Os textos que irá ler aqui a partir de hoje, não pretendem ser um relato de factos com rigor acadêmico, mas antes o relato de uma outra verdade. A verdade da catálise efectuada por mim pelas terras de solo encarnado pelas montanhas e embondeiros de Montepuez. Situando-se na área nebulosa entre a experiência de trabalho de campo académico e relato sobre os estranhamentos e afectos de encontro com uma nova realidade, o texto explora toda a pluralidade possível dos métodos de narração e depoimento. É um exercício sobre a transcrição da oralidade.
O leitor encontrará relatos das vidas e das mortes dos camponeses e garimpeiros de Namanhumbir, da luta pela sobrevivência das mulheres dona de casa e daquelas que não cavando nas minas, ganham a vida pelo dinheiro dos rubis de Montepuez.
Encostado sobre a palhota de paredes de barro, que me foi dada como meu aconchego durante as semanas de trabalho de campo, ouço o barulho das omnipresentes motorizadas empilhadas pelos corpos de homens que com picaretas e lanternas enormes sobre a testa e longos casacos se dirigem para o garimpo.
Do outro lado da rua, consigo ver diate do portão de uma enorme vedação de rede de arrames, uma fila de homens com sacolas plásticas outros com mochilas sobre as costas.
“Esses aqui são vientes bons. Não são como esses outros que vem apenas para nos roubar. Esses estão a vir aqui, por causa do rubi e vão modernizar nossa terra. Por causa desse rubi, vamos ter luzes e escolas para os nossos filhos. Com esse rubi, vamos ter desenvolvimento aqui”!
Disse-me com voz firme Sheik Amisse, um velho muito influente na comunidade, apontando com a sua bengala para a vedação de arrame, onde estão esticadas dezenas de tendas no acampamento, que albergam os técnicos da empresa Montepuez Ruby Mining. As palavras de Sheikh Amisse, fazem -me pensar repetidamente, que parece que nada acontecia nesta cidade, até acontecer esta chegada dos “vientes” dos rubis”. Aprendi aqui, um novo código sobre esses estranhamentos e afectos de encontro com uma nova realidade: se existem vientes bons, é porque de certeza há vientes maus. O tempo de relacionamento em Montepuez me fez observar tais evidências, e falarei delas no momento próprio.
A questão é que a percepção de Sheikh Amisse sobre os vientes da empresa mineradora, não é regra de entendimento geral na comunidade. O que me importa aqui é contar as transformações sócio- culturais decorrentes das incidências de chegadas massivas de vientes e várias empresas, determinadas pela descoberta de enormes jazidas de rubis em Namanhumbir. Os efeitos imediatos dessas incidências são de natureza desestruturadoras-restruturadoras, prevendo-se a prazo, uma institucionalização de novos modos de integração social na comunidade.
A partir dessas histórias de encontros, lutas, estranhamentos e casamentos, resistências e adaptações, fiquei a pensar, em como conferir a esse drama, uma análise digna que me permitisse compreender esta confluência de sujeitos, coisas, línguas, corpos e chegada de máquinas em Montepuez. Conferir uma análise digna, significa em primeiro lugar, pensar sobre a questão da mobilidade e suas múltplas dimensões como elemento de construção do outro entre os nativos de Montepuez, que não se centrasse apenas como as várias experiências místicas vividas pelos pesquisadores no campo. Em segundo lugar, significa, pensar sobre as várias questões que se podem colocar: quem são os vientes que chegam? Como encontram os nativos e como se relacionam com eles? O que trazem das suas origens? Que problemas trazem os vientes para os nativos? Quais as soluções, os nativos encontram dos vientes? Como os nativos, resistem contra esta pressão de entrada massiva de vientes?
São essas questões que me levarão a contar as histórias com que Montepuez marcou o narrador. Uns dirão que é ficção e não estarão sempre certos. Outros dirão que é autobiografia e serão frequentemente enganados. (X)
À memória de Jaimito Malhathini
Jaimito Malhathini, o célebre guitarrista moçambicano varado pela morte em Maputo onde deambulava como um vadio nos últimos dias da sua vida, é um dos mais importantes e belos átomos de Zandamela, uma localidade do distrito de Zavala na província de Inhambane. Nasceu ali. Obviamente! Participou e deu tremendo vapor ao vertiginoso tema Wa lhanya de Salimo Mahamed, quando este ainda chamava-se Simião Mazuze. Mas não foi só essa passagem. Jaimito perfumou a um nível elevado o projecto Amanhecer, corporizado por uma panóplia de músicos de grande performance, nos finais da década de setenta. E depois disso o chopi achou que devia subir outra montanha. Subiu, ou tentou subir, tendo-se descoberto, porém, à posterior, que afinal aquele empreendimento era uma falésia. Escorregou até ao ponto onde a morte, cansada de esperar, acolheu-o para sempre.
Zandamela agora é uma mulher esquálida. Sáfara. Aqueles que conhecem bem aquele vilarejo desde os tempos idos, ao passarem por ali actualmente, não deixam de notar, certamente, a ausência das colossais árvores (grevilhas) que nos chamavam à atenção pelo seu porte e alinhamento. Abateram-nas deixando o lugar nu. Completamente nu. Quer dizer, ao penetrarmos, escorrendo pela via nevráliga e inevitável, a sensação que nos fica é de que não passamos de lugar nenhum. Se este local fosse efectivamente uma mulher, diriamos que interiorizamos um corpo frio por demais. Insípido. E por consequência não sentimos nada. Os seios e as coxas e a parte mais macia de Zandamela eram as grevilhas. Agora decepadas. Deixando todo aquele chão dos chopi sem essência.
Depois do alívio do espírito ao assitirmos ao orgasmo interminável que o rio Inharrime atinge no oceano Índico, com testemunho das espectaculares dunas ao longe, e o esplendor das Lagoas de Quissico, no longo percurso Inhambane-Maputo, o que nos restava eram as grevílias de Zandamela. Plantadas num pedaço de cerca de cem metros, formando uma espécie de túnel verde, onde os condutores redobravam a atenção. Era refrescante passar por ali. Ninguém falava durante aquele pequeno troço. As árvores é que falavam.
Hoje tudo aquilo parece um deserto. Os pequenos deuses daquele lugar vacilaram. Emigraram. Deixando a assombração daquilo que foi, nesse tempo derrubado, a loja provavelmente dos Dalsucos. Não sei bem. Sobrou ainda a notável casa do temido régulo Malhathini, plantada num pomar que teima em se manter para lembrar a história de um homem que só sossobrava perante outro homem chamado Mangujo. Parecia que tinham dito ao Mangujo o seguinte: se quiseres enfrentar um monstro, tens que ser um monstro. E este chopi irreverente fez isso. Tendo ficado, por conseguinte, nos compêndios de Zandamela como o único que mostrava o peito ao régulo.
Que pena! Ou seja, para além dessas lembranças , Zandamela já não tem nada. Já não tem as grevílias. E a pessoa que mandou deitar abaixo aquelas históricas árvores, devia saber que matou a alma dos chopes dali.
Rui Lamarques
Rita senta-se ao meu lado - à minha esquerda, para ser mais preciso. Não, não é um sonho, apesar de ela o ser. Esse pedaço de mulher está instalado por trás de uma mesa redonda com três homens que lhe satisfazem as vontades e os caprichos. É mais magra e mais alta do que aparenta sentada. O cabelo postiço oriundo da Índia, esticado num cabeleireiro no coração do populoso Maxaquene, e o baton vermelho compõem o visual desta sobrevivente da noite maputense, que guarda uma distância sem ser distante e que é difícil de situar entre o reservado, o tímido ou o longínquo. Enverga um curtíssimo vestido azul, justo na cintura, a evidenciar-lhe as partes intimas, em relação às quais os homens de Maputo largam esposas e filhos.
"Eu nunca trabalhei", diz para os homens que lhe cercam feito hienas. Rita detesta a ideia de uma vida formatada, cheia de regras e de coletes de forças. "Na verdade até trabalho, mas para dar prazer aos que me permitem viver folgadamente. Não pertenço à homem algum. Eu sou da noite", afirma.
Não só é da noite como é uma mulher sobre quem se pode dizer, sem faltar à verdade, que ganha mais do que três deputados juntos. Conhece, como ninguém, a fraqueza masculina. "Todos querem uma mulher com cérebro para salvaguardar o futuro da descendência, mas nenhum abdica de uns seios hirtos e uma bunda empinada quando o sol se esconde. É aí que eu saio para ser 'caçada'", diz ironicamente porque, na verdade, quem caça é ela.
Mitemane acordou debaixo das águas. O seu relevo formado por reentrâncias e saliências não conseguiu engolir a fúria da maré que não cessou de expelir jatos e mais jatos de corrente. “É o dilúvio”. Dizem os pecadores. “Talvez, Deus está zangado com tantos ladrões que existem nestas terras do régulo Napuco”, acrescenta um pescador cujo barco acaba de atracar ao porto de areia fina.
Tothoro, um empresário da vila sede de Memba, envia a Mitemane o seu camião para ajudar a evacuar as pessoas que ainda beijam a areia abaixo da linha do mar numa relação de amor forçada pela emergência que não os deu tempo de tatear outras longitudes enquanto a água não exibia sua musculatura.
Palhotas da aldeia meio engolidas, ventos em rajadas, aguaceiros e trovoadas, o corpo da polícia costeira, lacustre e fluvial desdobra-se para que os pescadores do último barco do dia se fizessem a terra. “Tenta anexar a corrente de reboque meu inspector”, grita em agonia um guarda da polícia que havia ajudado a combater “os que não comem”, grupo de jovens ladrões que chegou a protagonizar assaltos históricos na cidade de Nampula. “Vamos todos ajudar, façam força” apela o inspector.
A embarcação da polícia era pequena em comparação ao último barco, um Bénéteau francês, muito diferente dos barcos de madeira empurrados a vela e vento que pululam por Mitemane. A embarcação tinha o seu título de propriedade registado em nome de uma grande empresa chamada Atusag, S.A, acrónimo de Atum Sagrado, Sociedade Anónima, uma firma cujo sucesso não atravessou a fronteira da promessa.
Apesar de ter sido criada para pescar atum, os moradores estavam habituados a perder de vista os barcos da Atusag, S.A, pois a periodicidade de movimentação daquelas embarcações pelas águas da Baia de Memba era uma vez em cada três meses. Os populares das aldeias circunvizinhas a baia não tinham memória de ter visto um destes barcos carregado de “Naphome”, o nome que a ciência dos costumes locais dá a este marisco.
O que se sabe é que a Dra Alimina Mussagy, uma contabilista que serve como cobradora de taxas da capitania da baia, era uma das gestoras da Atusag, SA, uma empresa cujos sucessos eram anunciados pela rádio comunitária, sem que as comunidades locais matassem curiosidade de ver com seus próprios olhos, um só carregamento.
Num desses dias, a Atusag, S.A doou algumas caixas de peixe ao centro de saúde de Baixo Pinda, uma unidade que inala o ar de uma aldeia dormente há poucas milhas de Mitemane. A partir dessa doação, a Dra Alimina passou a ostentar o título: “a senhora do atum”.
“Engata mais um arrame e diz para o Sargento Amede ligar o motor do nosso barco, porque temos de fazer de tudo para tirar esse Bénéteau daqui”, ordena o inspector ao guarda à sua direita.
- Temos um homem a naufragar inpector!
- Sargento a nossa prioridade agora é resgatar aquele barco que está prestes a naufragar, depois vamos conferir as baixas
- Mas como podemos ter uma operação sem a certeza que o batalhão está em forma, meu inspector?
- Cala-te seu filho da Puta. És sargento e me deves obediência. Lembre-se que qualquer tentativa de indisciplina, serei implacável e te vou punir – diz o inspector aos berros já sedento de saliva que engula o desespero de apresentar um relatório que desagrade as ordens superiores.
Os pescadores de Mitemane haviam já subido as zonas altas de onde apreciavam o cenário nas calmas. E porque desocupação faz pensar para além do permitido, as questões não paravam de desembarcar em seus cérebros, sendo uma delas, as reais motivações dos agentes da polícia costeira, lacustre e fluvial a tudo fazer para salvar um barco já náufrago.
Muitos não conseguiam perceber, uma vez que sempre que se registam naufrágios, os próprios guardas desaconselham qualquer acção de salvamento, alegadamente com o intuito de salvaguardar que mais vidas não sejam perdidas. Mas desta vez assistiu-se o contrário, não se importaram em ver polícias perdendo uma ou duas das suas sete vidas.
- Já estamos a conseguir inspector – grita o sargento visivelmente emocionado ao sentir o Bénéteau da Atusag, SA em movimento.
- Oh rapazes! Vós sabeis que estamos preparados para estancar qualquer acção de tentativa de alteração da ordem e tranquilidade pública.
- Claro meu inspector, mas ainda não localizamos “os desconhecidos” – recorda o sargento Amede.
De repente um místico de silêncio e pavor abate aos agentes da polícia e aos populares de Mitemane que do alto alimentam a sua apetitosa curiosidade ao dirigirem os olhos a um corpo que flutua sobre as águas salgadas.
- Sargento será que estou a ver mal? É um corpo?
- Sim meu inspector. Que triste.
- Consegues reconhecer antes mesmo de chegar ao laboratório do SERNIC?*
- Sim. É a Dra Alimina Mussagy.
- A senhora do atum?
O inspector responde assertivamente e recomenda a sua equipa a continuar com a operação de busca e salvamento com a crença de que o Bénéteau francês pode ainda reservar outras pessoas que resistem a fúria das águas salgadas de Mitemane em levá-las para o outro lado do mar.
*SERNIC – acrónimo de Serviço Nacional de Investigação Criminal
Ao Carlos Beirão, o eterno “Rei Momo” dos beireinses
Amiga, escrevo-te esta carta sem lágrimas nos olhos. Secaram. Acabaram. Comecei a chorar quando o pai do João ainda estava vivo. Doente. O meu rosto não parava de ser uma albufeira. Hoje é o coração que escorre e molha-me a alma toda. Já não sinto nada, senão a dor de viver sem o meu marido. Sem o meu filho, João. Que também morreu como o pai, sentado na borda da cama. Eram eles que davam luz à minha vida. Levantava-me da cama cedo por eles. A comida que eu cozinhava todos os dias era para eles. Quando fossem ao trabalho e à escola, eu ficava em casa alagada de demora. Queria que eles voltassem depressa para me abraçarem.
É isso, amiga, agora tudo isto é um vazio. Já não está aqui o meu marido para me dizer que as minhas mãos são leves como pluma. Ele lisonjeava-me. Tudo o que eu fazia merecia da parte dele elogios que me davam felicidade. Se eu cometesse um erro, reconfortava-me com palavras lindas. Dizia assim: amor, as próprias estrelas por vezes são ofuscadas pelas nuvens, mas não deixam de ser estrelas, tu és a minha estrela. Falava enquanto afagava-me. Passava a mão dele por sobre o meu cabelo curto e puxava levemente a minha cabeça para o seu peito.
Nhenhezi, amiga, o coração dele quando batia, tinha um compasso que parecia de mapiko. E quem dançava era a minha cabeça. Mas tudo isso passou como o orvalho que seca depois de molhar alegremente o capim. É isso! O João copiava o pai. Ele também fazia-me feliz, de outra forma. Chegava perto de mim, abraçava-me e dizia assim: mãe, tá tudo bem? Eu sorria. Transformava-me em criança perante o meu o meu filhote.
E hoje quando oiço a música do Carlos Beirão: Wassaíka João (João morreu), é como se o meu filho estivesse aqui ao meu lado. Este bairro de Muchatazina que tu conheceste já não é o mesmo, amiga. Mudou. Aliás toda a cidade da Beira está a mudar. Até o meu rosto mudou, já não é banhado pelas lágrimas. Mas lá dentro o coração continua a chorar. Batendo como batia o coração do meu marido, tipo batuque de mapiko. Houve um tempo que passei a ter a casa um pouco negligenciada, porém achei que isso não faria bem à alma dos meus dois amores. Voltei a dedicar-me à ela. Continua a brilhar como eles gostavam de a ver. Assim como sempre a conheceste. As fotos deles mantêm-se nos mesmos lugares. Representando aqueles que serão para sempre os meus ídolos. Isso reconforta-me.
Nhenhezi, minha amiga, como vai esse Portugal? Tens te dado bem com esses tugas? As cenas de racismo que volta e meia têm-se relatado por aí ainda não te afectaram directamente? E tu como és reguila, imagino! Mas eu também não “bato cem”. Existe porventura um ndau que não seja reguila? Kkkkkkkkkkk! Pronto, minha irmã, esta carta já vai longa. Chega, antes que eu meta os pés pelas mãos, se bem que ainda não meti. Beijo, beijo.
Da tua amiga Dzuwa, com muita saudade.
No último mês assistimos à atabalhoadas manobras institucionais, da parte do Estado moçambicano, com vista a munir-se de ferramentas para disputar, com o Estado americano, a custódia de um dos mais preciosos arguidos (na perspectiva interna) no puzzle das falcatruas financeiras que embandeiraram o país nos mais baixos rácios de atratividade económica e para investimentos.
A competição pela “língua” do deputado detido na República da África do Sul obrigou as nossas instituições a revelaram “todo” o seu potencial e deu para entender com que linhas se coze o nosso “sistema” de (in)justiça. Instituições historicamente dormentes e apáticas, salvo por empreitadas marginais, emergiram da hibernação e encetaram démarches com celeridade de matar de inveja os mais rápidos dos super-heróis das revistas em quadrinhos.
A tão clamada “celeridade processual” foi exibida com grosseria e atropelos (datas futuristas, potenciais conflitos de interesse, atropelos aos dispositivos normativos) no afã de assegurar o resgate, digo, “transferência”, ou melhor, “extradição”, deixemos... pode ser devolução mesmo, do detido para a “pérola do índico”. A depender da vontade do nosso “sistema”, “Tio Sam” não apanha nada! Se bem que, por vezes, pela quantidade de gafes de processo e de estratégias, fica parecendo que o essencial é erguer uma cortina de fumaça para não deixar transparecer que o arguido esteja a ser sacrificado para prestar-se ao simbolismo do insipidamente necessário ritual de purificação de fileiras. Pretensa moeda de troca para a recuperação da minguante credibilidade do “partidão”, em vésperas de mais uma competição eleitoral.
Seja como for, fica evidente que as nossas instituições são relativamente mais fortes do que os cidadãos (infelizmente, por um tiquinho, somente). Uma pena que assim seja. Sendo uma sociedade em construção (ainda que mais pareça em autodestruição), como cidadãos, sempre que julgarmos oportuno, devemos desafiar as instituições. O objectivo não é, necessariamente, romper com elas ou criar cisões (isso é demasiado convulsivo e de resultados imprevisíveis), mas re-articular as formas de “sociação”, refundar (ou consolidar) os parâmetros através dos quais nos governamos, nas mais variadas dimensões (económica, política, cultural), com ética e parâmetros partilhados de previsibilidade das acções, em quadros normativos explícitos e implícitos, relativamente consensuados.
Ainda que haja quem diga que não há revoluções às meias, senão meras rebeliões, na actual conjuntura, não carecemos nem de “primaveras” e nem de rebeliões senão de efectiva contribuição cidadã, das organizações político-partidárias (inclusive do partido mais chamuscado com este imbróglio), organizações da sociedade civil, para a transformação e aprimoramento das instituições.
Em termos de formas e normas há ajustes menores que podem ser feitos com o intuído de consolidar as instituições. No que concerne à performance e desempenho há muito a ser feito. Nestes nossos tempos, há toda uma batalha atitudinal a ser feita e vencida para que se faça jus à padrões de moralidade e de justiça, para um “re-encantamento” da nossa sociedade para enfrentar os desafios económicos, sociopolíticos que actualmente assumem contornos fraturantes.
O imbróglio das dívidas não deve ser visto como o “princípio” e ou “fim” do nosso mundo. Mas é também verdade que o assunto tem potencial de instigar rupturas em termos de atitudes de indivíduos, instituições e partidos face a coisa pública. No mínimo, tem o potencial de contribuir para a elevação da consciência colectiva sobre a importância da observância das normas e roteiros institucionalmente estabelecimentos e não tomar, ao desbarato, as “ordens” presumivelmente “superiores”, como padrão normal, incondicionalmente aceitável e ditame de actuação do provedor público.
Como bem disse a outra, “precisamos de parar com o autoflagelo”. Penso que é possível e, o Conselho Constitucional, o Parlamento e demais instituições privilegiadas para a lide com a matéria em questão, continuam sendo as instâncias com potencial repor a legalidade e contribuir no restaurar da incipiente confiança nas nossas fragilizadas instituições. Como na (des)crença sobre feitiçaria, o sistema tem potencial auto-reparador, de protecção e de reprodução de si. No limite, a competição eleitoral subsiste como um dos mais radicais mecanismos de reparação, se não quisermos incluir as guerrinhas que são ainda mais devastadoras.
Sim, não tenho dúvidas sobre as mais completas teses sobre a “captura do Estado”. Parece até contraproducente recorrer a essas mesmas instâncias, em princípio, “capturdas” em busca de reparação. As instituições, como edifício social, são suscetíveis a erosão e, não se vislumbrando uma “távola redonda”, a curta prazo, resta-nos explorar, ao limite, as janelas e frestas que subsistem e através delas procurar penetrar na estrutura do edifício e pavimentar os trilhos da reparação.
Metáforas à parte, na prática, há várias formas e possibilidades de consolidação das instituições. Entre elas, o recurso aos parâmetros institucionalmente estabelecidos para reivindicar ajustes e correções de medidas tomadas fora do quadro normativo. Esta abordagem tem também a função pedagógica de realçar a importância das instituições e as possibilidades institucionalmente estabelecidas para dirimir potenciais incongruências emanadas da operacionalização do aparato institucional. Incluindo a responsabilização individual de actores políticos eleitos para administrarem certas dimensões institucionais da vida em coletividade. Pois, não estão isentos do escrutínio público, ou da obrigação de “prestar contas” para as constituências que representam.
Já que, no nosso caso, a instituição não tem a cultura de pressionar-se mutuamente de forma complementar e menos ainda de forma competitiva para a materialização do desiderato que lhes define, a actuação do cidadão, por mais inconveniente que pareça aos olhos dos que usufruem dos benefícios que as instituições também oferecem, tem potencial transformativo. Quando os três poderes compactuam com desvios normativos óbvios e, em conluio, secundam-se nos esforços para sustentar e institucionalizar suas (im)posturas é caso de dizer-se que os actores sociais abrangidos (no caso, vitimados) por essa postura devem reservar-se o direito e articular todos os dispositivos legalmente estabelecidos para sinalizar para a gravidade do desvio institucionalmente incorrido e o potencial desestruturante de persistir-se nessa senda. Não obstante a aspiração de perenidade e de longevidade de muitos dos acordos assumidos, pactos sociais são suscetíveis à radicais alterações de vontades (e humores) dos pactuantes e podem demandar rearticulações e ajustes para manterem-se relevantes e funcionais. A capitalização das ferramentas de governação dos pactos talvez seja a maior expressão de compromisso com os princípios que norteiam o pacto e a salvaguarda da integridade dos pactuantes. Neste sentido, a petição que os cidadãos assinam, deve ser lida como expressão maior de compromisso com o todo, com o interesse colectivo e com o bem comum.
Formalmente, exige-se duas mil assinaturas para que eventuais peticionários sejam acolhidos pelo Conselho Constitucional de modo a que o objecto da petição seja considerado. A deliberação do CC é soberana, irrecorrível e irrevogável. O CC é a instância mãe, de reposição das nossas mais sublimes aspirações. Os Senhores e Senhoras que habitam aquela instância, são (ou deveriam ser) os guardiões da constitucionalidade, do interesse colectivo, acima de eventuais disputas de facções e das constituências (grupos de interesse) que povoam este espaço comum que chamamos Moçambique. Na cadeia hierárquica de instituições a que se pode recorrer o CC é a última nos termos da legalidade estabelecida. Depois disso, nirvana ou, pela nossa índole histórica, sem querer ser determinista, o caos! Ora, mas também existem as instâncias internacionais multilaterais, algumas das quais se afirmam pela defesa de direitos humanos e outros. Ainda que sejam negativamente conotadas como “mão-externa”, essas entidades também tem o potencial de pressionar e influenciar o curso de políticas e decisões internas. No presente caso, tratando-se de fraude de proporções multinacionais, o recurso a tais entidades não deve ser descartado.
Em 2016, a Sociedade Civil submeteu uma petição requerendo a ilegalização das dívidas contraídas pela ou em nome da EMATUM, posteriormente inscritas no orçamento do Estado. Na altura, o argumento apresentado centrava-se na não observância da lei orçamental, que preconiza que os avales atribuídos à EMATUM só poderiam ter sido atribuídos mediante aprovação da Assembleia da República. Faz hoje 581 dias sem resposta! O fragilidade e lentidão do CC, não deve desestimular os peticionários. Pelo contrario, devem persistir na pressão e inventivo ao CC para assumir as suas funções e dar resposta estruturada e fundamentada sobre o sue parecer /decisão.
Mais recentemente, as novas revelações sobre os contornos do endividamento e as detenções realizadas mundo a fora, começam a lançar luz à inquietantes zonas de penumbra encobertas por actos deliberados de sonegação de informação, por parte de actores e instituições implicadas, concorrendo para o esvaziamento da auditoria mandatada pelo nosso próprio governo, mas arquitetada para não encontrar matérias a auditar, na vã expectativa de dissipar o diferendo e voltarmos a cair, nas graças dos “parceiros de cooperação” doadores” e outras chamadas “mãos-externas”, a que historicamente recorremos para peditórios, negócios ou negociatas”.
Uma vez mais, as instituições da sociedade civil, recolheram cerca de duas mil e quatrocentas assinaturas para secundar a petição pela revogação das dívidas da PROINDICUS e MAM, empresas atreladas ao imbróglio atuneiro, cada vez mais associados a aventuras ilícitas, salvo por melhor apuramento das entidades internas e externas de investigação.
Nosso desafio, como cidadão, é contribuir para o fortalecimento das instituições, um jargão amplamente propalado, mas raramente evidenciado e ou experimentado nos nossos debates ou troca de farpas públicas. As instituições não se fortalecem por si só, pela vontade dos detentores do poder, alguns dos quais tem se mostrado renitentes subvertores das frágeis instituições de que dispomos.
Assim como já houve contribuições consideradas produtivas da parte do cidadão ou das organizações da sociedade civil, como aquando do desenvolvimento da lei da família, lei de imprensa e outros, o acto de os cidadãos demandarem um posicionamento por parte de instituições que deveriam ser relevantes, evidencia o ampliar da consciência sobre a importância da utilização dos espaços de diálogo entre os cidadãos, seus constituintes e as instituições.
O fortalecimento das instituições passa por um diálogo permanente entre os cidadãos organizados, nos moldes institucionalmente estabelecidos, como este de agregar 2000 assinaturas e a reação dos órgãos estabelecidos para funcionarem como interlocutores. Independente da reação das instituições, o importante é que não se quebre e nem violem os espaços constitucionalmente inscritos para interlocução e que as instituições se posicionem como actores capazes de satisfazer as demandas dos cidadãos ou interlocutores, se quisermos usar expressões ainda mais conciliatórias.
Como se pode depreender, com o engajamento (organizado) na mobilização e recolha das mais de 2000 assinaturas requeridas, da parte dos cidadãos, não há fraqueza em observar os trilhos institucionalmente legalizados. Neste caso, cabe às instituições demonstrarem que existem e que são suficientemente competentes para cumprirem, com a autonomia que lhes deveria ser devida, com o seu mandato. Infelizmente, até aqui, a instituição tem insistido em permanecer em ensurdecedor mutismo, defraudando seu próprio mandato e propósito. Enquanto isso, a consciência e a capacidade organizativa e dialógica do cidadão vai se consolidando, deixando a nú o deficit operacional que caracteriza o nome das instituições que indivíduos vestem em prossecução de interesses que a olhos de muitos cidadãos não são defensáveis no quadro de promoção e proteção do interesse colectivo.
Não sou dos que acreditam que todo e qualquer cidadão vive competindo pela governação das instituições do Estado e que qualquer mobilização social seja uma forma de escamotear o desejo de poder e não necessariamente advogar por acções que complementem as funções do Estado e aprimorem o capital institucional e, consequentemente, consolidem-se paramentos que concorram para a melhoria da qualidade da governação. É preciso descansar as azagaias dos que acreditam que todos os que questionam eventuais desmandos no quadro institucional estão sedentos por desfrutar das benesses do Estado. Nos seus modestos e imodestos postos, a maioria dos cidadãos batalha pelo seu pão, aspira apenas pela estabilidade e transparência nas regras do jogo, igualdade de oportunidades, ética na política e na gestão da coisa pública. Nada mais!
Cristiano Matsinhe
5 de Janeiro de 2019