelas máquinas que chamam a atenção pela pintura luzidia e os vidros escuros que não nos deixam ver absolutamente nada lá dentro.

 

Cheguei perto e a porta da traz abriu-se. Tremi. Pensei por uns instantes em desistir, por medo, porém não podia  fugir porque o Presidente da República, inteiro, está a minha espera. E de um Presidente não se foge. Ou seja, eu já tinha entrado na rede de emalhar, e as probabilidades de sair dalí eram por demais ténues. Mas quando me lembrei que era final da tarde, o meu coração ora descompassado, estabilizou-se. Entrei e sentei-me no lugar onde estaria acomodado, em passeio discreto,  o próprio Nyusi. Senti-me presidente da República, um posto que nunca almejei por todas as consequências que isso acarreta, incluíndo levar um balázio dos próprios guarda-costas.

 

Deslizamos suavemente pela marginal, num percurso que me permitia desfrutar da espectacular paisagem que incluiu as Ilhas Xefina e Inhaca, e ainda a Ilha dos portugueses. Mesmo assim senti-me um prisioneiro nas mandímbulas de um corcodilo, que me vai levar pela última vez a apreciar a beleza da terra, antes de me puxar  para a sinistra toca onde vai-me executar. Mas é fim de tarde, e eu vou ser protegido por esta muralha que já se tornou meu amuleto.

 

“Fizemos” a rotunda da Praça Robert Mugabe e subimos na marcha derradeira para a Ponta Vermelha, onde me espera um homem vulgar, agora investido de poderes invulgares. Não tenho medo dele, mas a Lei obriga-me a respeitá-lo como símbolo do poder. Nyusi é o nosso Presidente, “querendo como não”.

 

A primeira diferença que notei ao entrar no sumptuoso lugar que acolhe o alto magistrado da Nação, é que os pavões estimados pelo ex-chefe de Estado Armando Guebuza, já não estão lá. Foram substituídos por rolas e pombos brancos que esvoaçam livres pelas árvores frondosas, e poisam levemente por sobre a relva cuidada, que expõe um verde brilhante.

 

Permaneci dentro do carro, estacionado de forma aparentemente negligente,  à espera que me dessem instruções. Desceu o homem que ia à frente, ao lado do motorista. Logo a seguir saíu o condutor, ambos indivíduos rudes. Fiquei sozinho. Tranquilo. Porque é final de tarde. Ainda por cima de um domingo que começara da melhor forma.

 

Vejo o Presidente Nyusi a vir na minha direcção, naquele seu estilo meio cambaio, talhado não exactamente para dançar mapiko, mas para qualquer coisa indecifrável, sabido que homem baixinho é imprevisível. Traja um fato de treino vermelho e pareceu-me que acabava de fazer a barba, por isso estava com o rosto fresco. Jovial.

 

Ele próprio abriu a “minha” porta e disse-me assim, naquele sotaque misturado entre o ximaconde e swahili, seja bem vindo irmão! Desci para saudá-lo. Apertei-lhe a mão e senti que ele treimia. Eu não! Puxou-me para debaixo de uma sombra onde nos sentamos, “tête a tête”, o Presidente e eu, ouvindo a música das rolas e dos pombos.

 

Nyusi disse assim, depois de beber um gole da água mineral importada da Birmânia, não é bonito ouvir o cântico das rolas e dos pombos? E eu perguntei-lhe assim, senhor Presidente, por que é que nós os moçambicanos não cantamos assim, em uníssomo, como estes pássaros?

 

* Texto imaginário